Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
foi diagnosticado com glaucoma e o oftalmologista prescreveu determinado
colírio que, no entanto, não está especificado na lista de medicamentos de
fornecimento gratuito pelo SUS (Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde).
O
juiz pode obrigar que o Estado forneça esse medicamento? O Poder Judiciário
pode determinar que o Poder Público forneça remédios que não estão previstos na
lista do SUS?
SIM, mas desde que cumpridos três
requisitos fixados pelo STJ.
A
concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a
presença cumulativa dos seguintes requisitos:
1)
Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido
por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do
medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos
fármacos fornecidos pelo SUS;
2)
Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento
prescrito; e
3)
Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa).
STJ. 1ª Seção. REsp 1657156-RJ, Rel.
Min. Benedito Gonçalves, julgado em 25/04/2018 (recurso repetitivo).
Vejamos
abaixo alguns dos argumentos jurídicos debatidos pelo STJ.
Inexistência
de violação ao princípio da separação dos Poderes
O
entendimento acima não viola o princípio da separação dos Poderes. Isso porque
uma das tarefas primordiais do Poder Judiciário é atuar para a efetivação dos
direitos fundamentais, especialmente aqueles que se encontram previstos na
Constituição Federal.
Assim,
não há que se falar em violação ao princípio da separação dos Poderes, quando o
Poder Judiciário intervém no intuito de garantir a implementação de políticas
públicas, notadamente, como no caso em análise, em que se busca a tutela do
direito à saúde.
“Seria
distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente
concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser
utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente
relevantes.” (STJ. 2ª Turma. REsp 1.488.639/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe
16/12/2014).
É
a posição também do STF:
(...) É firme o entendimento deste Tribunal
de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio
da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas
questões relativas ao direito constitucional à saúde. (...)
STF. 1ª Turma. ARE 947.823 AgR, Rel.
Min. Edson Fachin, julgado em 28/6/2016.
Fundamento
constitucional
O
direito à saúde foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 como direito
fundamental do cidadão, corolário do direito à vida, bem maior do ser humano.
O
art. 196 do Texto Constitucional estabelece que “a saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A
propósito do tema, o STF, ao interpretar os arts. 5º, caput, e 196 da CF/88,
consagrou o direito à saúde como consequência indissociável do direito à vida,
assegurado a todas as pessoas (STF. 2ª Turma. ARE 685.230 AgR/MS, Rel. Min.
Celso de Mello, DJe de 25/03/2013).
Para
alcançar esse objetivo, a Carta Constitucional determinou a criação de um
sistema único de saúde (SUS), que tenha como uma de suas diretrizes o
“atendimento integral” da população (art. 198, II, da CF/88).
Fundamento
infraconstitucional
A fim de dar concretude ao SUS, foi
editada a Lei nº 8.080/90, que prevê que o Poder Público deverá fornecer
assistência integral, inclusive farmacêutica:
Art. 2º A saúde é um direito
fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis
ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a
saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de
condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços
para a sua promoção, proteção e recuperação.
(...)
Art. 4º O conjunto de ações e serviços
de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e
municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo
Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
(...)
Art. 6º Estão incluídas ainda no campo
de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I - a execução de ações:
(...)
d) de assistência terapêutica integral, inclusive
farmacêutica;
Em 2011, foi editada a Lei nº
12.401/2011 que incluiu diversos dispositivos na Lei nº 8.080/90 tratando sobre
a assistência terapêutica e prevendo o fornecimento de medicamentos. Veja o que
diz o art. 19-M, um dos dispositivos acrescentados:
Art. 19-M. A
assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art.
6º consiste em:
I - dispensação
de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição
esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo
clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do
protocolo, em conformidade com o disposto no
art. 19-P;
(...)
O art. 19-P afirma que a dispensação (fornecimento)
de medicamentos será feita com base no protocolo clínico ou de diretriz
terapêutica e, na falta disso, com base nas relações de medicamentos do SUS:
Art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz
terapêutica, a dispensação será realizada:
I - com base nas relações de
medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências
estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada
na Comissão Intergestores Tripartite;
II - no âmbito de cada Estado e do
Distrito Federal, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos
instituídas pelos gestores estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo
fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Bipartite;
III - no âmbito de cada Município, de
forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos
gestores municipais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será
pactuada no Conselho Municipal de Saúde.
O art. 19-Q trata sobre o procedimento
para incorporação, exclusão ou alteração, pelo SUS, de novos medicamentos:
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão
ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem
como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz
terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
(...)
O
STJ entende que o fato de o medicamento não integrar a lista básica do SUS não
tem o condão de eximir os entes federados do dever imposto pela ordem
constitucional, porquanto não se pode admitir que regras burocráticas,
previstas em portarias ou normas de inferior hierarquia, prevaleçam sobre
direitos fundamentais (STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 405.126/DF, Rel. Min.
Gurgel de Faria, DJe 26/10/2016).
