segunda-feira, 29 de outubro de 2018
São imprescritíveis as ações de reintegração em cargo público quando o afastamento se deu em razão de perseguição política praticada na época da ditadura militar
segunda-feira, 29 de outubro de 2018
Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
era servidor da Assembleia Legislativa do Paraná.
Em
1963, João foi “desligado” de seu cargo (demitido) em razão de perseguição
política perpetrada na época da ditadura militar.
Em
2011, João requereu o reconhecimento de anistiado político à “Comissão de
Anistia”, órgão do Ministério da Justiça que tem a finalidade de examinar os
requerimentos formulados e assessorar o Ministro de Estado em suas decisões.
Também em 2011, João ajuizou ação ordinária contra o
Estado do Paraná pedindo a sua reintegração ao cargo.
O pedido de João foi baseado no art. 8º
do ADCT da CF/88 e na Lei nº 10.599/2002, que regulamentou este dispositivo constitucional:
ADCT
Art. 8º. É concedida anistia aos que,
no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição,
foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos
de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo
Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo
Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na
inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se
estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade
previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e
peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e
observados os respectivos regimes jurídicos.
Lei nº 10.599/2002
Art. 1º O Regime do Anistiado Político
compreende os seguintes direitos:
(...)
V - reintegração dos servidores
públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade
profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em
serviço público e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional
por motivo político.
Parágrafo único. Aqueles que foram afastados em processos
administrativos, instalados com base na legislação de exceção, sem direito ao
contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e
fundamentos da decisão, serão reintegrados em seus cargos.
Vale
ressaltar que João foi formalmente reconhecido como anistiado político por
Portaria do Ministro da Justiça.
A
Procuradoria Geral do Estado, entre outras matérias defensivas, suscitou a ocorrência
de prescrição. Segundo este órgão, a Lei nº 10.599/2002 promoveu uma renúncia tácita
ao prazo prescricional. Isso significa que todas as pessoas prejudicadas
poderiam ingressar com ações pedindo a reintegração, mas desde que fizessem no
prazo de até 5 anos (art. 1º do Decreto nº 20.910/1932) contados da publicação
da Lei nº 10.599/2002.
O
STJ concordou com a tese da PGE? A pretensão veiculada por João encontra-se realmente
prescrita?
NÃO. Não houve prescrição porque essa
pretensão é imprescritível. Veja o que decidiu o STJ:
São
imprescritíveis as ações de reintegração em cargo público quando o afastamento
se deu em razão de atos de exceção praticados durante o regime militar.
STJ. 1ª Turma. REsp 1.565.166-PR, Rel.
Min. Regina Helena Costa, julgado em 26/06/2018 (Info 630).
A
Constituição Federal não prevê prazo prescricional para o exercício do direito
de agir quando se trata de defender o direito inalienável à dignidade humana,
sobretudo quando violados durante o período do regime de exceção.
É
certo que a prescrição é a regra no ordenamento jurídico. Assim, em regra, para
uma pretensão ser considerada imprescritível deverá haver um comando expresso no
texto constitucional, como é o caso do art. 37, § 5º da CF/88.
O
STJ, no entanto, excepcionalmente, afirma que, mesmo sem uma previsão expressa,
é possível considerar que as pretensões que buscam reparações decorrentes do
regime militar de exceção são imprescritíveis considerando que envolvem a
concretização da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido:
(...) 1. A dignidade da pessoa humana,
valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
experimenta os mais expressivos atentados quando engendradas a tortura e a
morte, máxime por delito de opinião.
(...)
4. À luz das cláusulas pétreas
constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da
dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa,
posto seu fundamento.
5. Consectariamente, não há falar em
prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime
porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir,
correspondente ao direito inalienável à dignidade.
(...)
12. A exigibilidade a qualquer tempo
dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que
o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior
estabelecendo no art. 1º que "todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos".
13. A Constituição federal funda-se na
premissa de que a dignidade da pessoa humana é inarredável de qualquer sistema
de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados
direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da
jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito
processual.
(...)
STJ. 1ª Turma. REsp 1165986/SP, Rel. Min.
Luiz Fux, julgado em 16/11/2010.
Assim,
é pacífico o entendimento no STJ no sentido de que
As ações de indenização por danos
morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de
exceção são imprescritíveis.
Não se aplica o prazo prescricional de
5 anos previsto no art. 1º do Decreto 20.910/1932.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.374.376-CE, Rel.
Min. Herman Benjamin, julgado em 25/6/2013 (Info 523).
Mas
no caso de João ele não está pedindo indenização por danos morais e sim a reintegração
no cargo...
Mesmo
assim. O STJ afirmou que a ação buscando a reintegração ao cargo público deve seguir
o mesmo regramento das ações de indenização. Isso porque a causa de pedir
também decorre da violação de direitos fundamentais perpetrada durante o regime
militar.
Ora,
o retorno ao serviço público representa uma forma de reparação, estando
intimamente ligada ao princípio da dignidade humana, tendo em vista que o trabalho
representa uma das expressões mais relevantes do ser humano.
Entendi...
isso significa que João, além de voltar ao cargo público que ocupava, terá
direito a toda remuneração retroativa, desde 1963, data em que ele foi
demitido?
NÃO.
Não se deve confundir imprescritibilidade da ação de reintegração com
imprescritibilidade dos efeitos patrimoniais e funcionais dela decorrentes, sob
pena de prestigiar a inércia do autor, que poderia ter buscado seu direito desde
a publicação da Constituição da República.
Isso
significa dizer que:
•
João terá direito de ser reintegrado;
• ele terá direito à remuneração retroativa, mas limitada
aos últimos 5 anos, contados para trás, tendo marco o ajuizamento. Como o
pedido foi formulado em 2011, ele terá direito à remuneração retroativa desde
2006.
Essa compreensão, inclusive, restou
estampada no art. 6º, § 6º, da Lei nº 10.559/2002:
Art. 6º O valor da prestação mensal,
permanente e continuada, será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia
se na ativa estivesse, considerada a graduação a que teria direito, obedecidos
os prazos para promoção previstos nas leis e regulamentos vigentes, e asseguradas
as promoções ao oficialato, independentemente de requisitos e condições,
respeitadas as características e peculiaridades dos regimes jurídicos dos
servidores públicos civis e dos militares, e, se necessário, considerando-se os
seus paradigmas.
(...)
§ 6º Os valores apurados nos termos
deste artigo poderão gerar efeitos financeiros a partir de 5 de outubro de
1988, considerando-se para início da
retroatividade e da prescrição quinquenal a data do protocolo da petição ou
requerimento inicial de anistia, de acordo com os arts. 1º e 4º do Decreto nº 20.910,
de 6 de janeiro de 1932.
Assim,
são imprescritíveis as ações de reintegração a cargo público decorrentes de
perseguição, tortura e prisão, praticadas durante o regime militar, por motivos
políticos, ficando, contudo, eventuais efeitos
retroativos, sujeitos à prescrição quinquenal.