Dizer o Direito

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário em caso de atos de improbidade praticados dolosamente


Prescrição
Se um direito é violado, o titular deste direito passa a ter a pretensão de buscar judicialmente a reparação do dano (de forma específica ou pelo equivalente em dinheiro).
Essa pretensão, contudo, deve ser exercida dentro de um prazo previsto na lei. Esgotado esse prazo, extingue-se a pretensão. A extinção dessa pretensão pelo decurso do prazo é chamada de prescrição.
Isso está previsto no art. 189 do Código Civil, valendo, como regra geral:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

A prescrição tem como fundamentos a pacificação social e a segurança jurídica. Se não existisse prazo para o titular do direito exercer a sua pretensão, todas as relações jurídicas seriam sempre marcadas pela incerteza e instabilidade, considerando que um fato ocorrido há anos ou mesmo décadas poderia ser questionado.
A prescrição está presente nos diversos ramos do Direito, inclusive no Direito Administrativo.

Prescrição e atos de improbidade administrativa
Os atos de improbidade administrativa, assim como ocorre com as infrações penais, também estão sujeitos a prazos prescricionais.
Logo, caso os legitimados ativos demorem muito tempo para ajuizar a ação de improbidade administrativa contra o responsável pelo ato ímprobo, haverá a prescrição e a consequente perda da pretensão punitiva.

Qual é o prazo prescricional para a propositura de ações de improbidade administrativa?
Como regra, 5 anos. Isso está previsto no art. 23 da Lei nº 8.492/92. Confira o texto legal:
Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:
I - até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança;
II - dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.
III - até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades referidas no parágrafo único do art. 1o desta Lei.

Exceção: ressarcimento ao erário em casos de atos de improbidade praticados dolosamente
A Lei nº 8.429/92 prevê, em seu art. 12, uma lista de sanções que podem ser aplicadas às pessoas condenadas por ato de improbidade administrativa. São elas:
• perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente;
• perda da função pública;
• suspensão dos direitos políticos;
• multa civil; e
• proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios;
• ressarcimento integral do dano.

Uma das sanções acima é imprescritível: o ressarcimento integral do dano. O fundamento para isso está na parte final do § 5º do art. 37 da CF/88:
Art. 37 (...)
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.

Tese contrária à imprescritibilidade
Apesar da redação do § 5º do art. 37, muitas vozes se levantavam contra a tese da imprescritibilidade. Argumentavam que a intenção do Poder Constituinte não foi a de fixar a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário.
Segundo essa tese, a correta interpretação dos §§ 4º e 5º do art. 37 deveria ser a seguinte:
• o constituinte deu um comando ao legislador infraconstitucional: faça uma lei prevendo atos de improbidade administrativa (§ 4º).
• as sanções para os atos de improbidade são a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário (§ 4º);
• a lei deverá prever prazos prescricionais para a imposição dessas sanções (§ 5º);
• enquanto não houver lei prevendo quais são os atos de improbidade administrativa, não poderão ser ajuizadas ações de improbidade administrativa pedindo a aplicação das sanções previstas no § 4º;
• ficam ressalvadas dessa proibição as ações de ressarcimento (parte final do § 5º), ou seja, mesmo sem lei expressa, as ações de ressarcimento já poderiam ser propostas.

Desse modo, para essa tese, o que a parte final do § 5º quis dizer foi unicamente que, mesmo sem Lei de Improbidade Administrativa, poderiam ser ajuizadas ações pedindo o ressarcimento ao erário. Isso porque o § 5º deve ser interpretado em conjunto com o § 4º. Como reforço a esse argumento, alegaram que a Lei de Improbidade somente foi editada em 1992 (Lei nº 8.429/92). Logo, o objetivo do constituinte foi o de evitar que se alegasse que o ressarcimento ao erário somente poderia ser exigido com a edição de lei.
Por fim, argumentavam que a Constituição Federal, quando quis, determinou a imprescritibilidade de forma expressa. Ex: art. 5º, XLII (racismo) e XLIV (ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático).

