NOÇÕES GERAIS
Como podemos conceituar foro
por prerrogativa de função?
Trata-se de uma prerrogativa
prevista pela Constituição segundo a qual as pessoas ocupantes de alguns cargos
ou funções, somente serão processadas e julgadas criminalmente (não engloba
processos cíveis) por determinados Tribunais (TJ, TRF, STJ, STF).
Razão de existência
O foro por prerrogativa de
função existe porque se entende que, em virtude de determinadas pessoas
ocuparem cargos ou funções importantes e de destaque, somente podem ter um
julgamento imparcial e livre de pressões se forem julgadas por órgãos
colegiados que componham a cúpula do Poder Judiciário.
Ex: um Desembargador, caso
pratique um delito, não deve ser julgado por um juiz singular, nem pelo
Tribunal do qual faz parte, mas sim pelo STJ, órgão de cúpula do Poder
Judiciário e, em tese, mais adequado, para, no caso concreto, exercer a
atividade com maior imparcialidade.
Ex2: caso um Senador da
República cometa um crime, ele será julgado pelo STF.
Foro por prerrogativa de função
é o mesmo que foro privilegiado?
Tecnicamente, não.
Tourinho Filho explica que o
foro por prerrogativa de função é estabelecido em razão do cargo ou função
desempenhada pelo indivíduo. Trata-se, portanto, de uma garantia inerente à
função. Ex: foro privativo dos Deputados Federais no STF. Já o chamado “foro
privilegiado” é aquele previsto, não por causa do cargo ou da função, mas sim
como uma espécie de homenagem, deferência, privilégio à pessoa. Ex: foro
privilegiado para condes e barões.
Todavia, o próprio STF utiliza
em seus julgamentos a expressão “foro privilegiado” como sendo sinônimo de
“foro por prerrogativa de função”.
Por essa razão, também
utilizarei aqui indistintamente as terminologias como sendo
Onde estão previstas as regras
sobre o foro por prerrogativa de função?
• Regra: somente a
Constituição Federal pode prever casos de foro por prerrogativa de função. Exs:
art. 102, I, “b” e “c”; art. 105, I, “a”.
•
Exceção: o art. 125, caput e § 1º, da CF/88 autorizam que as Constituições
Estaduais prevejam hipóteses de foro por prerrogativa de função nos Tribunais
de Justiça, ou seja, situações nas quais determinadas autoridades serão
julgadas originalmente pelo TJ:
Art. 125. Os Estados
organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta
Constituição.
§ 1º A competência dos
tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização
judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
Vale ressaltar, no entanto, que
a previsão da Constituição Estadual somente será válida se respeitar o
princípio da simetria com a Constituição Federal. Isso significa que a
autoridade estadual que “receber” o foro por prerrogativa na Constituição
Estadual deve ser equivalente a uma autoridade federal que tenha foro por prerrogativa
de função na Constituição Federal.
Ex1: a Constituição Estadual
poderá prever que o Vice-Governador será julgado pelo TJ. Isso porque a
autoridade “equivalente” em âmbito federal (Vice-Presidente da República)
possui foro por prerrogativa de função no STF (art. 102, I, “b”, da CF/88).
Logo, foi respeitado o princípio da simetria.
Ex2: a Constituição Estadual
não pode prever foro por prerrogativa de função para os Delegados de Polícia
considerando que não há previsão semelhante para os Delegados Federais na
Constituição Federal (STF ADI 2587).
Hipóteses
de foro por prerrogativa de função previstas na CF/88:
AUTORIDADE
|
FORO COMPETENTE
|
Presidente
e Vice-Presidente da República
|
STF
|
Deputados
Federais e Senadores
|
|
Ministros
do STF
|
|
Procurador-Geral
da República
|
|
Ministros
de Estado
|
|
Advogado-Geral
da União
|
|
Comandantes
da Marinha, Exército e Aeronáutica
|
|
Ministros
do STJ, STM, TST, TSE
|
|
Ministros
do TCU
|
|
Chefes
de missão diplomática de caráter permanente
|
|
Governadores
|
STJ
|
Desembargadores
(TJ, TRF, TRT)
|
|
Membros
dos TRE
|
|
Conselheiros
dos Tribunais de Contas
|
|
Membros
do MPU que oficiem perante tribunais
|
|
Juízes
Federais, Juízes Militares e Juízes do Trabalho
|
TRF ou TRE
|
Membros
do MPU que atuam na 1ª instância
|
|
Juízes
de Direito
|
TJ
|
Promotores
e Procuradores de Justiça
|
|
Prefeitos
|
TJ, TRF ou TRE
|
Exemplos de autoridades que
dependem da Constituição Estadual (algumas Constituições preveem que a
competência para julgar os crimes por elas praticados é do Tribunal de
Justiça):
• Vice-governadores;
• Vereadores.
