Hoje (19/12/2018), último dia antes do início do recesso no
Poder Judiciário, o Ministro do STF Marco Aurélio concedeu uma decisão
monocrática (ou seja, sozinho) para determinar a soltura de todas as pessoas
que estejam presas em virtude unicamente de execução provisória da pena.
Antes de verificar o que decidiu o Ministro, acho importante
fazer uma breve contextualização sobre o tema.
EXECUÇÃO PROVISÓRIA
DA PENA
Condenação
definitiva e execução da pena
Se
um indivíduo é condenado por um crime e contra esta decisão não cabe mais
nenhum recurso, dizemos que a decisão transitou em julgado. Logo, a condenação é
definitiva.
Se
o indivíduo é condenado definitivamente a uma pena e passa a cumprir essa pena,
dizemos que está havendo a execução da pena.
Condenação
provisória
Se
um indivíduo é condenado por um crime e contra esta decisão ainda cabem
recursos, dizemos que a decisão não transitou em julgado. Logo, a condenação é provisória.
Imagine
que um indivíduo está condenado, mas ainda falta julgar algum recurso que ele
interpôs.
Se
esse indivíduo inicia o cumprimento da pena imposta, dizemos que está havendo
aí uma execução provisória da pena. Isso
porque a condenação ainda é provisória.
Execução
provisória da pena
Desse
modo, execução provisória da pena significa o réu cumprir a pena imposta na
decisão condenatória mesmo sendo ainda uma decisão provisória (ainda sujeita a
recursos).
Execução
provisória da pena é, portanto, o início do cumprimento da pena imposta mesmo
que a decisão condenatória ainda não tenha transitado em julgado.
Argumento
contrário à execução provisória da pena
O
principal argumento daqueles que são contrários à execução provisória da pena é
a alegação de que ela violaria o princípio da presunção de inocência, previsto
no art. 5º, LVII, da CF/88 e que diz:
Art. 5º (...)
LVII - ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
O
STF aceita a execução provisória da pena? Isso é válido?
Vou
explicar a partir de um exemplo:
João
foi condenado a uma pena de 8 anos de reclusão, tendo sido a ele assegurado na
sentença o direito de recorrer em liberdade.
O
réu interpôs apelação, mas o Tribunal de Justiça manteve a condenação.
Contra
esse acórdão, João interpôs, simultaneamente, recurso especial e
extraordinário.
João,
que passou todo o processo em liberdade, deverá aguardar o julgamento dos
recursos especial e extraordinário preso?
É
possível que o réu condenado em 2ª instância seja obrigado a iniciar o
cumprimento da pena mesmo sem ter havido ainda o trânsito em julgado?
É possível a execução provisória da
condenação enquanto se aguarda o julgamento dos recursos especial e
extraordinário?
POSIÇÃO DO STF
|
||
Até fev/2009:
SIM
|
De fev/2009 a fev/2016:
NÃO
|
De fev/2016 até os dias atuais: SIM
|
Dizia que era possível a execução provisória da pena.
|
Passou a dizer que não era possível a execução provisória
da pena. Esse entendimento durou até fevereiro de 2016.
|
Em 2016, retornou para a sua primeira posição e voltou a
dizer que é possível a execução provisória da pena.
|
Assim,
conforme entendimento atual do STF, é possível iniciar a execução da pena se o
réu condenado somente está esperando o julgamento dos recursos especial e
extraordinário. Isso porque tais recursos não gozam de efeito suspensivo. Nesse
sentido:
A
execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de
apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não
compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.
STF.
Plenário. HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/02/2016 (Info
814).
A
execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de
apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não ofende o
princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF/88) e
não viola o texto do art. 283 do CPP.
STF.
Plenário. ADC 43 e 44 MC/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min.
Edson Fachin, julgados em 05/10/2016 (Info 842).
Em regime
de repercussão geral, fica reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório
proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de
inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
STF.
Plenário virtual. ARE 964246 RG, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em
10/11/2016 (repercussão geral).
Execução
provisória só é válida se os recursos pendentes não tiverem efeito suspensivo
Vale
esclarecer um ponto importante: o STF só admite a execução provisória se os
recursos da defesa que estão pendentes não tiverem efeito suspensivo.
