Dizer o Direito

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Aceitante não pode deixar de pagar à factoring (endossatária) a duplicata já aceita mesmo que a empresa que tenha feito o endosso não tenha entregue as mercadorias



NOÇÕES GERAIS SOBRE DUPLICATA
Conceito
Duplicata é...
- um título de crédito
- que consiste em uma ordem de pagamento emitida pelo próprio credor
- por conta de mercadorias que ele vendeu ou de serviços que prestou
- e que estão representados em uma fatura
- devendo ser paga pelo comprador das mercadorias ou pelo tomador dos serviços.

Genuinamente brasileiro
A duplicata foi criada pelo direito brasileiro, sendo considerada um título genuinamente brasileiro.

Regulamentação
A duplicata é regida pela Lei nº 5.474/68 e, agora, também pela Lei nº 13.775/2018.

Exemplo de emissão de duplicata
O distribuidor “SILVA & SOUZA Ltda.” vendeu para a loja “Bompé” 70 pares de sapatos.
O distribuidor (vendedor) extrai uma fatura dos produtos e emite uma duplicata mercantil dando uma ordem à loja (compradora) para que pague a ele (vendedor) o preço dos pares de sapato e eventuais encargos contratuais.

Espécies de duplicata
• Duplicata mercantil: emitida por causa da compra e venda mercantil.
• Duplicata de serviços: emitida por causa da prestação de serviços.

Características da duplicata
a) Título causal: a duplicata só pode ser emitida para documentar o crédito decorrente de dois negócios jurídicos: a compra e venda mercantil ou a prestação de serviços. Essa causa da duplicata é mencionada no próprio título. Por conta dessa característica, alguns autores afirmam que se trata de um título impróprio. Obs: o contrário dos títulos causais são os “não causais” ou “abstratos”, como o caso da nota promissória.
b) Ordem de pagamento.
c) Título de modelo vinculado (título formal): os padrões de emissão da duplicata são fixados pelo Conselho Monetário Nacional. A duplicata somente produz efeitos cambiais se observado o padrão exigido para a constituição do título.

Emissão da duplicata
O vendedor ou prestador dos serviços emite a fatura discriminando as mercadorias vendidas ou os serviços prestados. Com base nessa fatura, esse vendedor ou prestador poderá emitir a duplicata.

Remessa da duplicata para ACEITE
Aceite é o ato por meio do qual o sacado (comprador ou tomador dos serviços) assina o título se obrigando a pagar o crédito ali descrito, na data do vencimento.
Assim, emitida a duplicata, nos 30 dias seguintes, o sacador (quem emitiu o título) deve remeter o título ao sacado (comprador ou tomador dos serviços) para que ele assine a duplicata no campo próprio para o aceite, restituindo-a ao sacador no prazo de 10 dias.

O aceite na duplicata é obrigatório
Na duplicata, o título documenta uma obrigação surgida a partir de um contrato de compra e venda mercantil ou de prestação de serviços.
Desse modo, se o vendedor/prestador do serviço, que no caso foi o sacador, cumpriu as suas obrigações contratuais, não há motivo para o devedor recusar o aceite.
Em virtude dessa circunstância, a doutrina afirma que o aceite na duplicata é, em regra, obrigatório, somente podendo ser recusado nas hipóteses previstas nos arts. 8º e 21 da Lei nº 5.474/68.

Recusa do aceite
Como vimos, o aceite é, em regra, obrigatório.
As hipóteses previstas na lei em que o aceite pode ser recusado estão relacionadas com situações em que o sacador (vendedor ou prestador dos serviços) não cumpriu corretamente suas obrigações contratuais ou em que há divergência entre aquilo que foi combinado no contrato e o que consta da duplicata.
Estão previstas nos arts. 8º e 21 da Lei nº Lei nº 5.474/68.

