Imagine a seguinte situação hipotética:
Paulo é servidor público federal,
lotado em Recife (PE), onde faz faculdade de Medicina em uma universidade
particular. Ele é transferido, de ofício, para Rio Branco (AC).
Em virtude dessa transferência,
Paulo terá direito a uma vaga no curso de Medicina em uma universidade em Rio
Branco (AC)?
SIM. Isso é
chamado de transferência ex officio,
sendo um direito assegurado pela Lei nº 9.536/97, que regulamentou o parágrafo único
do art. 49, parágrafo único, da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação):
Lei
nº 9.394/96
Art. 49. As instituições de educação
superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na
hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo.
Parágrafo único. As transferências ex
officio dar-se-ão na forma da lei.
Lei
nº 9.536/97
Art. 1º A transferência ex officio a que se refere o parágrafo
único do art. 49 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada,
entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época
do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar
de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente
estudante, se requerida em razão de comprovada remoção
ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o
município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima
desta.
Parágrafo único. A regra do caput não
se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo
efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de
confiança.
Em qualquer época do ano e
independente da existência de vaga
Dependentes
Têm direito à matrícula, em
estabelecimentos de ensino congêneres, não apenas os servidores públicos como
também seus dependentes.
Essa prerrogativa abrange
servidores da Administração indireta?
SIM. A jurisprudência amplia o conceito de “servidor
público” a fim de alcançar não apenas os vinculados à Administração direta,
como também os que exercem suas atividades em entidades da Administração
Pública indireta, uma vez que a finalidade da norma é o interesse público.
Assim, os empregados das entidades
da Administração Indireta, dentre elas as empresas públicas e sociedades de
economia mista são considerados servidores públicos em sentido amplo e,
portanto, têm direito ao benefício previsto na Lei nº 9.536/97.
STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp
1218810/RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 15/02/2011.
STF. 2ª Turma. RE 495325 AgR, Rel.
Min. Ellen Gracie, julgado em 12/04/2011.
Esse direito abrange também servidores
estaduais e municipais?
O art. 1º da Lei nº 9.536/97 fala
apenas em “servidores federais”. No entanto, a jurisprudência do STJ firmou
entendimento de que a prerrogativa legal de transferência de aluno ou
dependente concedida a servidor público federal estende-se também a servidores
estaduais, municipais e do Distrito Federal, nos casos de transferência de
ofício, e entre estabelecimentos de ensino congêneres.
STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp
1267223/RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 13/09/2011.
Mas é possível que um servidor
estadual ou municipal seja transferido ex officio?
SIM. Isso é possível tanto dentro
do mesmo Estado como também (mais raramente) para outro Estado da Federação.
Ex: um servidor estadual que é
transferido ex officio de um Município
do interior para a capital, ou vice-versa.
Ex2: um servidor do Município de
São Paulo (SP) é transferido ex officio
da capital paulista para Brasília (DF), onde a Administração Pública mantém um
escritório de representação para cuidar dos assuntos municipais na capital
federal.
Não abrange transferências “a
pedido”
A prerrogativa conferida pela Lei
nº 9.536/97 deve ser interpretada de forma restritiva e, portanto, não
contempla as transferências “a pedido” do próprio servidor.
STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp
1626826/PE, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 21/03/2017.
Assunção em cargo público, nomeação
para cargo em comissão e designação para função de confiança
A prerrogativa da transferência ex officio não se aplica quando o
interessado na transferência se deslocar para outra localidade com o objetivo de assumir:
• cargo efetivo em razão de
concurso público. Ex: o pai do estudante de Medicina passou em um concurso para
morar em outro Estado.
• cargo comissionado; ou
• função de confiança.
Posse de membro do MP como
Desembargador e transferência universitária de dependente
O filho do membro do MPT nomeado
para o cargo de Desembargador Federal na vaga do quinto constitucional tem
direito de ser transferido para a Universidade do local para onde se mudou?
SIM. O filho de membro do
Ministério Público do Trabalho tem, em razão da mudança de domicílio de seu pai
para tomar posse no cargo de Desembargador Federal do Trabalho, direito a ser
transferido para instituição de ensino superior congênere, nos termos do art.
49 da Lei nº 9.394/96, c/c art. 1º da Lei nº 9.536/97.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.536.723-RS,
Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 13/10/2015 (Info 571).
Requisito da congeneridade
Em 2005, o STF, ao julgar uma ADI
proposta contra a Lei nº 9.536/97, deu interpretação conforme ao art. 1º desta
Lei e afirmou o seguinte:
Essa previsão de transferência
obrigatória para outra faculdade somente pode ser considerada constitucional se
a instituição de destino for congênere à de origem.
Congênere = algo que é do mesmo gênero
(tipo), ou seja, algo similar.
Isso significa que, se o servidor
(ou seu dependente) estudava em uma universidade pública, ele terá direito de
se transferir para uma universidade também pública na cidade de destino.
Por outro lado, se o servidor (ou
seu dependente) estudava em uma universidade privada, ele será transferido para
uma universidade também privada.
Em suma, se o servidor público
(civil ou militar) que cursa faculdade for transferido, de ofício, para outra
localidade, ele tem direito de ser matriculado em instituição de ensino
superior do local de destino, observado, todavia, o requisito da congeneridade
em relação à instituição de origem.
