No dia de ontem (06/09/2018), o Deputado Federal e candidato
à Presidência da República Jair Messias Bolsonaro recebeu uma facada durante a
realização de um ato de campanha na cidade de Juiz de Fora (MG).
O agressor foi preso em flagrante.
O objetivo deste post é analisar, no exercício do
magistério, qual o tipo penal que o agente teria praticado e a competência
jurisdicional para apurar e julgar a conduta.
Obviamente, as conclusões aqui expostas são baseadas nas
informações que foram divulgadas nos meios de comunicação social. Somente com o
devido processo legal é que teremos respostas mais seguras. A finalidade é
apenas iniciar o debate, sob o ponto de vista estritamente jurídico.
Qual foi o crime, em tese, praticado pelo agressor de Bolsonaro?
Existem duas opções possíveis:
1) TENTATIVA DE HOMICÍDIO
Tentativa de homicídio
qualificado por motivo torpe e mediante dissimulação (art. 121, I e IV, c/c
art. 14, II, do CP):
Art. 121 (...)
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de
recompensa, ou por outro motivo torpe;
(...)
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne
impossivel a defesa do ofendido;
Pena - reclusão, de doze a trinta
anos.
Motivo torpe ocorre quando o agente pratica o crime por uma
razão repugnante, moralmente reprovável. No caso, segundo as notícias divulgadas,
o agressor confessou o crime e disse que agiu por “motivações religiosas” e “de
cunho político”.
Assim, tudo leva a crer que a motivação seria realmente política,
ou seja, o agressor teria praticado o crime por não concordar com as ideias
políticas e ideológicas defendidas pelo Deputado, o que representa motivo
moralmente reprovável.
“Dissimulação é atuação disfarçada, hipócrita, que oculta a
real intenção do agente. O agente aproxima-se da vítima para posteriormente matá-la,
valendo-se das facilidades proporcionadas pelo seu modo de agir.” (MASSON,
Cleber. Direito Penal. Vol. 2., São
Paulo: Método, 2017, p. 38). No caso, o agente demonstrou falsa simpatia para
com o candidato a fim de poder se aproximar dele e, aproveitando-se de sua distração
enquanto ele cumprimentava o público, deu a estocada.
O advogado do agressor, em entrevista, afirmou que a intenção do agente
não era a de matar, mas sim de lesionar o candidato. O que isso significa?
Essa argumentação indica, em princípio, que uma das teses da
defesa será alegar que não houve tentativa de homicídio, mas sim lesão corporal
(art. 129, § 1º, II, do CP).
Penso, contudo, que se trata de uma tese difícil de ser acolhida.
Será um trabalho difícil da defesa comprovar que o agente
que dá uma estocada no abdome da vítima queria apenas lesionar (e não matar).
Fosse a intenção apenas ferir, não seria utilizada uma faca ou, então, o golpe
seria no braço, na perna ou em outra região não vital do corpo humano.
Além disso, ainda que a defesa consiga comprovar que não
houve dolo direto de matar, o agente poderia ser condenado por tentativa de
homicídio com dolo eventual. É senso comum que uma facada profunda no abdome
pode gerar a morte da pessoa. O agressor, mesmo tendo consciência disso,
aceitou a possibilidade concreta de que a morte da vítima acontecesse.
Dessa forma, o mais provável é que o agente seja realmente
denunciado e responda o processo penal por tentativa de homicídio.
2) CRIME CONTRA A SEGURANÇA NACIONAL (LEI Nº 7.170/83)
Lei nº 7.170/83
A Lei nº 7.170/83 define os
crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu
processo e julgamento. Veja o que diz o seu art. 1º:
Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que
lesam ou expõem a perigo de lesão:
I - a integridade territorial e a
soberania nacional;
II - o regime representativo e
democrático, a Federação e o Estado de Direito;
III - a pessoa dos chefes dos Poderes
da União.
A Lei nº 7.170/83 tipifica os CRIMES POLÍTICOS no Brasil.
Necessidade
de prova da motivação política
Para
que se configure crime político, além de a conduta estar enquadrada em um dos
tipos previstos na Lei nº 7.170/83, exige-se também que fique comprovada a
motivação política do agente.
Assim,
para que seja crime político, exige-se um especial fim de agir do réu (vulgo “dolo
específico”), que é a motivação política do agente.
Desse
modo, pode-se dizer que para que uma conduta seja enquadrada em um dos tipos
penais previstos na Lei de Segurança Nacional, isto é, para que seja
considerada crime político, exige-se o preenchimento de requisitos de ordem
objetiva (art. 2º, II c/c art. 1º) e de ordem subjetiva (art. 2º, I):
1)
Requisito de ordem OBJETIVA: lesão real ou potencial a um dos bens jurídicos
listados no art. 1º da Lei nº 7.170/83.
2)
Requisito de ordem SUBJETIVA: o agente deve ter motivação e objetivos políticos
em sua conduta.
