Dizer o Direito

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A não realização da audiência de custódia enseja a nulidade da prisão preventiva?




Conceito
Audiência de custódia consiste...
- no direito que a pessoa presa possui
- de ser conduzida (levada),
- sem demora (CNJ adotou o máximo de 24h),
- à presença de uma autoridade judicial (magistrado)
- que irá analisar se os direitos fundamentais dessa pessoa foram respeitados (ex.: se não houve tortura)
- se a prisão em flagrante foi legal ou se deve ser relaxada (art. 310, I, do CPP)
- e se a prisão cautelar (antes do trânsito em julgado) deve ser decretada (art. 310, II) ou se o preso poderá receber a liberdade provisória (art. 310, III) ou medida cautelar diversa da prisão (art. 319).

Previsão
A audiência de custódia é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que ficou conhecida como "Pacto de San Jose da Costa Rica", promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92.
Veja o que diz o artigo 7º, item 5, da Convenção:
Artigo 7º Direito à liberdade pessoal
(...)
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)

Segundo entende o STF, os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil foi signatário incorporam-se em nosso ordenamento jurídico com status de norma jurídica supralegal (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009).
Desse modo, na visão do STF, a Convenção Americana de Direitos Humanos é norma jurídica no Brasil, hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, só estando abaixo, portanto, das normas constitucionais.
Obs.: na época em que a CADH foi aprovada no Brasil, ainda não havia a previsão do § 3º do art. 5º da CF/88.

Nomenclatura
O termo "audiência de custódia", apesar de ter sido consagrado no Brasil, não é utilizado expressamente pela CADH, sendo essa nomenclatura uma criação doutrinária.
Durante os debates no STF a respeito da ADI 5240/SP, o Min. Luiz Fux defendeu que essa audiência passe a se chamar “audiência de apresentação”. Desse modo, deve-se tomar cuidado com essa expressão caso seja cobrada em uma prova. Na prática, contudo, todo mundo utiliza o nome “audiência de custódia”.

Regulamentação
Apesar de existir um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional (PLS nº 554/2011), o certo é que a audiência de custódia ainda não foi regulamentada por lei no Brasil. Isso significa que não existe uma lei estabelecendo o procedimento a ser adotado para a realização dessa audiência.
Diante desse cenário, e a fim de dar concretude à previsão da CADH, o CNJ, no fim de 2015, aprovou a Resolução 213/2015, que dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas.

Qual é a amplitude da expressão “sem demora” prevista na CADH? Em até quanto tempo a pessoa presa deverá ser levada para a audiência de custódia?
Não existe uma previsão específica de tempo na CADH. A doutrina majoritária defende, contudo, que esse prazo deve ser de 24 horas, aplicando-se, subsidiariamente, a regra do § 1º do art. 306 do CPP. Esse foi o prazo adotado pelo CNJ na Resolução 213/2015.
Assim, de acordo com a Resolução 213/2015 do CNJ, toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, será obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

Comunicação apenas por escrito não é suficiente
O fato de a prisão em flagrante ter sido comunicada à autoridade judicial não supre a necessidade de apresentação pessoal para a audiência de custódia.

Se for preso com foro privativo
No caso de prisão em flagrante delito da competência originária de Tribunal, a apresentação do preso poderá ser feita a um juiz que o Presidente do Tribunal ou Relator designar para esse fim.

Se o preso estiver internado ou impossibilitado de comparecer
Estando a pessoa presa acometida de grave enfermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentada ao juiz no prazo do caput, deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ela se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação.

De quem é a responsabilidade pelo deslocamento
O deslocamento da pessoa presa em flagrante delito ao local da audiência e desse, eventualmente, para alguma unidade prisional específica, no caso de aplicação da prisão preventiva, será de responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária ou da Secretaria de Segurança Pública.

Se não houver juiz na comarca
Se, por qualquer motivo, não houver juiz na comarca, a pessoa presa será levada imediatamente ao substituto legal.

Quem participa da audiência
A audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído.
É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.
Se a pessoa presa em flagrante delito constituir advogado até o término da lavratura do auto de prisão em flagrante, o Delegado de polícia deverá notificá-lo, pelos meios mais comuns, tais como correio eletrônico, telefone ou mensagem de texto, para que compareça à audiência de custódia.

Direito à conversa reservada antes de começar a audiência
Antes da apresentação da pessoa presa ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio e reservado por advogado por ela constituído ou defensor público, sem a presença de agentes policiais. Deve ser reservado local apropriado para garantir a confidencialidade do atendimento prévio com advogado ou defensor público.

O que o juiz deverá perguntar e fazer durante a audiência:
Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo:
1) esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial;
2) assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;
3) dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;
4) questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;
5) indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;
6) perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;
7) verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que:
a) não tiver sido realizado;
b) os registros se mostrarem insuficientes;
c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;
d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial;

8) abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;
9) adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;
10) averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar.

Perguntas do MP e depois da defesa
Após o juiz ouvir a pessoa presa, deverá conceder a palavra ao Ministério Público e depois à defesa técnica, para que estes façam reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação.

Requerimentos do MP e da defesa
Depois das perguntas, o MP e a defesa poderão requerer:
I — o relaxamento da prisão em flagrante;
II — a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;
III — a decretação de prisão preventiva;
IV — a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.

