Imagine
a seguinte situação hipotética:
A
sociedade empresária “Aqua Modas” celebrou contrato com a empresa “Terra
Confecções”.
No
pacto, havia a previsão de uma cláusula de eleição de foro:
“8.1.
Fica eleito o foro da cidade de São Paulo/SP em detrimento de qualquer outro,
por mais privilegiado que seja, para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias
oriundas do presente instrumento.”
Houve
uma divergência entre os contratantes e a empresa “Terra” ajuizou ação de
rescisão contratual contra a “Aqua” na comarca de Porto Alegre (RS), sede da
autora.
Arguição
de incompetência
A
empresa “Aqua” contestou a ação e arguiu a incompetência relativa do foro de Porto
Alegre (incompetência territorial) argumentando que a referida cláusula de
eleição de foro é válida e não tem nada de abusiva.
Vale lembrar que, com o CPC/2015, a
incompetência relativa não é mais alegada por meio de “exceção de
incompetência”, mas sim como um mero tópico da contestação:
Art. 64. A incompetência, absoluta ou
relativa, será alegada como questão preliminar de contestação.
Decisão
interlocutória examinando a competência
O
juiz deferiu o pedido da empresa “Aqua”, por entender que a cláusula de eleição
de foro é válida.
Com
isso, o magistrado determinou a remessa dos autos para o juízo de São Paulo
(SP).
Contra
esta decisão, a autora “Terra” interpôs agravo de instrumento.
O Tribunal de Justiça não conheceu do recurso afirmando
que as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento estão previstas
taxativamente (exaustivamente) no art. 1.015 do CPC/2015 e que neste rol não
existe a previsão de agravo de instrumento contra a decisão relacionada com
definição de competência.
Veja a lista do art. 1.015 do CPC/2015:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento
contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
I - tutelas provisórias;
II - mérito do processo;
III - rejeição da alegação de convenção
de arbitragem;
IV - incidente de desconsideração da
personalidade jurídica;
V - rejeição do pedido de gratuidade da
justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação;
VI - exibição ou posse de documento ou
coisa;
VII - exclusão de litisconsorte;
VIII - rejeição do pedido de limitação
do litisconsórcio;
IX - admissão ou inadmissão de
intervenção de terceiros;
X - concessão, modificação ou revogação
do efeito suspensivo aos embargos à execução;
XI - redistribuição do ônus da prova
nos termos do art. 373, § 1º;
XII - (VETADO);
XIII - outros casos expressamente
referidos em lei.
Parágrafo único. Também caberá agravo
de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação
de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no
processo de inventário.
Cabe
agravo de instrumento neste caso? Na vigência do CPC/2015 cabe agravo de
instrumento contra a decisão que examina competência ou se trata de decisão
irrecorrível de imediato?
Durante
mais de dois anos houve um intenso debate na doutrina e jurisprudência sobre o
tema.
O
STJ, contudo, pacificou o tema em recurso especial repetitivo.
Prevaleceu
no STJ o seguinte entendimento:
É
cabível a interposição de agravo de instrumento contra decisão relacionada à
definição de competência, a despeito de não previsto expressamente no rol do
art. 1.015 do CPC/2015.
Apesar
de não previsto expressamente no rol do art. 1.015 do CPC/2015, a decisão
interlocutória que acolhe ou rejeita a alegação de incompetência desafia
recurso de agravo de instrumento.
Vamos
entender com calma os motivos.
Correntes
de interpretação
Veja novamente o caput do art. 1.015 do
CPC/2015:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento
contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
(...)
Surgiram três principais correntes de
interpretação a respeito do rol previsto neste artigo:
Correntes de interpretação sobre o rol do art. 1.015
do CPC/2015
|
||
1) o rol é absolutamente taxativo (deve ser
interpretado restritivamente)
|
2) o
rol é taxativo,
mas admite
interpretação extensiva ou analogia
|
3) o
rol é exemplificativo
|
Houve uma opção consciente do
legislador pela enumeração taxativa das hipóteses.