Veja a ementa do julgado:
A constitucionalidade do artigo 1º da
Lei nº 9.536/97, viabilizador da transferência de alunos, pressupõe a
observância da natureza jurídica do estabelecimento educacional de origem, a
congeneridade das instituições envolvidas - de privada para privada, de pública
para pública -, mostrando-se inconstitucional interpretação que resulte na
mesclagem - de privada para pública.
STF. Plenário. ADI 3324, Rel. Min. Marco
Aurélio, julgado em 16/12/2004.
Voltando ao nosso exemplo:
Seguindo esse requisito da
congeneridade, a vaga de Paulo não será em uma universidade pública.
Isso porque Paulo estudava em
Recife em uma universidade particular. Logo, ao ser transferido para Rio Branco
deverá fazer o curso superior em uma faculdade também particular.
A regra da congeneridade fala:
• Se o servidor estudava em uma
instituição pública, será matriculado em uma instituição pública na localidade
de destino.
• Se fazia o curso em uma
instituição privada, sua matrícula será efetividade em uma instituição privada.
Até aí, tudo bem. Mas... e se a
instituição congênere da localidade de destino não oferecer o curso que era
feito pelo servidor em seu antigo domicílio? Suponhamos hipoteticamente que, em
Rio Branco, as universidades privadas lá existentes não possuem o curso de
medicina. O que fazer neste caso?
Diante desses casos concretos, a
jurisprudência dos TRFs e do STJ criou uma exceção ao requisito da congeneridade.
Passou-se a dizer o seguinte: se
não houver curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova
residência ou em suas imediações, deverá ser assegurada a matrícula em
instituição não congênere.
Assim, em nosso exemplo hipotético,
como em Rio Branco não havia uma faculdade particular de Medicina, Paulo teria
direito a uma vaga no curso de Medicina da universidade pública.
Universidades públicas
questionaram essa “exceção”
Essa “exceção”
ao requisito da congeneridade começou a ser questionada pelas Universidades públicas
sob a alegação de que isso violaria o princípio da isonomia (art. 5º) e o
direito à igualdade de condições para o acesso à escola e à educação (art. 206,
I, da CF/88):
Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
Art. 206. O ensino será ministrado com
base nos seguintes princípios:
I - igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola;
Logo, essa exceção seria
inconstitucional.
O STF concordou com o argumento
das Universidades públicas? Há inconstitucionalidade?
NÃO.
É
constitucional a previsão legal que assegure, na hipótese de transferência ex officio de servidor, a matrícula em
instituição pública, se inexistir instituição congênere à de origem.
STF. Plenário. RE 601580/RS, Rel. Min.
Edson Fachin, julgado em 19/9/2018 (repercussão geral) (Info 916).
O STF, inicialmente, esclareceu
que, ao julgar a ADI 3324, ele não examinou os casos de transferência para
cidades em que não havia instituição de ensino congênere.
Em outras palavras, o STF afirmou
que, ao julgar a ADI 3324 teria apenas analisado e fixado a regra geral, mas
sem fixar posição para os casos em que a cidade de destino não tivesse o mesmo
curso na faculdade privada. Logo, agora seria o momento de analisar esta situação.
Se a cidade de destino do
servidor não tem um curso congênere na rede privada, deve-se admitir a matrícula
em universidade pública, sob pena de haver uma restrição desproporcional.
Exigir que a transferência se dê
entre instituições de ensino congêneres praticamente inviabiliza o direito à
educação não apenas dos servidores, mas de seus dependentes, solução que viola
o disposto na Lei nº 9.536/97, e exclui, por completo, a fruição de um direito
fundamental. Impedir a matrícula do servidor ou de seus dependentes, em caso de
transferência compulsória, quando inexistir instituição congênere no município,
possivelmente levaria ao trancamento do curso ou sua desistência. Assim,
permitir a matrícula, ante a inviabilidade de um dos direitos em confronto, não
se afigura desproporcional.
Conclusões pessoais:
Para fins de concurso, é muito
importante conhecer a literalidade da tese acima exposta porque é muito provável
que seja cobrado exatamente assim na prova.
No entanto, podemos explicar como
funciona na prática, criando uma “regra” e uma “exceção”:
• REGRA: em caso de transferência
ex officio de servidor público (civil
ou militar), o servidor (ou seu dependente) terá direito de se matricular em
instituição congênere àquela que estava estudando na origem. Ex: se fazia
o curso em uma universidade pública, terá direito de se matricular em uma
instituição pública na cidade para a qual foi transferido. É o chamado
requisito da congeneridade.
• EXCEÇÃO: se, no local da nova
residência ou em suas imediações, não houver o curso em uma instituição congênere,
deverá ser assegurada a matrícula em instituição não congênere. Ex: o servidor fazia
o curso de Medicina em uma universidade privada e no local de destino não
existe faculdade particular que ofereça o curso de Medicina. Neste caso, como
inexiste instituição congênere à de origem, a lei assegura a matrícula em
instituição pública. O STF afirma que essa interpretação da lei é compatível
com a CF/88.
Requisitos
Diante de tudo que foi exposto,
podemos assim resumir os requisitos para que se proceda à transferência entre instituições de
ensino superior, na hipótese de remoção de servidor público no interesse da
Administração:
a) remoção ou transferência do
servidor, ex officio, com mudança de
domicílio;
b) qualidade de estudante do
servidor (civil ou militar) ou de dependente seu; e
c) congeneridade entre as duas
instituições envolvidas, salvo se não houver curso correspondente em
estabelecimento congênere no local da nova residência ou em suas imediações, hipótese
na qual deverá ser assegurada a matrícula em instituição não congênere.