Dizer o Direito

sábado, 17 de novembro de 2018

Servidor que estava cursando faculdade e foi removido para outra cidade terá direito de ser matriculado em outra instituição de ensino no local de destino? Entenda a chamada transferência ex officio



Imagine a seguinte situação hipotética:
Paulo é servidor público federal, lotado em Recife (PE), onde faz faculdade de Medicina em uma universidade particular. Ele é transferido, de ofício, para Rio Branco (AC).

Em virtude dessa transferência, Paulo terá direito a uma vaga no curso de Medicina em uma universidade em Rio Branco (AC)?
SIM. Isso é chamado de transferência ex officio, sendo um direito assegurado pela Lei nº 9.536/97, que regulamentou o parágrafo único do art. 49, parágrafo único, da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação):
Lei nº 9.394/96
Art. 49. As instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo.
Parágrafo único. As transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei.

Lei nº 9.536/97
Art. 1º A transferência ex officio a que se refere o parágrafo único do art. 49 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta.
Parágrafo único. A regra do caput não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança.

Em qualquer época do ano e independente da existência de vaga

Dependentes
Têm direito à matrícula, em estabelecimentos de ensino congêneres, não apenas os servidores públicos como também seus dependentes.

Essa prerrogativa abrange servidores da Administração indireta?
SIM. A jurisprudência amplia o conceito de “servidor público” a fim de alcançar não apenas os vinculados à Administração direta, como também os que exercem suas atividades em entidades da Administração Pública indireta, uma vez que a finalidade da norma é o interesse público.
Assim, os empregados das entidades da Administração Indireta, dentre elas as empresas públicas e sociedades de economia mista são considerados servidores públicos em sentido amplo e, portanto, têm direito ao benefício previsto na Lei nº 9.536/97.
STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1218810/RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 15/02/2011.
STF. 2ª Turma. RE 495325 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 12/04/2011.

Esse direito abrange também servidores estaduais e municipais?
O art. 1º da Lei nº 9.536/97 fala apenas em “servidores federais”. No entanto, a jurisprudência do STJ firmou entendimento de que a prerrogativa legal de transferência de aluno ou dependente concedida a servidor público federal estende-se também a servidores estaduais, municipais e do Distrito Federal, nos casos de transferência de ofício, e entre estabelecimentos de ensino congêneres.
STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1267223/RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 13/09/2011.

Mas é possível que um servidor estadual ou municipal seja transferido ex officio?
SIM. Isso é possível tanto dentro do mesmo Estado como também (mais raramente) para outro Estado da Federação.
Ex: um servidor estadual que é transferido ex officio de um Município do interior para a capital, ou vice-versa.
Ex2: um servidor do Município de São Paulo (SP) é transferido ex officio da capital paulista para Brasília (DF), onde a Administração Pública mantém um escritório de representação para cuidar dos assuntos municipais na capital federal.

Não abrange transferências “a pedido”
A prerrogativa conferida pela Lei nº 9.536/97 deve ser interpretada de forma restritiva e, portanto, não contempla as transferências “a pedido” do próprio servidor.
STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1626826/PE, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 21/03/2017.

Assunção em cargo público, nomeação para cargo em comissão e designação para função de confiança
A prerrogativa da transferência ex officio não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para outra localidade com o objetivo de assumir:
• cargo efetivo em razão de concurso público. Ex: o pai do estudante de Medicina passou em um concurso para morar em outro Estado.
• cargo comissionado; ou
• função de confiança.

Posse de membro do MP como Desembargador e transferência universitária de dependente
O filho do membro do MPT nomeado para o cargo de Desembargador Federal na vaga do quinto constitucional tem direito de ser transferido para a Universidade do local para onde se mudou?
SIM. O filho de membro do Ministério Público do Trabalho tem, em razão da mudança de domicílio de seu pai para tomar posse no cargo de Desembargador Federal do Trabalho, direito a ser transferido para instituição de ensino superior congênere, nos termos do art. 49 da Lei nº 9.394/96, c/c art. 1º da Lei nº 9.536/97.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.536.723-RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 13/10/2015 (Info 571).

Requisito da congeneridade
Em 2005, o STF, ao julgar uma ADI proposta contra a Lei nº 9.536/97, deu interpretação conforme ao art. 1º desta Lei e afirmou o seguinte:
Essa previsão de transferência obrigatória para outra faculdade somente pode ser considerada constitucional se a instituição de destino for congênere à de origem.
Congênere = algo que é do mesmo gênero (tipo), ou seja, algo similar.
Isso significa que, se o servidor (ou seu dependente) estudava em uma universidade pública, ele terá direito de se transferir para uma universidade também pública na cidade de destino.
Por outro lado, se o servidor (ou seu dependente) estudava em uma universidade privada, ele será transferido para uma universidade também privada.
Em suma, se o servidor público (civil ou militar) que cursa faculdade for transferido, de ofício, para outra localidade, ele tem direito de ser matriculado em instituição de ensino superior do local de destino, observado, todavia, o requisito da congeneridade em relação à instituição de origem.
Veja a ementa do julgado:
A constitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 9.536/97, viabilizador da transferência de alunos, pressupõe a observância da natureza jurídica do estabelecimento educacional de origem, a congeneridade das instituições envolvidas - de privada para privada, de pública para pública -, mostrando-se inconstitucional interpretação que resulte na mesclagem - de privada para pública.
STF. Plenário. ADI 3324, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 16/12/2004.

