Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
foi vítima de um acidente de carro no qual sofreu traumatismo craniano, ficando
com algumas sequelas neurológicas (tremores no braço direito).
Cerca de um ano depois do acidente, ele procurou o setor
de neurologia de um dos melhores hospitais do país.
O
neurocirurgião que o atendeu recomendou a realização de uma cirurgia na cabeça,
chamada de talamotomia, a fim de melhorar a função cerebral do paciente.
João
foi submetido à cirurgia. No entanto, em vez de melhorar, ele piorou bastante,
perdendo a capacidade de andar.
Diante
disso, foi ajuizada ação de indenização por danos morais contra o hospital e o
médico.
O
principal fundamento da ação não foi eventual erro médico, mas sim ausência de
informação.
O
autor comprovou que o médico não explicou que a cirurgia que seria realizada
era extremamente arriscada e que havia uma alta probabilidade de apresentar
sequelas, como de fato ocorreu.
Ao
contrário, o médico teria dito que era uma intervenção simples, com anestesia
local e duração máxima de 2 horas.
Diante
desse cenário, há responsabilidade civil no presente caso?
SIM.
Vamos com calma.
Relação
jurídica médico-paciente
A
natureza jurídica da relação instaurada entre médico e paciente pode ser
considerada como uma “locação de serviços sui
generis”.
O
profissional, além da obrigação de prestar os serviços médicos, tem também
diversos deveres extrapatrimoniais considerados essenciais para a natureza
deste contrato.
É
o que explica Gustavo Tepedino: A responsabilidade médica na experiência brasileira
contemporânea. In: Revista jurídica.
São Paulo, v. 51, n. 311, set. 2003; p. 18-43, p. 19.
Dever
de informação
Um
desses deveres do médico é justamente o dever de informação.
Assim,
o profissional deve explicar ao paciente (ou seu representante legal), de forma
muito clara, quais são os riscos do tratamento, as vantagens e desvantagens, as
técnicas que serão empregadas, os prognósticos (“previsões”) e todas as demais
informações que sejam necessárias e úteis.
Esse
dever de informação existe, dentre outras razões, para permitir que o paciente
(ou seu representante legal) possa decidir livremente se deseja ou não executar
aquele procedimento.
Segundo
o Código de Ética Médica (Resolução do CFM nº 1.931, de 17.9.2009), é dever do
médico respeitar essa decisão do paciente:
É vedado ao médico
Art. 31. Desrespeitar o direito do
paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução
de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de
morte.
Dispensa
do dever de informação se puder causar danos ao paciente
Excepcionalmente,
o médico pode deixar de dar algumas informações ao paciente nos casos em que o fornecimento
dessa informação possa gerar algum dano, normalmente em seu estado psíquico.
Veja o que diz o Código de Ética Médica:
É vedado ao médico
Art. 34. Deixar de informar ao paciente
o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo
quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer
a comunicação a seu representante legal.
Vale
ressaltar, no entanto, que, nestes casos, o médico continua sendo obrigado a
fornecer tais informações ao representante legal do paciente.
Assim, podemos dizer que:
O
dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente
sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis
técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos
quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo
psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante
legal.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel.
Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).
Livre
consentimento informado
O
direito à informação do paciente existe, como já dito, para que ele possa ter
todos os subsídios necessários para decidir se irá ou não se submeter àquele
tratamento.
A
isso se dá o nome de livre consentimento informado.
O
direito à informação confere ao consumidor uma escolha consciente, permitindo
que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas.
Trata-se do chamado “consentimento informado ou vontade qualificada”.
O
consentimento informado é uma decorrência da:
•
dignidade da pessoa humana; e
•
do princípio da autonomia privada.
Assim,
pode-se dizer que o consentimento informado é uma manifestação do direito
fundamental de autodeterminação do paciente.
O
princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional
e previsão em diversos documentos internacionais, é fonte do dever de
informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do
paciente e preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente,
enfatizando a sua capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir
segundo suas próprias deliberações.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel.
Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).
Fontes
do direito à informação e do consentimento informado
O
direito do paciente à informação e a necessidade de seu livre consentimento
informado decorrem:
•
da Constituição Federal (em especial da dignidade da pessoa humana);
• de documentos internacionais, como é
o caso da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, da
UNESCO, cujo artigo 6º preconiza:
Artigo 6º Consentimento
1. Qualquer intervenção médica de
carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o
consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em
informação adequada.
Quando apropriado, o consentimento deve
ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por
qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.
• do Código de Defesa do Consumidor,
que impõe ao fornecedor de bens e serviços o dever de informar com clareza,
lealdade e exatidão, nos termos do art. 6º, III:
Art. 6º São direitos básicos do
consumidor:
III - a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e
preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº
12.741, de 2012)
•
do Código de Ética Médica.
De
quem é o ônus de provar o consentimento informado?
Do
médico ou do hospital. Para a doutrina, é do médico ou do hospital o ônus da
prova quanto ao cumprimento do dever de esclarecer e obter o consentimento
informado do paciente.
Assim,
havendo dúvida, deve-se entender que o médico não deu as informações
necessárias ao paciente.
Vale ressaltar que isso não significa
que a responsabilidade dos médicos seja objetiva. Não o é. Em regra, a
responsabilidade dos médicos é subjetiva, nos termos do art. 14, § 4º do CDC:
Art. 14 (...)
§ 4º A responsabilidade pessoal dos
profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
O
ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o
consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital, orientado pelo
princípio da colaboração processual, em que cada parte deve contribuir com os
elementos probatórios que mais facilmente lhe possam ser exigidos.
A
responsabilidade subjetiva do médico (art. 14, §4º, do CDC) não exclui a
possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art.
6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às
orientações técnicas aplicáveis.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel.
Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).
O
consentimento informado deve ser feito por escrito?
Não
existe, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma norma que exija que o
médico ou hospital recolha o consentimento escrito do paciente, expresso em um documento
assinado.
Apesar
disso, a doutrina recomenda, de modo muito enfático, que o médico tome essa
providência. Isso porque, como visto acima, é do médico o ônus de provar o
consentimento informado.
Consentimento
específico
Além
de escrito, é importante que o consentimento do paciente seja específico.
Um
consentimento genérico (chamado de blanket
consent) não é suficiente, devendo ser feito de forma específica para
aquele tratamento claramente individualizado.
Haverá
efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se
relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a
informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não
pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel.
Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).
No
exemplo dado, ficou demonstrado que não houve erro médico. Mesmo assim, será
devida a indenização? A indenização será devida pelo simples fato de não ter
sido respeitado o dever de informação?
SIM.
O
dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua
simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de
responsabilidade civil per se.
A
indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua
autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os
riscos e vantagens de determinado tratamento que, ao final, lhe causou danos
que poderiam não ter sido causados caso não fosse realizado o procedimento, por
opção do paciente.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel.
Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).