Dizer o Direito

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Empresa em recuperação judicial pode participar de licitação, desde que demonstre a sua viabilidade econômica



Recuperação judicial
A recuperação judicial consiste em um processo judicial, no qual será construído e executado um plano com o objetivo de recuperar a empresa que está em vias de efetivamente ir à falência. Logo, em vez de a empresa ir à falência (o que é nocivo para a economia, para os donos da empresa, para os funcionários etc.), tenta-se dar um novo fôlego para a sociedade empresária, renegociando as dívidas com os credores.
Na antiga Lei de Falências, esse processo era chamado de “concordata” (DL 7.661/45).
A Lei nº 11.101/2005 acabou com a “concordata” e criou um novo instituto, com finalidade semelhante chamado de recuperação judicial.
Assim, a recuperação judicial surgiu para substituir a antiga “concordata” e tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise do devedor, a fim de permitir que a atividade empresária se mantenha e, com isso, sejam preservados os empregos dos trabalhadores e os interesses dos credores.

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
Grama Baixa Terraplanagem Ltda é uma sociedade empresária que está passando por um processo de recuperação judicial.
O plano de recuperação já foi aprovado em assembleia geral de credores e homologado pelo juiz. Além disso, a empresa vem cumprindo rigorosamente as obrigações estipuladas.
Ocorre que um dos principais “clientes” desta empresa sempre foi o poder público, ou seja, antes da recuperação judicial, ela já prestou, diversas vezes, serviço para a Administração Pública.
O Estado do Espírito Santo abriu uma licitação destinada a contratar uma empresa para realizar serviços de terraplanagem em um imóvel público.
A Grama Baixa tentou participar da licitação, mas foi desclassificada do procedimento. Isso porque um dos documentos exigidos pelo art. 31 da Lei nº 8.666/93 é a certidão negativa de falência ou recuperação judicial. Veja:
Art. 31.  A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:
(...)
II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física;

A empresa impetrou mandado de segurança contra a inabilitação. Diante disso, indaga-se: é possível que uma empresa que se encontra em recuperação judicial participe de procedimento licitatório?
SIM.
Se você observar novamente a redação do art. 31, II, da Lei nº 8.666/93, verá que ela ainda fala em “concordata”. Assim, o art. 31 da Lei nº 8.666/93 não teve o texto alterado para se amoldar à nova sistemática, tampouco foi derrogado (expressamente).
Diante dessa situação, surgiu a seguinte polêmica na doutrina:
As restrições impostas à antiga concordata aplicam-se agora para a recuperação judicial?
Quando o art. 31, II, da Lei 8.666/93 fala em “concordata”, deve-se ler agora “recuperação judicial”?
A empresa que participar de licitação deverá apresentar certidão negativa de recuperação judicial?
1ª corrente: SIM
2ª corrente: NÃO
Os efeitos da concordata sobre a contratação administrativa devem ser aplicados à recuperação judicial. Isso porque há a presunção de insolvência da empresa em crise.
Desse modo, empresas que estão em recuperação judicial não poderiam participar de licitações.
Como o art. 31, II, da Lei de Licitações não foi alterado para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, a Administração não pode exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa.
Assim, as empresas submetidas à recuperação
judicial estão dispensadas da apresentação da referida certidão.
É a posição, por exemplo, de Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 638).
É a posição defendida por Joel de Menezes Niebuhr (Licitação Pública e Contrato Administrativo. 4ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 447).
Foi a corrente adotada pelo STJ.

O art. 31, I,I da Lei nº 8.666/93 é uma norma restritiva e, por isso, não admite interpretação que amplie o seu sentido. Por força do princípio da legalidade, é vedado à Administração conferir interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não o dispuser de forma expressa.
Logo, é incabível a automática inabilitação de empresas em recuperação judicial unicamente pela não apresentação de certidão negativa.
Vale ressaltar que o art. 52, I, da Lei nº 11.101/2005, que é posterior à Lei de Licitações, prevê a possibilidade de as empresas em recuperação judicial contratarem com o Poder Público (devendo apresentar ao Poder Público as certidões positivas de débitos). Ora, se tais empresas podem contratar com o poder público, devemos interpretar que o legislador permitiu que elas participassem de licitações, considerando que, em regra, só se pode contratar com a Administração Pública após prévio procedimento licitatório. Veja:
Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato:
(...)
II – determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei;

O escopo (objetivo) primordial da Lei nº 11.101/2005 é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Diferentemente da concordata, cujo objetivo precípuo era o de assegurar a proteção dos credores e a recuperação de seus créditos, a nova Lei busca a proteção da empresa que se encontre em dificuldades econômicas.
A interpretação sistemática dos dispositivos da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 11.101/2005 nos leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada entre os princípios nelas imbuídos, pois a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.
Negar à pessoa jurídica em crise econômico-financeira o direito de participar de licitações públicas, única e exclusivamente pela ausência de entrega da certidão negativa de recuperação judicial, vai de encontro ao sentido atribuído pelo legislador ao instituto recuperacional.

Cautelas podem ser exigidas para se demonstrar a capacidade econômica da empresa
É necessário que se adotem providências a fim de avaliar se a empresa recuperanda participante do certame, caso seja vencedora, tem condições de suportar os custos da execução do contrato. Significa dizer, é preciso aferir se a empresa sujeita ao regime da Lei nº 11.101/2005 possui aptidão econômica e financeira, conforme exige o art. 27, III, da Lei nº 8.666/93:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
(...)
III - qualificação econômico-financeira;

Daí se infere que a dispensa de apresentação de certidão negativa não exime a empresa em recuperação judicial de comprovar a sua capacidade econômica para poder participar da licitação.
Se a empresa estiver em recuperação judicial, caberá à Administração Pública (pregoeiro ou comissão de licitação) diligenciar a fim de avaliar a real situação de capacidade econômico-financeira da empresa licitante.
Dessa forma, a exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua capacidade econômica.

Em suma:
Sociedade empresária em recuperação judicial pode participar de licitação, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica.
STJ. 1ª Turma. AREsp 309.867-ES, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 26/06/2018 (Info 631).



Print Friendly and PDF