O
que é efeito suspensivo de um recurso?
Se
um recurso tem efeito suspensivo, isso significa que a sua interposição impede
a eficácia/aplicabilidade da decisão recorrida.
Em
outras palavras, a decisão recorrida não produzirá efeitos (não poderá ser
executada) enquanto o recurso não for julgado.
Nas
palavras de Renato Brasileiro, o efeito suspensivo “consiste na impossibilidade
de a decisão impugnada produzir seus efeitos regulares enquanto não houver a
apreciação do recurso interposto.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de
Processo Penal. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 1664).
Exemplo
de recurso com efeito suspensivo:
Apelação
contra a sentença condenatória.
Ex:
João é condenado a 8 anos por um crime e, contra esta sentença, ele interpõe apelação
ao Tribunal de Justiça. Não será possível a execução provisória dessa condenação
porque ainda falta julgar um recurso (apelação) que tem efeito suspensivo.
Exemplos
de recursos sem efeito suspensivo:
Recurso
especial (julgado pelo STJ) e recurso extraordinário (julgado pelo STF).
Ex:
João é condenado a 8 anos por um crime. Contra esta sentença, ele interpõe apelação
ao Tribunal de Justiça, que mantém a condenação. Ainda inconformado, João
interpõe recursos especial e extraordinário.
Segundo
o entendimento atual do STF, será possível a execução provisória dessa condenação
porque só faltam serem julgados recursos que não possuem efeito suspensivo.
Desse
modo, desde fevereiro de 2016, a posição que prevalece no STF é a de que é
possível a execução provisória da pena se resta apenas o julgamento de recursos
especial e/ou extraordinário.
ADC 54
Ajuizamento
Em
18/04/2018, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) ajuizou ação declaratória
de constitucionalidade (ADC 54) pedindo que o STF declare que o art. 283 do CPP
é constitucional e que, ao fazer isso, o STF volte a adotar seu entendimento no
sentido de que não é possível a execução provisória da pena.
Assim,
em última análise, o que o autor quer nesta ADC 54 é que o STF decida que:
•
não é possível a execução provisória da pena; e que
•
qualquer prisão antes do trânsito em julgado somente é possível se for uma
prisão cautelar (preventiva), desde que presentes os requisitos do art. 312 do
CPP:
Art. 312. A prisão preventiva poderá
ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Como
o Min. Marco Aurélio já era relator de duas ações com pedidos idênticos (ADCs 43
e 44), esta terceira ação (ADC 54) foi distribuída por dependência para ele.
Ressalte-se
que o Plenário do STF, em 2016, já havia indeferido a liminar nas ADCs 43 e 44,
dizendo que a execução provisória da pena é válida:
A
execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de
apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não ofende o
princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF/88) e
não viola o texto do art. 283 do CPP.
STF.
Plenário. ADC 43 e 44 MC/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min.
Edson Fachin, julgados em 05/10/2016 (Info 842).
Inclusão
em pauta
O
Presidente do STF é quem tem competência segundo o regimento, para definir a
pauta dos processos que serão levados a julgamento pelo Plenário.
Em
18/12/2018, o Presidente do STF, Min. Dias Toffoli, marcou o dia 10/04/2019
para que o Plenário do Tribunal julgue a ADC 54.
DECISÃO LIMINAR
NA ADC 54
Decisão
monocrática
No
dia de hoje (19/12/2019), o Min. Marco Aurélio, em decisão monocrática, ou
seja, sem apreciação do colegiado, deferiu uma liminar afirmando que é inconstitucional
a execução provisória da pena.
ADCs
43 e 44
O
Min. Marco Aurélio reconheceu que a ADC 54 tem o mesmo pedido das ADCs 43 e 44.
O
Ministro também relembrou que, em 05/10/2016, o Plenário do STF negou o pedido
de medida cautelar formulado nas ADCs 43 e 44, ficando ele vencido no
julgamento.
No
julgamento do dia 05/10/2016, o STF, ao rejeitar a medida cautelar nas ADCs 43
e 44, afirmou que é possível a execução provisória da pena.