Não se pode ampliar o rol do art.
1.015, sob pena, inclusive, de comprometer todo o sistema preclusivo eleito
pelo CPC/2015.
|
Os incisos do art. 1.015 não podem
ser interpretados de forma literal.
Os incisos devem ser interpretados de
forma extensiva para admitir situações parecidas.
|
O rol é exemplificativo, de modo que
a recorribilidade da decisão interlocutória deve ser imediata, ainda que a
situação não conste no art. 1.015 do CPC.
|
Fernando Gajardoni, Luiz Dellore,
André Roque, Zulmar Oliveira Jr.
|
Fredie Didier Jr., Leonardo da Cunha,
Teresa Arruda Alvim, Cássio Scarpinella.
|
William Santos Ferreira e José
Rogério Cruz e Tucci.
|
Critério
adotado pelo legislador foi insuficiente
A
maioria da doutrina se posicionou no sentido de que o legislador foi infeliz ao
tentar criar um rol exaustivo das hipóteses de cabimento do agravo de
instrumento na fase de conhecimento. Isso porque o rol do art. 1.015 do CPC,
como aprovado e em vigor, é insuficiente, pois deixa de abarcar uma série de questões
urgentes e que demandariam reexame imediato pelo Tribunal.
O
sistema precisa que exista uma via processual sempre aberta para que tais
questões urgentes sejam desde logo reexaminadas, considerando que se a sua
apreciação for adiada (diferida), isso poderá causar prejuízo às partes e até
mesmo a inutilidade de que o tema seja apreciado no futuro. Em outras palavras,
existem questões que não podem esperar e que não estão no rol do art. 1.015 do
CPC.
A
experiência mostra que o mandado de segurança, que era muito utilizado na
vigência do CPC/1939 como sucedâneo recursal e que foi paulatinamente reduzido
pelo CPC/1973, não é o meio processual mais adequado para se rediscutir a
decisão interlocutória.
Legislador
não consegue prever, com rol fechado, todas as hipóteses possíveis
O
objetivo do legislador ao criar o rol do art. 1.015 foi o de prever ali
situações urgentes, ou seja, que não poderiam aguardar para que fossem
decididas em eventual recurso de apelação.
Ocorre
que o estudo da história do direito demonstra que um rol taxativo não consegue
prever todas as hipóteses possíveis e, situações que têm a mesma razão de
existir acabam ficando de fora, gerando inúmeros problemas.
O
que se percebe em vários países do mundo é que se adota o critério da urgência
para a recorribilidade das decisões interlocutórias. Assim, em países como EUA,
França, Alemanha, Argentina, com algumas variações, em regra, não se admite
recurso contra decisões interlocutórias, salvo quando a espera da decisão final
puder causar dano irreparável às partes.
Se uma decisão interlocutória precisa ser enfrentada
imediatamente, sob pena de a sua espera gerar dano irreparável às partes,
deve-se permitir o recurso imediato contra esta decisão, considerando que isso
atende o direito à tutela jurisdicional e de efetivo acesso à justiça
(princípio da inafastabilidade da jurisdição).
Dois
exemplos de situações urgentes não contempladas no art. 1.015 e que, se
examinadas apenas no recurso de apelação, gerarão prejuízo irreparável às
partes:
•
decisão que decide sobre competência: não é razoável que o processo
tramite perante um juízo incompetente por um longo período e, somente por
ocasião do julgamento da apelação, seja reconhecida a incompetência e
determinado o retorno ao juízo competente.
•
decisão que indefere o pedido de segredo de justiça: se o juiz indefere
o pedido de segredo de justiça e a parte prejudicada não pode recorrer de
imediato, significa que não mais adiantará nada rediscutir o assunto na
apelação, considerando que todos os detalhes da intimidade do jurisdicionado já
foram expostos pela publicidade.
Diante
dessa inadequação, qual das três correntes acima expostas foi adotada pelo STJ?
Nenhuma.