Nesse
sentido:
(...) O Supremo Tribunal Federal, a
partir de interpretação sistemática da Lei nº 7.170/83, assentou que, para a
tipificação de crime contra a segurança nacional, não basta a mera adequação
típica da conduta, objetivamente considerada, à figura descrita no art. 12 do
referido diploma legal.
2. Da conjugação dos arts. 1º e 2º da
Lei nº 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i)
motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à
integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e
democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. (...)
STF. Plenário. RC 1472, Rel. Min. Dias
Toffoli, julgado em 25/05/2016.
Requisito
de ordem SUBJETIVA
No
caso concreto, tudo leva a crer que a motivação do agente seria realmente
política, ou seja, o agressor teria praticado o crime por não concordar com as
ideias políticas defendidas pelo candidato e para retirá-lo do pleito.
Vale
ressaltar que o agressor teria sido supostamente filiado, durante anos, a um partido
político que se opõe à ideologia sustentada por Bolsonaro.
O
objetivo do crime, portanto, seria político.
Esclareço,
mais uma vez, que somente a investigação poderá trazer mais elementos
informativos. Estamos aqui trabalhando com hipóteses.
Requisito
de ordem OBJETIVA
O
requisito de ordem objetiva também está preenchido, considerando que a
tentativa de matar um candidato à Presidência da República que lidera as
pesquisas eleitorais representa uma conduta que gera perigo de lesão ao regime
representativo e democrático e ao próprio Estado de Direito (art. 1º, II, da
Lei nº 7.170/83).
Desse
modo, a conduta praticada, em tese, ao tentar ceifar a vida de um dos
candidatos à Presidência da República, ofende o pluralismo político (art. 1º,
V, da CF/88) e a soberania popular, que é exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14).
E
qual delito da Lei nº 7.170/83 teria sido praticado?
O crime do art. 20, parágrafo único, da
Lei nº 7.170/83:
Art. 20. Devastar, saquear, extorquir,
roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar
explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo,
por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção
de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o
dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.
Vale
ressaltar que o art. 20, no que tange ao terrorismo, foi derrogado pela Lei nº
13.260/2016 (Lei do Terrorismo). No entanto, naquilo que não se refira a atos
terroristas, penso que o dispositivo continua válido.
Aliás,
mesmo antes da Lei nº 13.260/2016, a doutrina majoritária já afirmava que o
referido art. 20 não servia para tipificar validamente o terrorismo porque não
conceituou de forma precisa e taxativa os atos de terrorismo.
Princípio
da especialidade
Sendo
a conduta prevista tanto no Código Penal como na Lei nº 7.170/83, por que
deverá prevalecer a tipificação como crime político?
Porque se trata de previsão específica.
Assim, cumpridos os requisitos subjetivo e objetivo e encontrando tipificação em
um dos dispositivos da Lei nº 7.170/83, a conduta deverá ser considerada crime
político, conforme dispõe o seu art. 2º:
Art. 2º Quando o fato estiver também
previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis
especiais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei:
I - a motivação e os objetivos do
agente;
II - a lesão real ou potencial aos
bens jurídicos mencionados no artigo anterior.
Indiciamento pela PF e prisão preventiva
Segundo informa a imprensa, a Polícia Federal de Juiz de
Fora (MG) indiciou o agressor pela prática do crime do art. 20 da Lei de
Segurança Nacional adotando, em tese, essa segunda hipótese.
A Juíza Federal da 2ª Vara Federal de Juiz de Fora (MG), em
juízo preliminar, concordou com a tipificação e decretou a prisão preventiva do
agressor que permanecerá custodiado em um Presídio Federal.
DE QUEM É A COMPETÊNCIA PARA JULGAR O CRIME?
JUSTIÇA FEDERAL (art. 109, IV, da CF/88).
1) Se a conduta for tipificada como tentativa de homicídio (art. 121, I
e IV, c/c art. 14, II, do CP):
JUSTIÇA FEDERAL, com base no
art. 109, IV, da CF/88, pelo fato de o crime ter sido praticado em detrimento
de interesse da União:
Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:
(...)
IV - (...) as infrações penais
praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União (...);
A tese é a seguinte: a conduta foi praticada para retirar da
disputa um candidato à Presidência da República. As eleições para o cargo de
Presidente da República são nacionais e regidas pelo Tribunal Superior
Eleitoral.
Está sendo selecionada a pessoa que irá ser o chefe do Poder
Executivo federal, havendo, portanto, nítido interesse federal na normalidade e
lisura do pleito (por exemplo: art. 89, I; art. 158, III; art. 205, do Código
Eleitoral).
Em reforço a essa conclusão, veja o que dizem a Lei nº 7.474/86
e o Decreto nº 6.381/2008:
Lei nº 7.474/86:
Art. 2º O Ministério da Justiça
responsabilizar-se-á pela segurança dos candidatos à Presidência da República,
a partir da homologação em convenção partidária.