Se a Constituição estadual não
trouxer nenhuma regra, tais autoridades serão julgadas em 1ª instância.
DECISÃO DO STF RESTRINGINDO O FORO POR
PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Foro prerrogativa de função
extremamente ampliado
Conforme explica o Min. Luís
Roberto Barroso, a CF/88 prevê que um conjunto amplíssimo de agentes públicos
responda por crimes comuns perante tribunais.
Estima-se que cerca de 37 mil
autoridades detenham a prerrogativa no país.
Não há, no Direito Comparado,
nenhuma democracia consolidada que consagre a prerrogativa de foro com abrangência
comparável à brasileira.
No Reino Unido, na Alemanha,
nos Estados Unidos e no Canadá nem existe foro privilegiado. Entre os países que
adotam, a maioria o institui para um rol reduzido de autoridades. Na Itália, por
exemplo, a prerrogativa de foro se aplica somente ao Presidente da República.
Em Portugal, são três as
autoridades que detêm foro privilegiado: o Presidente da República, o
Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro.
Disfuncionalidade do foro
privilegiado
Este modelo amplo de foro por
prerrogativa de função tradicionalmente adotava acarreta duas consequências
graves e indesejáveis para a justiça e para o STF:
1ª) Afasta o Tribunal do seu
verdadeiro papel, que é o de Suprema Corte, e não o de tribunal criminal de
primeiro grau. Tribunais superiores, como o STF, foram concebidos para serem
tribunais de teses jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas. Como
regra, o juízo de primeiro grau tem melhores condições para conduzir a
instrução processual, tanto por estar mais próximo dos fatos e das provas, quanto
por ser mais bem aparelhado para processar tais demandas com a devida
celeridade, conduzindo ordinariamente a realização de interrogatórios,
depoimentos, produção de provas periciais etc.
2ª) Contribui para a ineficiência
do sistema de justiça criminal. O STF não tem sido capaz de julgar de maneira
adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela prerrogativa. O foro
especial, na sua extensão atual, contribui para o congestionamento dos
tribunais e para tornar ainda mais morosa a tramitação dos processos e mais
raros os julgamentos e as condenações.
Foro privativo no STF e
ausência de duplo grau de jurisdição
Vale ressaltar, ainda, que as
autoridades com foro por prerrogativa de função no STF ficam sujeitas a
julgamento por uma única instância, de forma que não gozam de duplo grau de
jurisdição.
Esse modelo vai de encontro com
tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário.
Tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos, quanto o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos asseguram o “direito de recorrer da sentença para
juiz ou tribunal superior”. Isso não ocorre com quem tem foro privilegiado no
STF. Após o julgamento pela Corte, não há recurso para outro Tribunal.
Quando inicia e quando termina
o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores?
O direito ao foro por
prerrogativa de função inicia-se com a diplomação do Deputado Federal ou
Senador e somente se encerra com o término do mandato.
Assim, pelo entendimento que
era tradicionalmente adotado pelo STF, se determinado indivíduo estivesse
respondendo a uma ação penal em 1ª instância, caso ele fosse eleito Deputado
Federal, no mesmo dia da sua diplomação, cessaria a competência do juízo de 1ª
instância e o processo criminal deveria ser remetido ao STF para ali ser
julgado.
Vale ressaltar que a diplomação
é o ato pelo qual a Justiça Eleitoral atesta quem são os candidatos eleitos e
os respectivos suplentes. A diplomação é normalmente marcada para dezembro e a
posse somente ocorre alguns dias depois, em janeiro.
Questão de ordem na AP 937
Diante desse cenário, o Min. Luís
Roberto Barroso, antes do julgamento de uma ação penal que tramitava no
Supremo, suscitou, em uma questão de ordem, duas propostas.