O STJ entendeu que nenhuma das três correntes acima expostas soluciona
adequadamente a situação, senão vejamos:
A
1ª corrente (taxatividade com interpretação restritiva) é incapaz de tutelar
adequadamente todas as questões. Isso porque, como vimos, existem decisões
interlocutórias que, se não forem reexaminadas imediatamente pelo Tribunal, poderão
causar sérios prejuízos às partes.
A
2ª corrente (interpretação extensiva ou analógica) também deve ser afastada.
Isso porque não há parâmetro minimamente seguro e isonômico quanto aos limites
que deverão ser observados na interpretação de cada conceito, texto ou palavra.
Além disso, o uso dessas técnicas hermenêuticas não será suficiente para
abarcar todas as situações em que a questão deverá ser reexaminada de imediato.
Um exemplo é a decisão que indefere o segredo de justiça. Não há nenhum outro inciso
do art. 1.015 no qual se possa aplicar essa hipótese por analogia.
Por
fim, a 3ª corrente (meramente exemplificativo) não pode ser adotada porque
ignora absolutamente a vontade do legislador que tentou, de algum modo, limitar
o cabimento do agravo de instrumento.
Qual
foi, então, o critério adotado pelo STJ?
O
STJ construiu a ideia de que o rol do art. 1.015 do CPC/2015 é de taxatividade mitigada.
O
que significa isso?
Em
regra, somente cabe agravo de instrumento nas hipóteses listadas no art. 1.015 do
CPC/2015.
Excepcionalmente,
é possível a interposição de agravo de instrumento fora da lista do art. 1.015,
desde que preenchido um requisito objetivo: a urgência.
O
que é urgência?
Urgência,
para os fins de cabimento de agravo de instrumento, significa que a decisão
interlocutória proferida trouxe, para a parte, uma situação na qual ela não
pode aguardar para rediscutir futuramente no recurso de apelação.
Assim,
a urgência decorre da inutilidade do julgamento da questão no recurso de
apelação.
Em
outras palavras, aquilo que foi definido na decisão interlocutória deverá ser
examinado pelo Tribunal imediatamente porque se for esperar para rediscutir na
apelação, o tempo de espera tornará a decisão inútil para a parte. Ela não terá
mais nenhum (ou pouquíssimo) proveito.
Por
que esse nome “taxatividade mitigada”?
Foi
uma expressão cunhada pela Min. Nancy Andrighi.
O
objetivo da Ministra foi o de dizer o seguinte: o objetivo do legislador foi o
de prever um rol taxativo e isso deve ser, na medida do possível, respeitado.
No entanto, trata-se de uma taxatividade mitigada
(suavizada, abrandada, relativizada) por uma “cláusula
adicional de cabimento”.
Que
cláusula (norma, preceito) é essa? Deve-se também admitir o cabimento do
recurso em caso de urgência.
E
por que se deve colocar essa “cláusula adicional de cabimento”? Por que se deve
adicionar essa regra extra de cabimento? Porque, se houvesse uma taxatividade
absoluta, isso significaria um desrespeito às normas fundamentais do próprio
CPC e geraria grave prejuízo às partes ou ao próprio processo.
Logo,
tem-se uma taxatividade mitigada pelo requisito da urgência.
Tese
fixada pelo STJ:
Como o tema foi apreciado pela Corte
Especial em sede de recurso repetitivo, o STJ fixou a seguinte tese:
O
rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a
interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente
da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.
STJ. Corte Especial. REsp 1.704.520-MT,
Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/12/2018 (recurso repetitivo) (Info
639).
Vale
ressaltar, mais uma vez, que não é necessário recorrer à analogia ou
intepretação extensiva.
O agravo de instrumento será cabível:
1) nos casos previstos expressamente no
art. 1.105 do CPC (aqui a urgência foi presumida pelo legislador);
2) mesmo que a situação esteja fora da
lista do art. 1.015, desde que verificada a urgência decorrente da inutilidade
do julgamento da questão no recurso de apelação (o Tribunal irá analisar se
existe urgência ou não para admitir o conhecimento do agravo).
Como
fica a questão da preclusão?