Decreto nº 6.381/2008:
Art. 10. Os candidatos à Presidência da República
terão direito a segurança pessoal, exercida por agentes da Polícia Federal, a
partir da homologação da respectiva candidatura em convenção partidária.
Reparem, portanto, que a União possui o compromisso legal de
garantir a segurança dos candidatos à Presidência da República. Dessa forma, o
atentado contra a vida do referido candidato representou um crime praticado em detrimento
de interesse federal legalmente protegido.
Ressalte-se que o fato de Bolsonaro ser Deputado Federal, em
princípio, não influencia na definição da competência. Isso porque somente são
de competência da Justiça Federal os crimes praticados contra servidor público
federal, quando relacionados com o exercício da função
(Súmula 147-STJ). Em outras palavras, não basta o delito ter sido cometido
contra servidor público federal. Para que haja competência da Justiça Federal,
é necessário que a infração penal esteja relacionada com o exercício da função
pública federal desempenhada pelo funcionário.
Ao que parece, o delito não foi praticado em virtude do
cargo de Deputado Federal de Bolsonaro, mas sim em razão de sua candidatura a
Presidente da República.
Situação diferente será se o agressor declarar, por exemplo,
que tentou matá-lo porque não gosta dos discursos dele como parlamentar ou pela
forma como ele vota no Congresso Nacional. Em situações como essa, aí sim a competência
seria da Justiça Federal.
2) Se a conduta for tipificada como Crime contra a Segurança Nacional (art.
20 da Lei nº 7.170/83):
JUSTIÇA FEDERAL, com base no
art. 109, IV, da CF/88, pelo fato de se tratar de crime político:
Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:
(...)
IV - os crimes políticos (...);
Quais são os crimes políticos?
Os crimes políticos a que se refere este inciso IV do art. 109 da
CF/88 são aqueles previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83).
Cuidado com o art. 30 da Lei nº 7.170/83
O art. 30 da Lei nº 7.170/83 afirma que os crimes contra a
Segurança Nacional são de competência da Justiça Militar. Este dispositivo não foi recepcionado pelo art. 109, IV, da CF/88, ou seja, a regra
ali exposta não é mais válida.
Assim, com a CF/88, os crimes previstos na Lei de Segurança
Nacional passaram a ser de competência da Justiça Federal comum (Juiz Federal
de 1ª instância).
Qual será a diferença entre a hipótese 1 (tentativa de homicídio) e a
hipótese 2 (crime político) no que tange à competência?
Em ambos os casos, a competência será da Justiça Federal. No
entanto, temos aqui uma interessantíssima diferença:
Hipótese 1 (TENTATIVA DE HOMICÍDIO):
A competência para julgar o réu será do Tribunal do Júri Federal (art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/88).
Em outras palavras, em tese, o Procurador da República irá
oferecer denúncia na Justiça Federal de 1ª instância; o Juiz Federal irá
receber; será realizada instrução e, havendo pronúncia, o réu será levado a
Júri Popular, sendo julgado por 7 pessoas do povo, em uma sessão presidida por
um Juiz Federal.
O recurso contra esta sentença será julgado pelo TRF da 1ª Região.
Depois da decisão do TRF, em tese, ainda seria possível a
interposição de recursos especial (STJ) e extraordinário (STF).
Hipótese 2 (CRIME POLÍTICO):
A competência para julgar o réu será do Juiz Federal de 1ª instância (Juízo Federal de Juiz de Fora/MG).
Contra a sentença
do Juiz Federal que julgar o crime (condenando ou absolvendo) não caberá
apelação, mas sim recurso ordinário constitucional (também chamado de recurso
criminal ordinário), de competência do STF:
Art. 102. Compete
ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,
cabendo-lhe:
II - julgar, em recurso
ordinário:
b) o crime
político;
Trata-se, portanto, de um peculiar caso no qual uma sentença de
Juiz Federal é apreciada diretamente pelo STF em grau de recurso. Vale
ressaltar que o STF funcionará como “tribunal de apelação”, ou seja, ele poderá
inclusive reexaminar as provas.
Posição pessoal
Posição pessoal
Até agora, com os elementos informativos que foram colhidos, penso correta a tipificação da conduta no art. 20 da Lei de Segurança Nacional, sendo a competência da Justiça Federal.
Faço, contudo, mais uma vez, a advertência de que o objetivo do post não é o de defender a adoção desta solução jurídica ao caso. A finalidade é unicamente discutir juridicamente as hipóteses penais e processuais possíveis, com objetivos meramente acadêmicos.
Faço, contudo, mais uma vez, a advertência de que o objetivo do post não é o de defender a adoção desta solução jurídica ao caso. A finalidade é unicamente discutir juridicamente as hipóteses penais e processuais possíveis, com objetivos meramente acadêmicos.
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor