Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, por meio de um site da
internet, importou da Holanda para o Brasil 26 frutos aquênios, popularmente
conhecidos como “sementes” de maconha (cannabis
sativa linneu).
Quando as sementes chegaram ao
Brasil, via postal, o pacote foi inspecionado pelo setor de Alfândega da
Receita Federal no aeroporto, que descobriu seu conteúdo por meio da máquina de
raio-X e avisou a Polícia Federal.
Diante disso, João foi denunciado
pelo MPF pela prática de tráfico transnacional de drogas (art. 33 c/c art. 40,
I, ambos da Lei nº 11.343/2006).
O Procurador da República
argumentou que, pela grande quantidade de sementes encomendadas e pela própria
palavra do denunciado, restou demonstrado que ele pretendia iniciar uma
plantação de cannabis sativa
(maconha) em seu quintal.
A questão chegou até o STF. Houve
crime?
NÃO. O STF entende que não há
crime na importação de sementes de maconha.
Vamos entender com calma.
O que é considerado “droga” para
fins penais?
O parágrafo
único do art. 1º da Lei nº 11.343/2006 prevê que, para uma substância ser
considerada como "droga", é necessário que possa causar dependência,
sendo isso definido em uma lista a ser elencada em lei ou ato do Poder
Executivo federal. Veja:
Art. 1º (...) Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como
drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim
especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo
Poder Executivo da União.
O art. 66 da
mesma Lei complementa esta regra:
Art. 66. Para fins do disposto no
parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da
lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes,
psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS
nº 344, de 12 de maio de 1998.
Assim, o conceito é técnico-jurídico
e só será considerada droga o que a lei (em sentido amplo) assim reconhecer
como tal. Mesmo que determinada substância cause dependência física ou
psíquica, se ela não estiver prevista no rol das substâncias legalmente
proibidas, ela não será tratada como droga para fins de incidência da Lei nº
11.343/2006 (ex: álcool).
Este rol existe? Onde ele está
previsto?
O rol das substâncias que são
consideradas como “droga”, para fins penais, continua previsto na Portaria
SVS/MS nº 344/1998, considerando que ainda não foi editada uma nova lista.
Perceba, portanto, que estamos
diante de uma norma penal em branco heterogênea (em sentido estrito ou
heteróloga). Isso porque o complemento do que é considerado droga é fornecido
por um ato normativo elaborado por órgão diverso daquele que editou a Lei. A
Lei nº 11.343/2006 foi editada pelo Congresso Nacional e o seu complemento é
dado por uma portaria, editada pela ANVISA, autarquia ligada ao Poder
Executivo.
Tetrahidrocanabinol (THC)
Tetrahidrocanabinol, também
conhecido como THC, é uma substância psicoativa encontrada na planta Cannabis Sativa, mais popularmente
conhecida como maconha.
A quantidade de THC na maconha
pode variar de acordo com uma série de fatores, como o tipo de solo, a estação
do ano, a época em que foi colhida, o tempo de colheita e consumo etc.
A THC é prevista expressamente
como droga na Portaria SVS/MS nº 344/1998, da ANVISA.
Sementes de maconha não têm THC
Os frutos aquênios da cannabis sativa linneu não apresentam na
sua composição o THC.
A planta da cannabis sativa linneu está prevista na lista “E” da Portaria
SVS/MS 344/1998.
Ocorre que essa Portaria prevê
apenas a planta como sendo droga (e não a sua semente).
Assim, a semente de maconha não
pode ser considerada droga.
O § 1º do art. 33 da LD prevê que
também é crime a importação de “matéria-prima” ou “insumo” destinado à
preparação de drogas. A semente de maconha poderia ser considerada como “matéria-prima”
ou “insumo” destinado à preparação de drogas?
Também não.
A semente de maconha não pode ser
considerada matéria-prima ou insumo destinado à preparação de drogas. Isso
porque ela não é um “ingrediente” para a confecção de drogas. Não se faz droga misturando
a semente de maconha com qualquer coisa. Dito de outro modo: não se prepara
droga com semente de maconha. Isso porque a semente de maconha não tem
substância psicoativa (ela não tem nada em sua composição que atue no sistema
nervoso central gerando euforia, mudança de humor, prazer etc.).
Em seu voto,
o Ministro Gilmar Mendes assentou:
“Na doutrina,
afirma-se que a matéria-prima, conforme Vicente Greco Filho e João Daniel
Rassi, é a substância de que podem ser extraídos ou produzidos os entorpecentes
que causem dependência física ou psíquica (GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João
Daniel. Lei de drogas anotada. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 99). Ou seja,
a matéria-prima ou insumo devem ter condições e qualidades químicas para,
mediante transformação ou adição, por exemplo, produzirem a droga ilícita, o
que não é o caso das sementes da planta Cannabis sativa, que não possuem a
substância psicoativa (THC)”.
Desse modo, a semente da cannabis sativa não é, em si, droga (não
está listada na Portaria) e também não pode ser considerada matéria-prima ou
insumo destinado à preparação de droga ilícita.
Mas é possível que o indivíduo
plante a semente de maconha e que daí nasça a planta da cannabis sativa linneu...
A planta tem THC (substância psicoativa proibida)...
É verdade. Pode ser que o
indivíduo germine a semente, que isso vire uma muda, que ele cultive a muda e
que se torne a planta da maconha.
