Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
outorgou procuração (mandato) para Dr. Marcelo (advogado) a fim de que ele
ajuizasse ação reivindicatória contra a empresa BCB, pertencente a Pedro, rico
empresário.
Marcelo
preparou e ajuizou a ação em nome de João.
O pedido foi julgado procedente em primeira instância e a
sentença foi confirmada pelo Tribunal de Justiça.
A
sentença e o acórdão reconheceram que João tinha em torno de R$ 100 mil para
receber da ré.
Em
tese, ainda teria a possibilidade de a empresa interpor recursos especial e
extraordinário. No entanto, a jurisprudência do STF e do STJ era manifestamente
contrária à tese da condenada.
Diante
disso, Pedro chamou Marcelo em seu escritório e fez uma proposta: “vamos fazer
um acordo para resolver logo esse processo; eu pago R$ 5 mil à vista para o seu
cliente e desisto de recorrer; em contrapartida, ele renuncia aos demais
valores; além disso, também pago um valor para você, ‘por fora’, além dos honorários
que irá receber normalmente”.
Assim,
em abril de 2014, Marcelo celebrou o acordo (transação) com a referida empresa,
por meio do qual renunciou a valores já consolidados em sentença e que tinham remota
possibilidade de reversão. Percebe-se que Marcelo abusou do poder que lhe tinha
sido outorgado e causou prejuízo ao seu cliente.
O acordo foi homologado e o processo
extinto com resolução do mérito, nos termos do art. 487, III, “b”, do CPC/2015:
Art. 487. Haverá resolução de mérito
quando o juiz:
(...)
III - homologar:
(...)
b) a transação;
Deflagração
de operação policial
João
recebeu os R$ 5 mil e estava até satisfeito porque não entendia muito bem de assuntos
jurídicos e o advogado explicou para ele que seria um bom acordo já que “o
processo ainda poderia demorar uns 30 anos em Brasília”.
Em
abril de 2018, ou seja, 4 anos depois da homologação do acordo, foi deflagrada
uma operação policial na qual se revelou que o advogado Marcelo e a empresa BCB
fizeram o mesmo esquema em vários outros processos judiciais.
A empresa BCB é muito grande e Marcelo foi advogado de
vários clientes que ajuizaram ações contra ela. Em todos os processos, ele fez
esses acordos desvantajosos em troca do pagamento de um dinheiro “por fora”.
Ação
de indenização
Em
maio de 2018, João procurou, então, outro advogado e ajuizou ação de
indenização contra Marcelo pedindo:
a)
danos materiais equivalentes à diferença entre o valor da condenação (R$ 100
mil) e o que foi efetivamente repassado ao autor (R$ 5 mil);
b)
danos morais.
Defesa
de Marcelo
Marcelo
contestou a demanda alegando, entre outros argumentos, que:
1) a pretensão está prescrita. Isso
porque o acordo foi celebrado em abril/2014 e ação de indenização somente foi
ajuizada em maio de 2018, ou seja, depois do prazo de 3 anos previsto como
prazo prescricional para as ações de responsabilidade civil, nos termos do art.
206, § 3º, V, do Código Civil:
Art. 206. Prescreve:
(...)
§ 3º Em três anos:
(...)
V - a pretensão de reparação civil;
2)
a procuração a ele outorgada conferia poderes para transigir;
3)
só poderia haver a responsabilização por abuso de poder pelo
advogado-mandatário se houvesse a prévia anulação judicial do ato praticado.
Tese
1.
Prescrição. A pretensão deduzida está prescrita?
NÃO.
Por dois motivos:
Termo
inicial da prescrição: teoria da actio nata
O
termo inicial da prescrição não foi o momento em que o acordo foi homologado,
mas sim a data em que a vítima soube que havia sido prejudicada. Isso com base
na chamada teoria da actio nata.
No
campo da responsabilidade civil, esta teoria sustenta que o prazo prescricional
para a ação de indenização se inicia na data em que se tiver o efetivo conhecimento
da lesão (e seus efeitos).
Por aplicação da teoria da actio nata, o prazo prescricional,
relativo à pretensão de indenização de dano material e compensação de dano
moral, somente começa a correr quando o titular do direito subjetivo violado
obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão, bem como do responsável
pelo ilícito, inexistindo, ainda, qualquer condição que o impeça de exercer o
direito de ação.
STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp
639.598/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/12/2016.
Assim,
o início do prazo prescricional, com base na teoria da actio nata, não se dá necessariamente no momento em que ocorre a
lesão ao direito, mas sim, quando o titular do direito subjetivo violado obtém
plena ciência da lesão e de toda a sua extensão.
Tendo
em vista a impossibilidade de se precisar o momento em que o autor (João) teve
ciência de que a transação judicial realizada pelo advogado em seu nome foi
prejudicial aos seus interesses, pode-se considerar a data da deflagração da
operação policial, ocorrida em abril de 2018, como termo inicial do prazo
prescricional.
No
momento da homologação do acordo, o mandante não sabia que estava sendo
prejudicado pelo mandatário, que estava atuando de modo contrário aos seus
interesses e em conluio com a parte adversa.
A
relação entre advogado e cliente é fundamentada na confiança e na legítima
expectativa de que o profissional atuará com ética e com a máxima diligência
possível no cumprimento do mandato que lhe foi outorgado.