Veja as palavras do Min. Alexandre de Moraes, um dos adeptos dessa tese:
“A preocupação do legislador constituinte foi legítima, pois, em virtude da exigência do § 4º de edição de lei específica para a definição dos “atos de improbidade administrativa”, bem como da forma e gradação da aplicação das sanções de suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, poderiam surgir dúvidas sobre a recepção do ordenamento jurídico que, desde a década de 1940, permitia ações de ressarcimento no caso de improbidade administrativa, apesar da inexistência de conceituação e de tipificação específica dos denominados “atos de improbidade administrativa”.
Em outras palavras, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que ampliou a possibilidade de sanções por atos de improbidade administrativa, e em respeito aos princípios da reserva legal e da anterioridade, passou-se a exigir a edição de lei específica para tipificar as condutas correspondentes a atos de improbidade administrativa. Nesse momento, houve o justo receio do legislador constituinte quanto à ocorrência de interpretações que passassem a impossibilitar ações de ressarcimento ao erário pela prática de atos ilícitos tradicionalmente entendidos como improbidade administrativa, desde a década de 1940, mas ainda não tipificados pela nova legislação, que somente foi editada em 1992.
 A ressalva prevista no § 5º do art. 37 da CF não pretendeu estabelecer uma exceção implícita de imprescritibilidade, mas obrigar constitucionalmente a recepção das normas legais definidoras dos instrumentos processuais e dos prazos prescricionais para as ações de ressarcimento do erário, inclusive referentes a condutas ímprobas, mesmo antes da tipificação legal de elementares do denominado “ato de improbidade” (Decreto 20.910/1932, Lei 3.164/1957, Lei 3.502/1958, Lei 4.717/1965, Lei 7.347/1985, Decreto-Lei 2.300/1986); mantendo, dessa maneira, até a edição da futura lei e para todos os atos pretéritos, a ampla possibilidade de ajuizamentos de ações de ressarcimento.
(...)
Portanto, a ressalva do § 5º do art. 37 permitiu a recepção dos prazos prescricionais existentes para as ações de ressarcimento decorrentes de graves condutas de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública pela legislação então em vigor, até que fosse editada a lei específica exigida pelo §4º do mesmo artigo; não tendo, portanto, estabelecido qualquer hipótese implícita de imprescritibilidade.”

O STF concordou com essa tese? O ressarcimento ao erário em caso de atos de improbidade administrativa também prescreve da mesma forma que as demais sanções?
NÃO. O STF entendeu que a ação de ressarcimento decorrente de ato doloso de improbidade é realmente imprescritível.

A regra, no ordenamento jurídico, é, de fato, a prescritibilidade
A prescrição é um instituto pensado para garantir a estabilização das relações sociais, sendo, portanto, uma expressão do princípio da segurança jurídica, que faz parte da estrutura do Estado de Direito.

Prescrição → estabilização das relações sociais → segurança jurídica → Estado de Direito

Justamente por isso, a regra geral no ordenamento jurídico é a de que as pretensões devem ser exercidas dentro de um marco temporal limitado. Em outras palavras, a regra geral é que exista prescrição.
Há, no entanto, algumas exceções explícitas no texto constitucional, nas quais se reconhece a imprescritibilidade em determinadas situações. É o caso, por exemplo, dos crimes de racismo (art. 5º, XLII, CF/88) e da ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV).

O art. 37, § 5º da CF/88 é uma dessas exceções
Vamos relembrar a redação do art. 37, § 5º:
Art. 37 (...)
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.

Em sua primeira parte, o dispositivo prevê que:
- a lei deverá estabelecer os prazos de prescrição para ilícitos
- praticados por qualquer pessoa (servidor ou não)
- que gerem prejuízo ao erário.

Na segunda parte, o constituinte disse o seguinte: não se aplica o que eu falei antes para as ações de ressarcimento. O que isso quer dizer? Que a lei não poderá estabelecer prazos de prescrição para tais ações, sendo elas, portanto, imprescritíveis.

Assim, o texto constitucional é expresso ao prever a ressalva da imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário.

