quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Ex-sócio de sociedade limitada não é responsável por obrigação contraída após sua saída da empresa (correta interpretação do art. 1.003, parágrafo único do Código Civil)
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Imagine a seguinte situação hipotética:
João, Pedro e Tiago eram sócios da sociedade empresária
Cimentaria Ltda.
Em fevereiro de 2014, João decidiu sair da sociedade e, para
tanto, fez a cessão de suas quotas sociais em favor de Pedro e Tiago. Nesse
mesmo mês foi averbada a modificação do contrato social no qual constou a saída
de João da sociedade.
Em agosto de 2014, ou seja, 6 meses após a saída de João, a
Cimentaria fez um contrato de mútuo com o Banco, tendo tomado emprestado R$ 100
mil.
A Cimentaria não pagou o empréstimo e ingressou com execução
contra a sociedade empresária.
Não foram localizados bens da empresa para pagamento da
dívida, tendo o juiz da execução autorizado a desconsideração da personalidade
jurídica e o consequente redirecionamento da execução contra os sócios.
Foram penhorados R$ 20 mil da conta bancária de João.
Diante disso, ele veio aos autos alegando que é parte
ilegítima para figurar na execução considerando que, quando a obrigação foi
contraída pela empresa (agosto de 2014), ele já não mais fazia parte do quadro
societário.
O Banco contra argumentou
afirmando que João responde pelas obrigações assumidas pela empresa até o prazo
de 2 anos após a saída da sociedade, nos termos do art. 1.003, parágrafo único,
do Código Civil:
Art. 1.003. A cessão total ou parcial
de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o
consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à
sociedade.
Parágrafo único. Até dois anos depois
de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o
cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como
sócio.
Assim, a instituição financeira alegou que, como João saiu
em fevereiro de 2014, ele responderia pelas obrigações assumidas pela sociedade
até fevereiro de 2016.
É correta a tese invocada pelo Banco?
NÃO.
O parágrafo único do art. 1.003
acima transcrito precisa ser interpretado em conjunto com o art. 1.032 também
do Código Civil:
Art. 1.032. A retirada, exclusão ou
morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução
da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo,
enquanto não se requerer a averbação.
Ao se ler os dois dispositivos juntos, chega-se à conclusão
de que:
Na hipótese de cessão de
quotas sociais, a responsabilidade do cedente pelo prazo de até 2 anos após a
averbação da respectiva modificação contratual restringe-se às obrigações
sociais contraídas no período em que ele ainda ostentava a qualidade de sócio,
ou seja, antes da sua retirada da sociedade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1537521/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 05/02/2019.
Conforme explica Marlon
Tomazette, autor de uma das melhores coleções de Direito Empresarial:
“(...) O sócio que se retira ou é
excluído permanece obrigado por dois anos, após a averbação da sua saída, em relação às obrigações anteriores à averbação da alteração contratual.
(...)
Com efeito, o artigo 1.032 do
Código Civil de 2002 tem uma redação confusa, mas acreditamos que a
interpretação a ser feita é a seguinte: o sócio que se retira ou é excluído tem
responsabilidade pelas obrigações anteriores à sua saída pelo prazo de dois
anos, o que decorre da primeira parte do dispositivo. E, no caso de demora na
averbação da sua saída, terá responsabilidade pelas obrigações entre a sua saída
efetiva e a averbação da alteração, também pelo prazo de dois anos, com o
intuito de se protegerem os terceiros de boa-fé, que negociam com a sociedade e
não têm ciência da saída do sócio.
Acreditamos ser a interpretação
mais coerente, na medida em que completamente desarrazoado impor
responsabilidade ao sócio que saiu da sociedade. Mesmo depois que todos tenham
a condição de saber que ele não é mais sócio, não há motivo para tanto. Ora, se
ele não é mais sócio, como impor uma obrigação decorrente de tal qualidade?
(...) No caso de cessão de quota,
com a substituição do sócio, cedente e cessionário mantêm-se solidariamente
responsáveis pelas obrigações anteriores à averbação contratual pelo prazo de
dois anos após tal averbação (art. 1.003). Pelas obrigações posteriores à
averbação a responsabilidade é exclusivamente do cessionário.” (TOMAZETTE,
Marlon. Curso de Direito Empresarial:
teoria geral e direito societário. Vol. 1. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.
301)
Ricardo Negrão traz um exemplo
que espanca todas as dúvidas:
“Exemplificando: o sócio Tício
retira-se da sociedade XYZ Ltda. em 5 de julho de 2005 e a averbação dessa
alteração social é levada à Junta Comercial somente em 8 de agosto de 2006.
Dessa última data conta-se o prazo de dois anos para que os credores ou a
sociedade o acionem pelas obrigações contraídas até 8 de
agosto de 2006 (Código Civil, arts. 1.003 e 1.057, parágrafo único).”
(NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito
comercial e de empresa. Vol. 1, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 315-316)
No caso em exame, João se retirou da sociedade em 18/2/2014,
data em que foi averbada a cessão de suas quotas. A obrigação da empresa junto
ao Banco (e objeto da execução) foi contraída em 20/08/2014, ou seja, depois
que ele já tinha deixado a sociedade.
Repetindo: o ex-sócio de sociedade limitada somente é
responsável por obrigação contraída pela empresa em período anterior à
averbação da modificação contratual que consignou a cessão de suas quotas, pelo
prazo de 2 anos após a referida averbação, nos termos dos arts. 1.003,
parágrafo único, 1.032 e 1.057, parágrafo único, do Código Civil.