Voltando ao nosso exemplo:
Seguindo esse requisito da congeneridade, a vaga de Paulo não será em uma universidade pública.
Isso porque Paulo estudava em Recife em uma universidade particular. Logo, ao ser transferido para Rio Branco deverá fazer o curso superior em uma faculdade também particular.
A regra da congeneridade fala:
• Se o servidor estudava em uma instituição pública, será matriculado em uma instituição pública na localidade de destino.
• Se fazia o curso em uma instituição privada, sua matrícula será efetividade em uma instituição privada.

Até aí, tudo bem. Mas... e se a instituição congênere da localidade de destino não oferecer o curso que era feito pelo servidor em seu antigo domicílio? Suponhamos hipoteticamente que, em Rio Branco, as universidades privadas lá existentes não possuem o curso de medicina. O que fazer neste caso?
Diante desses casos concretos, a jurisprudência dos TRFs e do STJ criou uma exceção ao requisito da congeneridade.
Passou-se a dizer o seguinte: se não houver curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova residência ou em suas imediações, deverá ser assegurada a matrícula em instituição não congênere.
Assim, em nosso exemplo hipotético, como em Rio Branco não havia uma faculdade particular de Medicina, Paulo teria direito a uma vaga no curso de Medicina da universidade pública.

Universidades públicas questionaram essa “exceção”
Essa “exceção” ao requisito da congeneridade começou a ser questionada pelas Universidades públicas sob a alegação de que isso violaria o princípio da isonomia (art. 5º) e o direito à igualdade de condições para o acesso à escola e à educação (art. 206, I, da CF/88):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

Logo, essa exceção seria inconstitucional.

O STF concordou com o argumento das Universidades públicas? Há inconstitucionalidade?
NÃO.
É constitucional a previsão legal que assegure, na hipótese de transferência ex officio de servidor, a matrícula em instituição pública, se inexistir instituição congênere à de origem.
STF. Plenário. RE 601580/RS, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 19/9/2018 (repercussão geral) (Info 916).

O STF, inicialmente, esclareceu que, ao julgar a ADI 3324, ele não examinou os casos de transferência para cidades em que não havia instituição de ensino congênere.
Em outras palavras, o STF afirmou que, ao julgar a ADI 3324 teria apenas analisado e fixado a regra geral, mas sem fixar posição para os casos em que a cidade de destino não tivesse o mesmo curso na faculdade privada. Logo, agora seria o momento de analisar esta situação.
Se a cidade de destino do servidor não tem um curso congênere na rede privada, deve-se admitir a matrícula em universidade pública, sob pena de haver uma restrição desproporcional.
Exigir que a transferência se dê entre instituições de ensino congêneres praticamente inviabiliza o direito à educação não apenas dos servidores, mas de seus dependentes, solução que viola o disposto na Lei nº 9.536/97, e exclui, por completo, a fruição de um direito fundamental. Impedir a matrícula do servidor ou de seus dependentes, em caso de transferência compulsória, quando inexistir instituição congênere no município, possivelmente levaria ao trancamento do curso ou sua desistência. Assim, permitir a matrícula, ante a inviabilidade de um dos direitos em confronto, não se afigura desproporcional.

Conclusões pessoais:
Para fins de concurso, é muito importante conhecer a literalidade da tese acima exposta porque é muito provável que seja cobrado exatamente assim na prova.
No entanto, podemos explicar como funciona na prática, criando uma “regra” e uma “exceção”:
• REGRA: em caso de transferência ex officio de servidor público (civil ou militar), o servidor (ou seu dependente) terá direito de se matricular em instituição congênere àquela que estava estudando na origem. Ex: se fazia o curso em uma universidade pública, terá direito de se matricular em uma instituição pública na cidade para a qual foi transferido. É o chamado requisito da congeneridade.
• EXCEÇÃO: se, no local da nova residência ou em suas imediações, não houver o curso em uma instituição congênere, deverá ser assegurada a matrícula em instituição não congênere. Ex: o servidor fazia o curso de Medicina em uma universidade privada e no local de destino não existe faculdade particular que ofereça o curso de Medicina. Neste caso, como inexiste instituição congênere à de origem, a lei assegura a matrícula em instituição pública. O STF afirma que essa interpretação da lei é compatível com a CF/88.

Requisitos
Diante de tudo que foi exposto, podemos assim resumir os requisitos para que se proceda à transferência entre instituições de ensino superior, na hipótese de remoção de servidor público no interesse da Administração:
a) remoção ou transferência do servidor, ex officio, com mudança de domicílio;
b) qualidade de estudante do servidor (civil ou militar) ou de dependente seu; e
c) congeneridade entre as duas instituições envolvidas, salvo se não houver curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova residência ou em suas imediações, hipótese na qual deverá ser assegurada a matrícula em instituição não congênere.




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