O
placar foi apertado (6x5). Como votaram os Ministros:
•
6 Ministros votaram a favor da execução provisória da pena após a decisão de 2ª
instância: Teori Zavascki (atualmente falecido), Edson Fachin, Roberto Barroso,
Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
•
4 Ministros votaram contra a execução provisória da pena e disseram que o
cumprimento da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado: Rosa Weber,
Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
•
o Min. Dias Toffoli adotou uma posição intermediária e disse que a execução
provisória da pena somente seria admitida após o STJ confirmar a condenação, ou
seja, se restasse apenas o recurso extraordinário para ser julgado.
Fato
novo
Assim,
em princípio, o Plenário já havia se pronunciado sobre este tema, não cabendo nova
decisão, ainda que nesta ADC 54.
No
entanto, para o Min. Marco Aurélio, houve um “fato novo” que justificaria nova
decisão em sentido contrário ao que foi resolvido no dia 05/10/2016.
O
“fato novo” seria a manifestação do Min. Gilmar Mendes no sentido de que ele havia
mudado de posição.
O
Min. Gilmar Mendes, em pronunciamentos na mídia e durante alguns julgados, afirmou
que mudou de posição e que, atualmente, assim como o Min. Dias Toffoli, entende
que somente é possível a execução provisória da pena se a decisão condenatória
for confirmada pelo STJ.
Desse
modo, segundo esse raciocínio, atualmente haveria, no máximo, 5 Ministros dizendo
que é possível a execução provisória da pena após a condenação em 2ª instância.
Como o total é de 11 Ministros, essa tese não seria mais a corrente majoritária
na Corte.
Decisão
liminar
Diante
disso, o Min. Marco Aurélio concedeu decisão liminar na ADC 54, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para:
“determinar a suspensão de execução de
pena cuja decisão a encerrá-la ainda não haja transitado em julgado, bem assim
a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação,
reservando-se o recolhimento aos casos verdadeiramente enquadráveis no artigo
312 do mencionado diploma processual.”
O
que isso significa, na prática?
Existem dois tipos de preso:
1) Presos DEFINITIVOS: aqueles cuja sentença condenatória já
transitou em julgado. Estão cumprindo pena (execução definitiva). Esses não
serão afetados em nada pela decisão do Ministro.
2) Presos PROVISÓRIOS: estão presos, mas ainda não há uma
condenação criminal definitiva. Ainda não houve o trânsito em julgado. Essa
prisão provisória pode decorrer de dois motivos:
2.1) Por força de prisão cautelar.
O juiz ou Tribunal entendeu que o indivíduo deveria
responder o processo preso, já que, no caso concreto, estão presentes os requisitos
da prisão preventiva elencados no art. 312 do CPP. É o caso, por exemplo, do
João de Abadiânia. Veja o dispositivo legal:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como
garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência
do crime e indício suficiente de autoria.
2.2) Por força de execução provisória da pena.
O Tribunal de 2ª instância (exs: TJ / TRF) ou o STJ proferiu
acórdão condenatório contra o réu. A defesa interpôs recurso que ainda não foi
julgado. No entanto, como esse recurso não tem efeito suspensivo, o Tribunal
determinou que o réu fique preso, cumprindo provisoriamente a pena enquanto
aguarda o desfecho do recurso. Aqui, o Tribunal manteve a prisão sem fazer qualquer
consideração sobre a existência ou não dos requisitos do art. 312. A prisão
aqui foi “automática”, pelo simples fato de os recursos pendentes não serem
dotados de efeito suspensivo.
A decisão do Ministro atinge a situação 2.2, ou seja, determina
a liberdade dos presos provisórios que estão em cárcere unicamente por força de
execução provisória da pena.
A soltura é automática?
NÃO. Será necessário analisar cada caso concreto.
Além disso, mesmo no caso dos réus que estavam presos
unicamente por força de execução provisória da pena, é possível que o Tribunal
analise a situação concreta e entenda que estão presentes os requisitos do art.
312 do CPP. Nesta hipótese, o Tribunal irá dar cumprimento ao que decidiu o
Min. Marco Aurélio, ou seja, declarar que a execução provisória é
inconstitucional, no entanto, poderá, na mesma decisão, manter o réu preso
cautelarmente, desde que fundamente, de forma individualizada, a presença dos
requisitos do art. 312 do CPP.