Logo,
é razoável presumir que apenas com a instauração da investigação criminal o
autor tomou conhecimento de que o acordo celebrado pelo réu em seu nome não
tinha por objetivo preservar seus interesses.
Prazo
prescricional não é de 3 anos
Existe, contudo, um outro motivo pelo
qual a pretensão não está prescrita: o prazo prescricional, no presente caso,
não é de 3, mas sim de 10 anos.
Nas
ações de indenização do mandante contra o mandatário incide o prazo
prescricional de 10 anos, previsto no art. 205 do Código Civil, por se tratar
de responsabilidade proveniente de relação contratual.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.750.570-RS, Rel.
Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/09/2018 (Info 633).
Veja a redação do dispositivo legal:
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos,
quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
Esse
entendimento está de acordo com o que decidiu recentemente o STJ:
Nas controvérsias relacionadas à
responsabilidade CONTRATUAL, aplica-se a regra geral (art. 205 CC/2002) que
prevê 10 anos de prazo prescricional e, quando se tratar de responsabilidade
extracontratual, aplica-se o disposto no art. 206, § 3º, V, do CC/2002, com
prazo de 3 anos.
Para fins de prazo prescricional, o
termo “reparação civil” deve ser interpretado de forma restritiva, abrangendo
apenas os casos de indenização decorrente de responsabilidade civil
extracontratual.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1.280.825-RJ, Rel.
Min. Nancy Andrighi, julgado em 27/06/2018 (Info 632).
Tese
2.
A procuração outorgada ao advogado autorizava que ele fizesse transação em nome
do autor. Logo, ele não ultrapassou os limites formais da procuração. Mesmo
assim terá que indenizar?
SIM. O fato de o advogado dispor de
procuração que lhe permitia a realização de transação não lhe autorizava a agir
de forma temerária e a seu livre arbítrio, nem lhe autorizava a celebrar
acordos manifestamente contrários aos interesses de seu cliente com o objetivo
de se locupletar indiretamente às custas do mandante. Isso porque, conforme
prevê o art. 667 do Código Civil:
Art. 667. O mandatário é obrigado a
aplicar toda sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar
qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem
autorização, poderes que devia exercer pessoalmente.
O
mandatário não apenas faltou com a necessária diligência em favor de seu
cliente, como atuou de modo a lhe causar prejuízos, renunciando a crédito já
reconhecido judicialmente em sentença com remota possibilidade de reversão, em
virtude de ajuste espúrio realizado com a parte contrária.
O que houve, portanto, foi a prática de
uma série de infrações disciplinares previstas no art. 34 do Estatuto da OAB
(Lei nº 8.906/94):
Art. 34. Constitui infração
disciplinar:
(...)
VIII - estabelecer entendimento com a
parte adversa sem autorização do cliente ou ciência do advogado contrário;
IX - prejudicar, por culpa grave,
interesse confiado ao seu patrocínio;
(...)
XIX - receber valores, da parte
contrária ou de terceiro, relacionados com o objeto do mandato, sem expressa
autorização do constituinte;
XX - locupletar-se, por qualquer forma,
à custa do cliente ou da parte adversa, por si ou interposta pessoa;
Além disso, o Estatuto da OAB também
determina:
Art. 32. O advogado é responsável pelos
atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.
O
fato de o advogado-mandatário ostentar procuração com poderes para transigir
não afasta a responsabilidade pelos prejuízos causados por culpa sua ou de
pessoa para quem substabeleceu, nos termos dos arts. 667 do Código Civil e 32,
caput, do Estatuto da Advocacia.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.750.570-RS, Rel.
Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/09/2018 (Info 633).
Tese
3.
Para que haja o dever de indenizar, é necessário que seja previamente anulado o
acordo conduzido pelo advogado e que foi homologado judicialmente?
NÃO.
A
responsabilidade pelos danos decorrentes do abuso de poder pelo mandatário
independe da prévia anulação judicial do ato praticado, pois o prejuízo não decorre
de eventual nulidade, mas sim da violação dos deveres subjacentes à relação
jurídica entre o advogado e o assistido.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.750.570-RS, Rel.
Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/09/2018 (Info 633).
O
mau cumprimento do mandato advocatício não implica, necessária e
automaticamente, a invalidade dos atos praticados pelo mandatário.
Houve,
no caso, abuso de poder por parte do mandatário, que se configura quando este,
no desempenho de suas atividades, atua de modo contrário ao que lhe foi
solicitado, implícita ou explicitamente, pelo outorgante, mas sem exceder os
limites expressamente estabelecidos no mandato. Diferencia-se, portanto, do
excesso de poder, que ocorreria caso o mandatário extrapolasse a limitação de
poderes outorgados pelo mandante, por exemplo, transigindo sem ostentar
procuração para tanto.
Na
hipótese de abuso de poder, caso dos presentes autos, o mandante permanece, em
tese, responsável pelas obrigações assumidas pelo mandatário em seu nome, sobretudo
em se tratando de avença que restou homologada judicialmente. Nada impede, contudo,
que busque a anulação do acordo por meio da via adequada.
Assim
sendo, a ausência de invalidação do acordo judicial não constitui óbice para a
responsabilização do recorrente, pois a conduta lesiva imputada ao réu não é a
celebração de um acordo nulo, mas sim, a quebra das obrigações ínsitas ao mandato
outorgado.