Em outras palavras, o Ministro
disse o seguinte: antes de discutirmos este processo, gostaria de propor que o
Plenário do STF analisasse duas questões que envolvem foro por prerrogativa de
função.
Primeiro tema
O Min. Barroso propôs a
seguinte reflexão:
Vamos mudar a interpretação que
até hoje era dada ao art. 102, I, “b”, da CF/88 e passar a entender que o foro
por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores deve se aplicar
apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo e desde que relacionados
com a função desempenhada?
Segundo tema
O Ministro também propôs uma
segunda discussão:
Vamos definir um determinado
momento processual (ex: fim da instrução) a partir do qual mesmo que o réu
perca o foro privilegiado no STF (exs: renunciou, não se reelegeu etc), ainda
assim ele continuará sendo julgado pelo Supremo?
O que os Ministros do STF decidiram?
Eles concordaram com as duas proposições feitas pelo Min. Barroso?
SIM (AP 937 QO). Vamos entender
resumidamente os argumentos acolhidos pelo STF.
SENTIDO E ALCANCE DO FORO POR
PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Razão que justificou a
existência do foro privilegiado
Na origem, a prerrogativa de
foro tinha como fundamento a necessidade de assegurar a independência de órgãos
e o livre exercício de cargos constitucionalmente relevantes.
Entendia-se que a atribuição da
competência originária para o julgamento dos ocupantes de tais cargos a
tribunais de maior hierarquia evitaria ou reduziria a utilização política do
processo penal contra titulares de mandato eletivo ou altas autoridades, em prejuízo
do desempenho de suas funções.
Assim, o foro privilegiado foi pensado
para ser um instrumento destinado a garantir o livre exercício de certas
funções públicas, e não para acobertar a pessoa ocupante do cargo. Por essa
razão, não faz sentido estendê-lo aos crimes cometidos antes da investidura
nesse cargo e aos que, cometidos após a investidura, sejam estranhos ao
exercício de suas funções.
Se o foro por prerrogativa de
função for amplo e envolver qualquer crime (ex: um acidente de trânsito) ele se
torna um privilégio pessoal que não está relacionado com a proteção do cargo.
Normas que estabeleçam exceções
ao princípio da igualdade devem ser interpretadas restritivamente
A existência do foro por
prerrogativa de função representa uma exceção ao princípio republicano e ao
princípio da igualdade. Tais princípios, contudo, gozam de preferência
axiológica em relação às demais disposições constitucionais. Daí a necessidade
de que normas constitucionais que excepcionem esses princípios – como aquelas
que introduzem o foro por prerrogativa de função – sejam interpretadas sempre
de forma restritiva.
Redução teleológica
O foro especial está previsto
em diversas disposições da Carta de 1988.
O art. 102, I, “b” e “c”, por
exemplo, estabelece a competência do STF para “processar e julgar,
originariamente, (...) nas infrações penais comuns, o Presidente da República,
o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o
Procurador-Geral da República”, bem como “os Ministros de Estado e os
Comandantes Militares, os membros dos Tribunais Superiores, os membros do
Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter
permanente”.
O art. 53, § 1º determina que
“Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento
perante o Supremo Tribunal Federal”.
Embora se viesse interpretando tais
dispositivos de forma literal, ou seja, no sentido de que o foro privilegiado
abrangeria todos os crimes comuns, é possível e desejável atribuir ao texto
normativo uma acepção mais restritiva, com base na teleologia do instituto e
nos demais elementos de interpretação constitucional.
Trata-se da chamada “redução
teleológica” (Karl Larenz) ou, de forma mais geral, da aplicação da técnica da
“dissociação” (Riccardo Guastini), que consiste em reduzir o campo de aplicação
de uma disposição normativa a somente uma ou algumas das situações de fato
previstas por ela segundo uma interpretação literal, que se dá para adequá-la à
finalidade da norma. Nessa operação, o intérprete identifica uma lacuna oculta
(ou axiológica) e a corrige mediante a inclusão de uma exceção não explícita no
enunciado normativo, mas extraída de sua própria teleologia. Como resultado, a
norma passa a se aplicar apenas a parte dos fatos por ela regulados.
A extração de “cláusulas de exceção”
implícitas serve, assim, para concretizar o fim e o sentido da norma e do
sistema normativo em geral.