Imprescritibilidade não vale para ressarcimento decorrente de outros ilícitos civis
O § 5º do art. 37 da CF/88 deve ser lido em conjunto com o § 4º, de forma que ele se refere apenas aos casos de improbidade administrativa.
Se fosse realizada uma interpretação ampla da ressalva final contida no § 5º, isso faria com que toda e qualquer ação de ressarcimento movida pela Fazenda Pública fosse imprescritível, o que seria desproporcional.
A prescrição é um instituto importante para se garantir a segurança e estabilidade das relações jurídicas e da convivência social. É uma forma de se assegurar a ordem e a paz na sociedade.
Desse modo, a ressalva contida na parte final do § 5º do art. 37 da CF/88 deve ser interpretada de forma estrita e não se aplica para danos causados ao Poder Público por força de ilícitos civis.
Foi como decidiu o STF ainda em 2016:
É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.
Dito de outro modo, se o Poder Público sofreu um dano ao erário decorrente de um ilícito civil e deseja ser ressarcido, ele deverá ajuizar a ação no prazo prescricional previsto em lei.
STF. Plenário. RE 669069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 03/02/2016 (repercussão geral).

Ex: João dirigia seu carro quando, por imprudência, acabou batendo no carro de um órgão público estadual em serviço. Ficou provado, por meio da perícia, que o particular foi o culpado pelo acidente. O órgão público consertou o veículo, tendo isso custado R$ 10 mil. Sete anos depois do acidente, o Estado ajuizou ação de indenização contra João cobrando os R$ 10 mil gastos com o conserto do automóvel. A defesa de João alegou que houve prescrição. A alegação da defesa está correta. Isso porque o prejuízo ao erário não decorreu de um ato de improbidade administrativa, mas foi decorrente de um ilícito civil. Logo, incide prazo prescricional neste caso.

Desse modo, podemos fazer a seguinte distinção:
Ação de reparação de danos à Fazenda Pública
decorrentes de ilícito civil
é PRESCRITÍVEL
(STF RE 669069/MG).
Ação de ressarcimento decorrente de
ato de improbidade administrativa praticado com CULPA
é PRESCRITÍVEL
(devem ser propostas no prazo do art. 23 da LIA).
Ação de ressarcimento decorrente de
ato de improbidade administrativa praticado com DOLO
é IMPRESCRITÍVEL
(§ 5º do art. 37 da CF/88).

Imprescritibilidade somente vale para atos de improbidade praticados com DOLO
O STF entendeu, portanto, que as ações de ressarcimento ao erário envolvendo atos de improbidade administrativa são imprescritíveis. No entanto, o Tribunal fez uma “exigência” a mais que não está explícita no art. 37, § 5º da CF/88.
O Supremo afirmou que somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento envolvendo atos de improbidade administrativa praticados DOLOSAMENTE.
Assim, se o ato de improbidade administrativa causou prejuízo ao erário, mas foi praticado com CULPA, então, neste caso, a ação de ressarcimento será prescritível e deverá ser proposta no prazo do art. 23 da LIA.

E existem atos de improbidade administrativa CULPOSOS que causam prejuízo ao erário?
SIM. Isso é possível, nos termos do art. 10 da Lei nº 8.429/92:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
(...)

Vale ressaltar que apenas o art. 10 da Lei nº 8.429/92 admite a prática de ato CULPOSO de improbidade administrativa. Relembre:
Critério objetivo
Critério subjetivo
Art. 9º — Atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito do agente público
Exige DOLO
Art. 10 — Atos de improbidade que causam prejuízo ao erário
Pode ser DOLO ou, no mínimo, CULPA
Art. 10-A — Atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário
Exige DOLO
Art. 11 — Atos de improbidade que atentam contra princípios da administração pública
Exige DOLO

Tese fixada pelo STF
O STF fixou a seguinte tese para fins de repercussão geral:
São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa.
STF. Plenário. RE 852475/SP, Rel. orig. Min. Alexandre de Moraes, Rel. para acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 08/08/2018.

Placar
Vale ressaltar que o placar de votação foi bem apertado, com resultado de 6 x 5 em favor da tese vencedora.
Votaram pela prescritibilidade:
• Alexandre de Moraes
• Dias Toffoli
• Ricardo Lewandowski
• Gilmar Mendes
• Marco Aurélio.

Votaram pela imprescritibilidade:
• Edson Fachin
• Rosa Weber
• Cármen Lúcia
• Celso de Mello
• Luiz Fux
• Roberto Barroso

Uma peculiaridade está no fato de que os Ministros Luiz Fux e Roberto Barroso inicialmente votaram em favor da prescritibilidade. Ocorre que uma semana depois, revisaram o posicionamento e alteraram o entendimento, votando em favor da tese da imprescritibilidade.





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