Tipos de aceite
a) aceite ORDINÁRIO: ocorre quando o sacado (comprador ou tomador dos serviços), não encontra nenhum problema em aceitar e, por isso, assina em um campo próprio localizado na frente (anverso) do título, devolvendo-o em seguida.

b) aceite PRESUMIDO: ocorre quando o sacado resolve não assinar ou não devolver a duplicata assinada, no entanto, ao receber as mercadorias compradas ele assinou o comprovante de recebimento, sem fazer qualquer ressalva quanto aos bens adquiridos. Ora, se ele recebeu normalmente as mercadorias é porque se presume que o vendedor cumpriu sua obrigação contratual. Logo, esse comprador deveria ter feito o aceite da duplicata. Nesses casos, o sacador deverá fazer o protesto do sacado por falta de aceite ou por falta de pagamento.
Diante disso, é admitido como aceite presumido da duplicata:
O comprovante de entrega das mercadorias assinado pelo sacado acompanhado do instrumento do protesto do título por falta de aceite ou falta de pagamento.

c) aceite por COMUNICAÇÃO: ocorre quando o sacado retém o título e expressa o aceite em carta ou comunicado. Essa comunicação, mesmo escrita fora do título, produz os mesmos efeitos do aceite.

Protesto
Protesto de títulos é o ato público, formal e solene, realizado pelo tabelião de protesto, com a finalidade de provar:
i) a inadimplência do devedor
ii) o descumprimento de obrigação constante de título de crédito; ou
iii) qualquer outro ato importante relacionado com o título (ex: falta de aceite).

No caso da duplicata, para que serve o protesto?
O protesto poderá servir para provar três situações distintas:
i) a falta de pagamento;
ii) a falta de aceite da duplicata;
iii) a falta de devolução da duplicata;

OPOSIÇÃO DE EXCEÇÕES PESSOAIS À EMPRESA DE FACTORING
Imagine agora a seguinte situação hipotética:
João fez um contrato com uma empresa de móveis residenciais, segundo o qual ela iria construir e instalar os modulados da casa do cliente no prazo de 5 meses.
Ficou combinado que João pagaria R$ 50 mil, divididos em 5 meses.
Para instrumentalizar esse crédito, foram emitidas 5 duplicatas no valor de R$ 10 mil cada, a serem pagas por João assim que os serviços fossem entregues mês a mês.
No sistema da duplicata, com base neste exemplo, João recebe o nome de “sacado” (comprador) e a movelaria é denominada de sacador (emitente).
• Sacado (comprador): é a pessoa que recebe a ordem de pagamento. É aquela que compra a mercadoria ou o serviço e paga para o beneficiário, que é o próprio vendedor.
• Sacador (emitente): é quem dá a ordem de pagamento (emite a duplicata). É aquele que vende a mercadoria ou o serviço.

Vale ressaltar que João, sem conhecer muito bem as regras de direito cambiário, deu aceite nas cinco duplicatas, ou seja, assinou-as na frente do título comprometendo-se a pagá-las mesmo sem ter ainda recebido os móveis comprados.

Venda das duplicatas para a factoring
A empresa, precisando de dinheiro imediatamente para ter capital de giro, procurou uma factoring e “vendeu” essas duplicatas (contrato de conventional factoring). Em outras palavras, a empresa de modulados cedeu o crédito estampado nas duplicatas para a factoring e, quando ocorresse o dia do vencimento de cada uma delas, quem receberia o valor pago pelo cliente seria a própria factoring (e não mais a movelaria).
Importante registrar também que João foi notificado de que a empresa estava vendendo as duplicatas para a factoring e contra isso não se opôs.

Abrindo um parêntese para explicar esse serviço da factoring:
Factoring tradicional (conventional factoring): nesta atividade, o empresário cede à factoring os títulos de crédito que recebeu em sua atividade empresária e que somente irão vencer em uma data futura, e a empresa de factoring antecipa esse pagamento, recebendo, como contraprestação, um percentual desses créditos. Trata-se de uma forma de o empresário obter capital de giro nas vendas a prazo. Ex.: uma loja recebe um cheque “pré-datado” (pós-datado) para 90 dias no valor de R$ 10 mil. Ocorre que a loja precisa de dinheiro logo. Então, ela cede o cheque para a empresa de factoring, que irá pagar à vista para a loja R$ 9.700,00 e, daqui a 90 dias, irá descontar o cheque, ficando com os R$ 10 mil. A loja recebeu o crédito à vista e teve que pagar um percentual à factoring.
É como se o cliente tivesse “vendido” o título para a factoring, que irá cobrar do devedor no momento do vencimento da dívida.
O contrato de conventional factoring é um contrato de mútuo? Não. Em verdade, consiste em uma compra e venda de créditos (direitos), por um preço ajustado entre as partes.
Fechando o parêntese e voltando ao exemplo envolvendo a movelaria e João.