Outros exemplos em que se
aplicou a técnica da “redução teleológica”:
Ex1: o art. 102, I, “a”, da
CF/88 prevê que compete ao STF processar e julgar “a ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual”. Embora o
dispositivo não traga qualquer restrição temporal, o STF consagrou entendimento
de que não cabe ADI contra lei anterior à Constituição de 1988, porque, ocorrendo
incompatibilidade entre ato normativo infraconstitucional e a Constituição superveniente,
fica ele revogado (não recepção).
Ex2: o art. 102, I, “f” prevê
que competente ao STF julgar “as causas e os conflitos entre a União e os
Estados”. O Supremo entendeu que essa competência não abarca todo e qualquer
conflito entre entes federados, mas apenas aqueles capazes de afetar o pacto federativo.
Ex3: o art. 102, I, “r” prevê
que compete ao STF julgar “as ações contra o Conselho Nacional de Justiça”. Em
uma intepretação literal, essa competência abrangeria toda e qualquer ação
contra o CNJ, sem exclusão. No entanto, segundo a jurisprudência do Tribunal,
somente estão sujeitas a julgamento perante o STF o mandado de segurança, o mandado
de injunção, o habeas data e o habeas corpus, pois somente nessas situações o
CNJ terá legitimidade passiva ad causam.
E mais: ainda quando se trate de MS, o Supremo só reconhece sua competência
quando a ação se voltar contra ato positivo do CNJ.
Ex4: o art. 102, I, “n” prevê
que compete ao STF julgar a “ação em que todos os membros da magistratura sejam
direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos
membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou
indiretamente interessados”. Em relação à primeira parte do dispositivo, o STF
entende que a competência só se aplica quando a matéria versada na causa diz
respeito a interesse privativo da magistratura, não envolvendo interesses
comuns a outros servidores. Em relação à segunda parte do preceito, entende-se
que o impedimento e a suspeição que autorizam o julgamento de ação originária
pelo STF pressupõem a manifestação expressa dos membros do Tribunal competente,
em princípio, para o julgamento da causa.
Em todos esses casos (e em
muitos outros), entendeu-se possível a redução teleológica do escopo das
competências originárias do STF pela via interpretativa.
Conclusão quanto à primeira
proposição:
As
normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por
prerrogativa de função devem ser interpretadas restritivamente, aplicando-se
apenas aos crimes que tenham sido praticados durante o exercício do cargo e em
razão dele.
Assim,
por exemplo, se o crime foi praticado antes de o indivíduo ser diplomado como
Deputado Federal, não se justifica a competência do STF, devendo ele ser
julgado pela 1ª instância mesmo ocupando o cargo de parlamentar federal.
Além
disso, mesmo que o crime tenha sido cometido após a investidura no mandato, se
o delito não apresentar relação direta com as funções exercidas, também não
haverá foro privilegiado.
Foi
fixada, portanto, a seguinte tese:
O
foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o
exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ,
Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.
CRIMES COMETIDOS POR DEPUTADO FEDERAL OU SENADOR
|
|
Situação
|
Competência
|
Crime
cometido antes da diplomação como Deputado ou Senador
|
Juízo de 1ª instância
|
Crime
cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo), mas o delito
não tem relação com as funções desempenhadas.
Ex:
embriaguez ao volante.
|
|
Crime
cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo) e o delito está
relacionado com as funções desempenhadas.
Ex:
corrupção passiva.
|
STF
|
MOMENTO DA FIXAÇÃO DEFINITIVA DA
COMPETÊNCIA DO STF
Se o parlamentar federal
(Deputado Federal ou Senador) está respondendo a uma ação penal no STF e, antes
de ser julgado, ele deixe de ocupar o cargo (exs: renunciou, não se reelegeu
etc) cessa o foro por prerrogativa de função e o processo deverá ser remetido
para julgamento em 1ª instância?
O STF decidiu estabelecer uma
regra para situações como essa:
• Se o réu deixou de ocupar o
cargo antes de a instrução terminar: cessa a competência do STF e o processo
deve ser remetido para a 1ª instância.
•
Se o réu deixou de ocupar o cargo depois de a instrução se encerrar: o
STF permanece sendo competente para julgar a ação penal.