Vamos
agora fazer algumas observações sobre os três requisitos impostos pelo STJ:
PRIMEIRO
requisito
O
primeiro requisito exigido pelo STJ foi o seguinte:
“Comprovação,
por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que
assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim
como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo
SUS;”
Sobre
esse primeiro requisito, é importante que sejam feitas três observações:
Primeira observação. Na I
Jornada de Direito da Saúde, organizada pelo CNJ, foi aprovado o enunciado 15
dizendo que como deve ser este laudo médico. O STJ acolhe esse enunciado. Veja
a sua redação:
Enunciado 15: As prescrições médicas
devem consignar o tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a
sua Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum
Internacional (DCI), o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome
de referência da substância, posologia, modo de administração e período de
tempo do tratamento e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente
informada por seu fabricante, a justificativa técnica.
Desse
modo, a parte, quando for fazer o pedido do medicamento junto ao Poder
Judiciário deverá ficar atenta a isso.
Segunda
observação.
Este laudo médico não precisa ser assinado por médico vinculado ao SUS:
“(...) Ressalte-se, ainda, que não há
no ordenamento, jurídico brasileiro qualquer exigência que condicione o
fornecimento de medicamento à prescrição exclusivamente por médico da rede
pública. (...)” (STJ. AgInt no REsp 1.309.793/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, DJe de 07/04/2017).
Assim,
o laudo deve ser emitido pelo médico que assiste o paciente, seja ele público
ou privado.
Terceira
observação.
O laudo médico deverá comprovar duas circunstâncias:
1ª)
Imprescindibilidade ou necessidade do medicamento pleiteado para o tratamento
da doença; e
2ª)
Ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS.
Em
outras palavras, o remédio pedido judicialmente deve ser imprescindível ou
necessário e aqueles que existem no SUS não podem substitui-lo.
(...) O Supremo Tribunal Federal tem se
orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de
fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo
SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento
eficaz para a enfermidade. (...)
STF. 1ª Turma. RE 831.385 AgR/RS, Rel. Min.
Roberto Barroso, DJe de 06/04/2015.
(...) A alegada
circunstância de que o medicamento Lantus não consta da lista de medicamentos
do SUS deve ceder lugar às afirmações do médico que a acompanha, quando afiança que todos os tratamentos disponibilizados
pela rede pública e já ministrados à menor mostraram-se ineficazes no
combate aos vários episódios de hipoglicemias graves, com perda de consciência
e crises convulsivas por ela sofridas. (...)
STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp
1.068.105/RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe de 30/06/2016.
No
mesmo sentido é o enunciado 14 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ: Não
comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos
fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não
constante das políticas públicas do Sistema Único de Saúde.
SEGUNDO
requisito
Vamos
relembrar o segundo requisito exigido pelo STJ: “incapacidade financeira de
arcar com o custo do medicamento prescrito”.
Desse
modo, o segundo requisito consiste na devida comprovação da hipossuficiência
daquele que requer o medicamento, ou seja, que a sua aquisição implique o
comprometimento da sua própria subsistência e/ou de seu grupo familiar.
Atenção!
Não se exige comprovação de pobreza ou
miserabilidade, mas, tão somente, a demonstração da incapacidade de
arcar com os custos referentes à aquisição do medicamento prescrito.
Ex:
a pessoa pode ser servidora pública, concursada, recebendo R$ 5 mil por mês;
neste caso, não se trata de pessoa pobre; o remédio, contudo, custa R$ 100 mil
cada dose. Ela não terá condições de adquiri-lo, preenchendo, portanto, o
presente requisito.
TERCEIRO
requisito
O
terceiro requisito exigido pelo STJ diz respeito a “existência de registro na
ANVISA do medicamento”.
Assim,
exige-se que o medicamento pretendido já tenha sido aprovado pela ANVISA.
Esta exigência decorre de imposição
legal, tendo em vista o disposto no artigo 19-T, II, da Lei nº 8.080/90:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do
SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o
reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental,
ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária -
ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o
ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado,
sem registro na Anvisa.
Esta
diretriz está em conformidade com o entendimento do Ministro Marco Aurélio, que
em seu voto no julgamento do RE 657.718/MG, que trata precisamente da questão
do fornecimento de medicamentos não aprovados pela ANVISA, consigna a seguinte
tese: “o registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
Anvisa é condição inafastável, visando concluir pela obrigação do Estado ao
fornecimento”.
Fazendo
uma interpretação teleológica do art. 19-T, verifica-se a intenção do
legislador foi a de proteger o cidadão dos medicamentos experimentais, sem
comprovação científica sobre a eficácia, a efetividade e a segurança do
medicamento, a fim de assegurar o direito à saúde e à vida das pessoas.
Modulação
dos efeitos
O
STJ decidiu modular os efeitos dessa decisão e afirmou que “os critérios e
requisitos estipulados somente serão exigidos para os processos que forem
distribuídos a partir da conclusão do presente julgamento”.
A modulação tem por base o art. 927, §
3º, do CPC:
§ 3º Na hipótese de alteração de
jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores
ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos
efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
Dessa
forma, a tese fixada neste julgamento não vai afetar os processos que ficaram
sobrestados aguardando a definição do tema.
E
a oferta de procedimentos terapêuticos não previstos na lista do SUS (inciso II
do art. 19-M da Lei nº 8.080/90)?
O
julgado acima comentado não abarca essa hipótese. O STJ e o STF ainda terão que
se debruçar sobre essa discussão. A “tendência”, contudo, na minha opinião,
será adotar os mesmos critérios acima explicados.