Se
o juiz profere uma decisão interlocutória que se enquadra em um dos incisos do
art. 1.015 do CPC, a parte prejudicada poderia interpor agravo de instrumento.
Imagine que ela o faz. Isso significa que houve preclusão e ela não poderá mais
rediscutir essa decisão em sede de apelação.
Por
outro lado, se o juiz profere uma decisão interlocutória que não se amolda em
um dos incisos do art. 1.015, o CPC afirma que, neste caso, como a parte não
pode recorrer de imediato, ela não deverá sofrer os efeitos da preclusão. Isso
significa que a parte poderá impugnar essa decisão ao interpor apelação.
É isso que estabelece o art. 1.009, §
1º do CPC:
Art. 1.009 (...)
§ 1º As questões resolvidas na fase de
conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser
suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a
decisão final, ou nas contrarrazões.
Assim,
pelo art. 1.009, § 1º, haverá preclusão para a parte se preenchidos dois
requisitos cumulativos:
•
a decisão interlocutória está expressamente prevista no art. 1.015 do CPC; e
•
apesar disso, a parte não a impugnou por meio de agravo de instrumento.
Ex: juiz profere decisão interlocutória excluindo um
litisconsorte passivo. Essa decisão se enquadra no inciso VII do art. 1.015.
Imaginemos que o autor decida não interpor o agravo de instrumento. Significa
dizer que houve preclusão e que ele não mais poderá questionar essa exclusão
quando for interpor apelação.
Com
essa decisão do STJ, existem decisões interlocutórias que poderão, em tese, ser
impugnadas por agravo de instrumento mesmo sem estarem previstas no art. 1.015
do CPC. Como fica a preclusão em tais casos se a parte decidir não interpor
agravo de instrumento? Ex: o réu suscita a incompetência do juízo; o magistrado
rejeita; pelo critério da taxatividade mitigada, a parte poderia interpor
agravo de instrumento mesmo em isso estar previsto no art. 1.015 do CPC;
imaginemos, contudo, que a parte não ingressa com o agravo; ela poderá
questionar essa decisão na apelação ou terá havido preclusão?
A
parte poderá questionar essa decisão ao interpor apelação.
Não
terá havido preclusão.
Se
o juiz profere uma decisão interlocutória e o conteúdo desta decisão não está expressamente previsto no rol do
art. 1.015 do CPC, a parte não tem o
ônus de ingressar com agravo de instrumento.
Mesmo
que a decisão interlocutória proferida gere, em tese, uma situação de urgência,
ainda assim será uma opção da parte ingressar com o agravo de instrumento ou
aguardar para impugnar essa decisão.
Imagine
que o juiz profira uma decisão interlocutória cujo conteúdo não está previsto
expressamente no art. 1.015. A parte entende que há urgência e ingressa com
agravo de instrumento. O Tribunal, contudo, considera que não existe urgência e
não conhece do recurso. Neste caso, terá havido preclusão ou a parte ainda
poderá questionar essa decisão na apelação?
A
parte poderá questionar essa decisão ao interpor apelação.
Não
terá havido preclusão.
O
cabimento do agravo de instrumento na hipótese excepcional de “urgência” está
sujeito a um duplo juízo de conformidade:
•
um, da parte, que interporá o recurso com a demonstração de seu cabimento
excepcional;
•
outro, do Tribunal, que analisará se existe ou não essa urgência para fins de
admitir o agravo de instrumento fora das hipóteses do art. 1.015.
Se
a parte não interpuser o agravo ou se ingressar, mas o Tribunal entender que
não há urgência (e não conhecer do recurso), isso significa que não houve
preclusão e a parte poderá questionar a decisão futuramente na apelação.
Modulação
dos efeitos
Como
havia muita polêmica sobre o tema, o STJ, para fins de garantir a segurança
jurídica, decidiu modular os efeitos da decisão.
Desse
modo, a tese jurídica fixada e acima explicada somente se aplicará às decisões
interlocutórias proferidas após a publicação do REsp 1704520/MT, o que ocorreu
no DJe 19/12/2018.