Assim, o STF estabeleceu um marco
temporal a partir do qual a competência para processar e julgar ações penais –
seja do STF ou de qualquer outro órgão jurisdicional – não será mais afetada em
razão de o agente deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo (exs:
renúncia, não reeleição, eleição para cargo diverso).
Por que foi necessário
estabelecer este limite temporal?
Porque era comum haver um
constante deslocamento da competência das ações penais de competência
originária do STF (um verdadeiro “sobe-e-desce” processual).
Não foram raros os casos em que o
réu procurou se eleger a fim de mudar o órgão jurisdicional competente,
passando do primeiro grau para o STF. De outro lado, alguns deixaram de
candidatar à reeleição, com o objetivo inverso, qual seja, passar a competência
do STF para o juízo de 1ª instância, ganhando tempo com isso. E houve também os
que renunciaram quando o julgamento estava próximo de ser pautado no STF.
Isso gerava, muitas vezes, o
retardamento dos inquéritos e ações penais, com evidente prejuízo para a
eficácia, a racionalidade e a credibilidade do sistema penal. Houve inclusive
casos de prescrição em razão dessas mudanças.
Quando se considera encerrada a
instrução, para os fins acima explicados?
Considera-se encerrada a
instrução processual com a publicação do despacho de intimação para
apresentação de alegações finais.
Nesse momento fica prorrogada a
competência do juízo para julgar a ação penal mesmo que ocorra alguma mudança
no cargo ocupado pelo réu.
Desse modo, mesmo que o agente
público venha a ocupar outro cargo ou deixe o cargo que ocupava, qualquer que
seja o motivo, isso não acarretará modificação de competência.
Ex: Pedro, Deputado Federal,
respondia ação penal no STF; foi publicado despacho intimando o MP para
apresentação de alegações finais; uma semana depois, o réu foi diplomado
Prefeito; mesmo Pedro tendo deixado de ser Deputado Federal, o STF continuará
sendo competente para julgar o processo criminal contra ele.
Por que se escolheu esse critério
do encerramento da instrução?
Por três razões:
1ª) Trata-se de um marco temporal
objetivo, de fácil aferição, e que deixa pouca margem de manipulação para os
investigados e réus e afasta a discricionariedade da decisão dos tribunais de
declínio de competência;
2ª) Este critério privilegia o
princípio da identidade física do juiz, ao valorizar o contato do magistrado
julgador com as provas produzidas na ação penal;
3ª) Já existia precedente do STF
já adotando este marco temporal.
Tese fixada quanto à segunda
proposição:
Após
o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para
apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações
penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro
cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ,
Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.
Assim, se o Deputado Federal ou
Senador estiver respondendo um processo criminal no STF e chegar ao fim o seu
mandato, cessa a competência do STF para julgar esta ação penal, salvo se a
instrução processual já estiver concluída, hipótese na qual haverá a
perpetuação da competência e o STF deverá julgar o réu mesmo ele não sendo mais
um parlamentar federal.
Essas duas conclusões definidas
na questão de ordem podem ser aplicadas a partir de quando?
Já estão sendo aplicadas.
O STF decidiu que essa nova linha
interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, ou seja,
já vale a partir da data do julgamento da questão de ordem (03/05/2018).
Vale ressaltar, no entanto, que
todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos
antes da questão de ordem, com base na jurisprudência anterior, devem ser
considerados válidos.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Investigações criminais
envolvendo Deputados Federais e Senadores ANTES da AP 937 QO
Antes da decisão da AP 937 QO, as
investigações envolvendo Deputado Federal ou Senador somente poderiam ser
iniciadas após autorização formal do STF.
Assim, por exemplo, se, a
autoridade policial ou o membro do Ministério Público tivesse conhecimento de
indícios de crime envolvendo Deputado Federal ou Senador, o Delegado e o membro
do MP não poderiam iniciar uma investigação contra o parlamentar federal.
O que eles deveriam fazer:
remeter esses indícios à Procuradoria Geral da República para que esta fizesse
requerimento pedindo a autorização para a instauração de investigação criminal
envolvendo essa autoridade. Essa investigação era chamada de inquérito criminal
(não era inquérito "policial") e deveria tramitar no STF, sob a
supervisão judicial de um Ministro-Relator que iria autorizar as diligências
que se fizessem necessárias.