De quem é a competência para fazer essa análise?
Do Tribunal onde estiver pendente o recurso do réu.
Ex: João foi condenado a 8 anos de reclusão. A defesa apelou.
O Tribunal de Justiça manteve a sentença condenatória. O réu interpôs recurso
especial ao STJ. Como o recurso especial não tem efeito suspensivo, o TJ determinou
o início imediato da pena (execução provisória da pena).
Ocorre que agora o processo já está no STJ aguardando o
julgamento do Resp.
Logo, a defesa deverá pedir ao STJ o cumprimento da decisão
do Min. Marco Aurélio, considerando que o preso se encontra sob a custódia
daquele Tribunal.
Decisão beneficia o ex-Presidente Lula?
Sim. O ex-Presidente Lula somente foi preso depois que o
TRF4 confirmou a sentença condenatória de Sérgio Moro e depois de rejeitar os
embargos de declaração opostos pela defesa. Na decisão que determina a prisão
do ex-Presidente Lula não há qualquer consideração sobre a presença dos requisitos
da prisão cautelar (art. 312 do CPP). Assim, ele não se encontra preso por
força de prisão cautelar, mas sim porque o TRF4 aplicou a jurisprudência do STF
e determinou a execução provisória da pena.
Dessa forma, sendo confirmada a proibição da execução
provisória da pena, a tendência é a de que ele seja solto, salvo se o STJ, de
forma motivada, demonstrar que a sua situação se enquadra em uma das hipóteses
do art. 312 do CPP (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência
da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal). Neste caso,
ele seria mantido preso, não mais por força da execução provisória da pena, e
sim com base nos pressupostos da prisão cautelar.
PEDIDO DE SUSPENSÃO
Poucas horas após a decisão do Min. Marco Aurélio, mais
precisamente às 18h10min, a Procuradora-Geral da República formulou, ao Presidente
do STF, “pedido de suspensão de liminar”.
Qual foi o fundamento legal invocado pela PGR para formular esse pedido?
A Lei nº 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas
cautelares contra atos do Poder Público.
O art. 4º da Lei nº 8.437/92 prevê a suspensão de liminar,
nos seguintes termos:
Art. 4º Compete ao presidente do
tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em
despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder
Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa
jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público
ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança e à economia públicas.
Esse dispositivo é reproduzido, em parte, pelo Regimento Interno do
STF:
Art. 297. Pode o Presidente, a
requerimento do Procurador-Geral, ou da pessoa jurídica de direito público
interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar,
ou da decisão concessiva de mandado de segurança, proferida em única ou última
instância, pelos tribunais locais ou federais.
No pedido, a PGR alegou que a decisão monocrática causava grave
lesão à ordem e à segurança.
DECISÃO DO PRESIDENTE
DO STF
Ainda no dia de hoje, às 19h39m, o Presidente do STF, Min.
Dias Toffoli, acolheu o pedido da PGR e suspendeu os efeitos da decisão monocrática proferida pelo Min.
Marco Aurélio.
Para o Min. Dias Toffoli, a liminar concedida pelo Min.
Marco Aurélio afrontou o que o Plenário do STF havia decidido no julgamento das
ADCs 43 e 44, que versavam sobre matéria idêntica.
É preciso velar pela intangibilidade dos julgados do
Tribunal Pleno. Logo, a decisão já tomada pela maioria dos membros da Corte
deve ser prestigiada.
Além disso, o Presidente do STF considerou que a liminar
concedida tinha risco de gerar grave lesão à ordem e à segurança públicas. Isso
porque permitiria a soltura, talvez irreversível, de 169 mil presos com
condenação proferida por Tribunal.
Assim, o Presidente do STF deferiu o pedido da PGR e
suspendeu os efeitos da decisão monocrática proferida pelo Ministro Marco
Aurélio até que o Plenário da Corte aprecie a matéria de forma definitiva, já
pautada para o dia 10 de abril de 2019.
Márcio André Lopes
Cavalcante
Professor. Juiz
Federal.