Registro em mídia
A oitiva da pessoa presa será registrada, preferencialmente, em mídia, dispensando-se a formalização de termo de manifestação da pessoa presa ou do conteúdo das postulações das partes, e ficará arquivada na unidade responsável pela audiência de custódia.
A ata da audiência conterá, apenas e resumidamente, a deliberação fundamentada do magistrado quanto à legalidade e manutenção da prisão, cabimento de liberdade provisória sem ou com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, considerando-se o pedido de cada parte, como também as providências tomadas, em caso da constatação de indícios de tortura e maus tratos.
Concluída a audiência de custódia, cópia da sua ata será entregue à pessoa presa em flagrante delito, ao Defensor e ao Ministério Público, tomando-se a ciência de todos, e apenas o auto de prisão em flagrante, com antecedentes e cópia da ata, seguirá para livre distribuição.

Se o juiz entender que não é devida ou necessária a prisão
Proferida a decisão que resultar no relaxamento da prisão em flagrante, na concessão da liberdade provisória sem ou com a imposição de medida cautelar alternativa à prisão, ou quando determinado o imediato arquivamento do inquérito, a pessoa presa em flagrante delito será prontamente colocada em liberdade, mediante a expedição de alvará de soltura, e será informada sobre seus direitos e obrigações, salvo se por outro motivo tenha que continuar presa.

Monitoração eletrônica é excepcional
A aplicação da medida cautelar diversa da prisão prevista no art. 319, inciso IX, do CPP (monitoração eletrônica), será excepcional e determinada apenas quando demonstrada a impossibilidade de concessão da liberdade provisória sem cautelar ou de aplicação de outra medida cautelar menos gravosa, sujeitando-se à reavaliação periódica quanto à necessidade e adequação de sua manutenção, sendo destinada exclusivamente a:
• pessoas presas em flagrante delito por crimes dolosos puníveis com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 anos;
• pessoas condenadas por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal
• pessoas em cumprimento de medidas protetivas de urgência acusadas por crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, quando não couber outra medida menos gravosa.

Por abranger dados que pressupõem sigilo, a utilização de informações coletadas durante a monitoração eletrônica de pessoas dependerá de autorização judicial, em atenção ao art. 5°, XII, da CF/88.

Se o preso declarar que foi torturado
Havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado.

Termo de audiência será apensado ao IP ou processo penal
O termo da audiência de custódia será apensado ao inquérito ou à ação penal.

Pessoas presas decorrentes de cumprimento de mandado também deverão ser submetidas à audiência de custódia
A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos na Resolução.
Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.

Imagine que o juiz não realizou a audiência de custódia nem decretou a prisão preventiva do flagranteado. Em outras palavras, a pessoa foi presa em flagrante e assim permaneceu sem qualquer outra decisão posterior. Essa prisão é válida?
NÃO. A custódia será considerada ilegal.


Imagine agora que o juiz não realizou a audiência de custódia, no entanto, converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva por meio de decisão. Neste caso, o Tribunal deverá revogar a prisão preventiva decretada? Para o STJ, a falta da audiência de custódia enseja, por si só, a nulidade da prisão preventiva?
Para o STJ, NÃO.

A falta da audiência de custódia não enseja nulidade da prisão preventiva, superada que foi a prisão em flagrante, devendo ser este novo título de prisão aquele a merecer o exame da legalidade e necessidade.
STJ. 6ª Turma. RHC 99.091/AL, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 04/09/2018.

A alegação de nulidade da prisão em flagrante em razão da não realização de audiência de custódia no prazo legal fica superada com a conversão do flagrante em prisão preventiva, tendo em vista que constitui novo título a justificar a privação da liberdade.
STJ. 5ª Turma. HC 444.252/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 23/08/2018.

O raciocínio do STJ é o seguinte: realmente, a falta da realização da audiência de custódia é um vício. No entanto, isso fica superado se o juiz profere uma decisão decretando a prisão preventiva. Neste caso, o indivíduo não mais estará preso pelo flagrante, mas sim pela decisão que decretou a preventiva.


E para o STF?
Não há, ainda, uma posição consolidada do STF. No entanto, encontra-se um julgado em sentido oposto ao do STJ afirmando que o vício deve sim ser declarado mesmo já tendo sido decretada a prisão preventiva:
Por força do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos e como decorrência da cláusula do devido processo legal, a realização de audiência de apresentação (“audiência de custódia”) é de observância obrigatória.
Esta audiência não pode ser dispensada sob a justificativa de que o juiz já se convenceu de que a prisão preventiva é necessária.
A audiência de apresentação constitui direito subjetivo do preso e, nessa medida, sua realização não se submete ao livre convencimento do Juiz, sob pena de cerceamento inconvencional.
A conversão da prisão em flagrante em preventiva não traduz, por si, a superação da flagrante irregularidade, na medida em que se trata de vício que alcança a formação e legitimação do ato constritivo.
Desse modo, caso o juiz não tenha decretado a prisão preventiva, o Tribunal deverá reconhecer que houve ilegalidade e determinar que o magistrado realize a audiência de custódia.
STF. 1ª Turma. HC 133992, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/10/2016.


Dizer o Direito!