Em suma, o que eu quero dizer: a
autoridade policial e o MP não podiam investigar eventuais crimes
cometidos por Deputados Federais e Senadores, salvo se houvesse uma prévia
autorização do STF.
Investigações
criminais envolvendo Deputados Federais e Senadores DEPOIS da AP 937 QO
Situação
|
Atribuição
para investigar
|
Se
o crime foi praticado antes da diplomação
|
Polícia (Civil ou Federal) ou MP.
Não há necessidade de autorização do STF
Medidas cautelares são deferidas pelo juízo de 1ª
instância (ex: quebra de sigilo)
|
Se
o crime foi praticado depois da diplomação (durante o exercício do cargo),
mas o delito não tem relação com as funções desempenhadas.
Ex:
homicídio culposo no trânsito.
|
|
Se
o crime foi praticado depois da diplomação (durante o exercício do cargo) e o
delito está relacionado com as funções desempenhadas.
Ex:
corrupção passiva.
|
Polícia Federal e Procuradoria Geral da República,
com supervisão judicial do STF.
Há necessidade de autorização do STF para o início
das investigações.
|
O entendimento que restringe o
foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado
ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?
Vale para outros casos de foro
por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq
4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018 no qual afirmou que o
entendimento vale também para Ministros de Estado.
O STJ também decidiu que a
restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de
Contas estaduais. Explico.
O art. 105,
I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STJ julgar os crimes praticados por Governadores
de Estado e por Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal
de Justiça:
I - processar e julgar,
originariamente:
a) nos crimes
comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e
nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos
Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos
Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos
Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou
Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que
oficiem perante tribunais;
A Corte
Especial do STJ, seguindo o mesmo raciocínio do STF, limitou a amplitude do
art. 105, I, “a”, da CF/88 e decidiu que:
O
foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais
de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o
exercício do cargo e em razão deste.
Assim,
o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos
Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido
praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.
STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel.
para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.
STJ. Corte Especial. APn 866/DF, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018.
O art. 105, I, “a”, da CF/88
prevê que os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados
criminalmente pelo STJ. O entendimento acima exposto (que restringiu o foro
para crimes relacionados com o cargo) é aplicado também para os Desembargadores
dos Tribunais de Justiça? Se um Desembargador praticar crime que não esteja
relacionado com o exercício de suas funções (ex: lesão corporal contra a
esposa), ele será julgado pelo juízo de 1ª instância?
NÃO.
Os
Desembargadores dos Tribunais de Justiça continuam sendo julgados pelo STJ
mesmo que o crime não esteja relacionado com as suas funções.
Assim,
o STJ continua sendo competente para julgar quaisquer crimes imputados a
Desembargadores, não apenas os que tenham relação com o exercício do cargo.
STJ. APn 878/DF QO, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 30/05/2016.
É uma espécie de “exceção” ao
entendimento do STJ que restringe o foro por prerrogativa de função.
O STJ entendeu que haveria um
risco à imparcialidade caso o juiz de 1º instância julgasse um Desembargador (autoridade
que, sob o aspecto administrativo, está em uma posição hierarquicamente
superior ao juiz).
Veja as palavras do Min. Relator
Benedito Gonçalves:
“É que, em se
tratando de acusado e de julgador, ambos, membros da Magistratura nacional,
pode-se afirmar que a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o
acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e
independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições
necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial.
Esta
necessidade (de que o julgador possa reunir as condições necessárias ao
desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial) não se revela como
um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize
justiça criminal. Ser julgado por juiz com duvidosa condição de se posicionar
de forma imparcial, afinal, violaria a pretensão de realização de justiça
criminal de forma isonômica e republicana.
A partir desta
forma de colocação do problema, pode-se argumentar que, caso Desembargadores,
acusados da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de
Desembargador) viessem a ser julgados por juiz de primeiro grau vinculado ao
Tribunal ao qual ambos pertencem, se criaria, em alguma medida, um embaraço ao
juiz de carreira.”
O caso concreto enfrentado pelo
STJ envolvia um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que
estava sendo acusado de ter, supostamente, praticado lesão corporal contra a
mãe e a irmã.
Este Desembargador deve ser
julgado pelo STJ (e não pelo Juiz de Direito de 1ª instância).