Atraso nos móveis
A empresa de modulados entregou as duas primeiras partes dos móveis nos dois primeiros meses, tendo João pago as duas primeiras duplicatas.
A partir do terceiro mês, no entanto, a empresa, alegando atraso na produção, não entregou a terceira parte. Diante disso, João também não pagou a terceira duplicata. Isso se repetiu no quarto e quinto meses.
Desse modo, a empresa cumpriu dois meses de seu compromisso contratual e, como não mais entregou os móveis a partir daí, o cliente deixou de pagar as três duplicatas restantes.
Ocorre que a factoring, que já havia “comprado” as duplicatas, não quis saber de nada e, como não houve o pagamento, levou os títulos para protesto.

Exceções pessoais
Juridicamente, um dos sentidos da palavra “exceção” é o de defesa. Assim, o termo “exceção” pode ser utilizado como sinônimo de defesa em alguns casos.
Em direito cambiário, quando falamos em “exceções pessoais”, estamos querendo dizer que são defesas que a pessoa que emitiu o título de crédito possui em relação àquele em favor de quem foi emitido o título de crédito.
Ex: Pedro quer comprar um celular de Mário e emite uma nota promissória. A origem da nota promissória é a compra e venda (trata-se da causa subjacente/causa debendi). O celular apresenta vício e, por isso, Pedro não paga o valor da nota promissória e devolve o celular. Se Mário executar essa nota promissória, Pedro poderá invocar, como exceção pessoal, que a causa subjacente não se concretizou. Trata-se de uma exceção pessoal do emitente em relação ao beneficiário do título.
As exceções pessoais podem ser invocadas (alegadas) pelo emitente para deixar de pagar o beneficiário do título. No entanto, em regra, as exceções pessoais não podem ser utilizadas contra pessoas de boa-fé que receberam o título. Isso está previsto no art. 916 do Código Civil:
Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.

Assim, se Mário já havia passado a nota promissória para Juliana, uma terceira pessoa, e ela estava de boa-fé, Juliana poderá executar o título cobrando o valor de Pedro. Este, coitado, ficará com o celular quebrado e terá que pagar o valor do título para Juliana. Obviamente que, depois, Pedro poderá tentar cobrar de Mário aquilo que foi pago. No entanto, repito, não poderá invocar contra Juliana sua exceção pessoal porque o título circulou e agora encontra-se com alguém considerado terceiro de boa-fé.

Voltando ao exemplo da factoring. A factoring (faturizadora) está cobrando de João o valor das três duplicatas não pagas. João não quer pagar porque a mercadoria não foi entregue. João (sacado) poderá invocar isso como exceção pessoal para não pagar à factoring?
NÃO.

Alguém poderia falar: mas a duplicata é um título causal, ou seja, ela está relacionada com um negócio jurídico. Se este negócio jurídico não foi cumprido, mesmo assim, a duplicata terá que ser paga?
A duplicata é um título causal no momento da sua emissão. No entanto, ela conserva essa característica apenas até a emissão do aceite, expresso ou ficto, quando adquire feição e qualidades próprias dos demais títulos de crédito, tanto que se admite a sua circulação, por cessão ou endosso.
Isso porque o aceite confere ao adquirente da duplicata uma segurança jurídica de que o negócio que justificou a emissão do título foi cumprido. A certeza é transmitida pelo próprio devedor (sacado), que, podendo recusar, aceitou o título.
Assim, depois do aceite, a duplicata perde o caráter causal, ou seja, desvincula-se do negócio jurídico que lhe deu causa.
Além disso, com a circulação (que ocorre com o endosso do título para terceiros), a duplicata passa a ter duas outras características muito relevantes para o direito cambiário: autonomia e abstração.
a) Autonomia: o possuidor de boa-fé (possuidor do título de crédito), ao cobrar esse título, está exigindo um direito próprio (direito seu), que não pode ser atrapalhado por conta de relações jurídicas anteriores entre o devedor e antigos possuidores do título. Assim, o possuidor de boa-fé do título de crédito não tem nada a ver com o fato de o título ter vícios ou defeitos anteriores. Se ele é o atual possuidor e está de boa-fé, tem direito ao crédito (obs.: existem algumas exceções ao princípio da autonomia, que não interessam no momento).
b) Abstração: significa que os títulos de crédito, quando circulam, ficam desvinculados da relação que lhe deu origem. Ex: João comprou um notebook de Ricardo, entregando-lhe uma nota promissória. Ricardo endossou a nota promissória para Rui. Ricardo acabou nunca levando o computador para João. Rui (que estava de boa-fé) poderá cobrar de João o crédito constante da nota promissória e o fato de o contrato não ter sido cumprido não poderá ser invocado para evitar que João pague o débito. Isso porque, como o título circulou, ele já não tem mais nenhuma vinculação com o negócio jurídico que lhe deu origem.

Esses dois princípios acima elencados têm por objetivo conferir segurança jurídica ao tráfego comercial e à circulação do crédito. Se a pessoa que recebeu um título de crédito (aparentemente válido) pudesse ficar sem o dinheiro por força de vícios anteriores ou por conta de uma quitação que não consta na cártula, isso geraria um enorme risco ao portador, o que desestimularia as pessoas a aceitarem títulos de crédito.

Foi isso que decidiu o STJ:
A duplicata mercantil, apesar de causal no momento da emissão, com o aceite e a circulação adquire abstração e autonomia, desvinculando-se do negócio jurídico subjacente, impedindo a oposição de exceções pessoais a terceiros endossatários de boa-fé, como a ausência ou a interrupção da prestação de serviços ou a entrega das mercadorias.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1.439.749-RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 28/11/2018 (Info 640).

Essa é também a opinião da doutrina majoritária:
“Assim, aceitando a duplicata, o sacado não mais poderá discutir a causa debendi porque o título liberta-se de sua causa originária em razão de ter reconhecido a sua exatidão e ter assumido a obrigação de pagá-lo no vencimento, tornando líquida a obrigação cambiária, ainda mais porque o sacado poderia ter recusado o aceite no prazo do art. 7º e pelas razões do art. 8º, e não o fez” (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio da. Títulos de Crédito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 690).  

“A duplicata, título causal, pois nascido sempre de uma compra e venda a prazo, com a assinatura do comprador desprende-se da causa que lhe deu origem já que o comprador não apenas reconheceu a exatidão da mesma como a obrigação de pagá-la na época do vencimento. A obrigação torna-se desse modo líquida, o que dá maior segurança de recebimento não apenas ao sacador-vendedor como a qualquer outra pessoa a quem o título seja transferido.” (MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Vol. II. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 165).

A ausência de entrega da mercadoria não vicia a duplicata que já foi aceita. Assim, uma vez aceita a duplicata, o sacado (aceitante) fica vinculado ao título como devedor principal e a ausência de entrega da mercadoria não pode ser oponível ao endossatário de boa-fé (empresa de factoring).
Vale ressaltar que o aceitante (João) terá direito de regresso contra a endossante (empresa de móveis), diante do descumprimento do negócio jurídico subjacente.

A empresa de factoring, mesmo trabalhando com isso, pode ser considerada como terceiro de boa-fé?
Em regra, sim. Não se pode presumir que a empresa de factoring, que celebrou mero contrato de factoring tradicional (conventional factoring) tenha conhecimento se a empresa endossante está ou não entregando as mercadorias ou prestando os serviços de forma pontual.
Obviamente, seria possível que o aceitante demonstrasse que tal situação é do conhecimento da empresa de factoring, o que excluiria a sua boa-fé. Essa prova seria mais fácil caso o contrato que a factoring tivesse com a empresa de móveis fosse mais amplo e abrangesse não apenas a “compra” de títulos de crédito, prevendo também que a factoring desempenharia atividades de gerência financeira, gestão de crédito e seleção de riscos em favor da empresa, o que não era o caso.




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