No entanto, a
mera importação da semente não é crime algum porque configuraria, no máximo,
mero ato preparatório da figura típica prevista no § 1º do art. 28 da Lei nº
11.343/2006:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes
penas:
I - advertência sobre os efeitos das
drogas;
II - prestação de serviços à
comunidade;
III - medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem,
para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à
preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica.
(...)
Nem chega a ser, portanto, ato
executório do § 1º do art. 28 porque o agente não iniciou a semeadura ou o
cultivo.
A importação das sementes não
poderia configurar a tentativa da prática do crime do art. 28, § 1º da Lei nº
11.343/2006?
Particularmente, penso que não.
Isso porque, como já dito, o agente não iniciou nenhuma conduta executória dos
verbos previstos no tipo penal (semear, cultivar ou colher).
No entanto, ainda que se
considere que se iniciou a execução e que ele não se consumou por
circunstâncias alheias à vontade do agente, não há razão para a instauração de
processo penal.
O preceito secundário do art. 28
da LD prevê como sanções penais:
I - advertência sobre os efeitos
das drogas;
II - prestação de serviços à
comunidade;
III - medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo.
Logo, como não é prevista pena
privativa de liberdade para esta conduta, é inviável a aplicação da regra da
tentativa do art. 14, II, do CP.
A conduta pode ser considerada
contrabando (art. 334-A do CP)?
Existe divergência sobre o tema.
O contrabando consiste na
importação de mercadoria
proibida (art. 334-A do CP).
A importação
de sementes desprovidas de inscrição no Registro Nacional de Cultivares é proibida
pelo art. 34 da Lei nº 10.711/2003:
Art. 34. Somente poderão ser importadas
sementes ou mudas de cultivares inscritas no Registro Nacional de Cultivares.
A semente de cannabis sativa não consta da lista do Registro Nacional de
Cultivares (RNC), não podendo, portanto, ser importada, salvo para tratamentos
de saúde (Portaria RDC/ANVISA nº 66/2016).
No entanto, há vários julgados
que defendem que não se deve condenar o réu porque não há, neste caso, lesão ao
bem jurídico tutelado pela norma prevista no art. 334-A do Código Penal. Isso
porque, dada a pequena quantidade e a natureza das sementes, considera-se que
não há ofensa aos bens jurídicos protegidos pelo delito de contrabando
(proteção da saúde, da moralidade administrativa e da ordem pública). Esse é o
entendimento que prevalece, por exemplo, no TRF3: HC 67576 -
0010869-41.2016.4.03.0000, Rel. Juiz Convocado Ricardo Nascimento, julgado em
26/07/2016.
Em suma:
Não
configura crime a importação de pequena quantidade de sementes de maconha.
STF. 2ª Turma. HC 144161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em
11/9/2018 (Info 915).
Posição do MPF
A 2ª Câmara de Coordenação e
Revisão do Ministério Público Federal possui o entendimento de que:
• a importação de pequena
quantidade de sementes de maconha não configura o crime do art. 33, § 1º nem o
delito do art. 28, § 1º, ambos da Lei nº 11.343/2006;
• esta conduta, em tese,
amolda-se ao crime de contrabando (art. 334-A do CP);
• a importação de pequena
quantidade de sementes de maconha para o plantio destinado ao consumo próprio
induz à mínima ofensividade da conduta, à ausência de periculosidade da ação e
o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento, razões que comportam a
aplicação do princípio da insignificância à hipótese.
• assim, a conduta é tipificada
como contrabando, mas deve-se aplicar o princípio da insignificância, razão pela
qual é correta a decisão do Procurador da República que não denuncia o indiciado
nestes casos.
Foi o que decidiu a 2ª CCR, em
09/11/2018, no processo nº 0001111-51.2018.4.03.6181, Relatora Subprocuradora
Geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen.
No mesmo sentido é o entendimento
do Conselho Institucional do Ministério Público Federal – CIMPF: a importação
de sementes de maconha pela via postal, em pequenas quantidades, não deve gerar
denúncia, ante a configuração da prática do delito descrito no art. 334-A, do
CP, e, neste, a incidência do princípio da insignificância (procedimentos
0008476-98.2014.4.03.6181 e 0002458-64.2015.4.03.6104).
Qual é a posição do STJ sobre o
tema?
O STJ está
dividido, por enquanto:
A importação de pequenas quantidade de sementes de
maconha configura tráfico de drogas?
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5ª Turma: SIM
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6ª Turma: NÃO
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A
importação clandestina de sementes de cannabis
sativa linneu (maconha) configura o tipo penal descrito no art. 33, § 1º,
I, da Lei nº 11.343/2006.
Não
é possível aplicar o princípio da insignificância.
STJ.
5ª Turma. REsp 1723739/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/10/2018.
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Tratando-se
de pequena quantidade de sementes e inexistindo expressa previsão normativa
que criminaliza, entre as condutas do art. 28 da Lei de Drogas, a importação
de pequena quantidade de matéria prima ou insumo destinado à preparação de
droga para consumo pessoal, forçoso reconhecer a atipicidade do fato.
STJ.
6ª Turma. AgRg no AgInt no REsp 1616707/CE, Rel. Min. Antonio Saldanha
Palheiro, julgado em 26/06/2018.
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