O Min. João Otávio de Noronha
acompanhou o Relator argumentando que:
“Por mais que
acredite na lisura dos juízes brasileiros, seria muito constrangedor para esse
juiz em determinada situação votar ou condenar um superior hierárquico, que
votou ou votará nele para uma promoção. Sem considerar outras hipóteses. Eu não
daria essa carta em branco. Não assinaria um cheque em branco para os juízes
nessa hipótese. Eu prefiro a cautela. Não quero ver juiz perseguido nem
promovido por favores concedidos que pode gerar até a impunidade. Minha
preocupação é sobretudo a impunidade, vamos ver Estado em que a pressão no juiz
é muito grande. Juiz que tem vínculo com investigado não pode julgar. É uma
blindagem que se faz à independência da magistratura. O juiz que está
subordinado a um investigado não deve julgá-lo.”
No mesmo sentido foi o voto do
Min. Herman Benjamin:
“Para um juiz,
a carreira é o fundamento da sua existência profissional. E não vejo como um
juiz possa julgar o corregedor do seu Tribunal. O foro existe para o réu e em
favor da sociedade. É garantia implícita."
Votos vencidos
Ficaram vencidos os Ministros Luis
Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques e Maria Thereza de Assis Moura, que defendiam
a tese de que os Desembargadores devem receber o mesmo tratamento que as demais
autoridades e que se o delito não estiver relacionado com as funções, eles
deveriam ser julgados em 1ª instância.
O caso analisado pelo STJ envolvia
um Desembargador do Tribunal de Justiça. Esse entendimento deverá ser aplicado
também para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros
dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs? Essas
autoridades também serão julgadas pelo STJ mesmo que o crime tenha sido praticado
fora do exercício do cargo e mesmo que o delito não esteja relacionado com as
funções desempenhadas?
Essa questão não foi solucionada
ainda de forma expressa pelo STJ. Isso porque alguns Ministros afirmaram que
estavam mantendo o foro porque entendiam que não era prudente um juiz julgar o
processo criminal de um Desembargador ao qual está vinculado hierarquicamente.
Logo, para esses Ministros, um dos argumentos principais para se manter a
competência do STJ nesses casos está no fato de que o Juiz não teria a
imparcialidade necessária para julgar um Desembargador que pertence ao mesmo
Tribunal que ele (e que é seu superior).
Ocorre que, se um membro do TRT
(“Desembargador Federal do Trabalho”) praticar um crime, ele não seria julgado
por um Juiz do Trabalho, mas sim por um Juiz de Direito ou por um Juiz Federal.
Isso porque o Juiz do Trabalho não tem jurisdição criminal. O “Desembargador
Federal do Trabalho” não tem qualquer ingerência sobre o Juiz de Direito ou
sobre o Juiz Federal, considerando que fazem parte de Tribunais diferentes. Desse
modo, esse argumento do STJ não se aplicaria neste caso e, em tese, não haveria
qualquer empecilho de o “Desembargador Federal do Trabalho” ser julgado em 1ª
instância.
O Min. João Otávio de Noronha, em
trecho de seu voto, deu a entender que poderia, em tese, adotar essa distinção:
“A questão envolvendo o Judiciário tem que ser
caso a caso. Não há problema nenhum de um juiz do Trabalho, por exemplo, ser
julgado por um juiz de primeiro grau. Mas há problema um juiz de primeiro grau
julgar um desembargador que o promoveu ou que reforma suas decisões”.
Por outro lado, alguns Ministros
demonstraram certo incômodo de se criar uma regra de foro para os
Desembargadores dos Tribunais de Justiça e outra para os “Desembargadores
Federais do Trabalho”.
Assim, é preciso aguardar para se
ter certeza do caminho que será adotado pelo STJ.
Por enquanto, posso apontar as
seguintes conclusões e dúvidas:
• REGRA: as autoridades listadas
no art. 105, I, “a”, da CF/88 somente são julgadas pelo STJ em caso de crimes
cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Ex: membro do Tribunal de Contas pratica violência doméstica contra a sua
esposa. Será julgado pelo Juiz de Direito de 1ª instância.
• EXCEÇÃO: os Desembargadores dos
Tribunais de Justiça são julgados pelo STJ mesmo que o crime não esteja relacionado
com as suas funções. Ex: Desembargador pratica violência doméstica contra sua
esposa. Será julgado pelo STJ (e não pelo juiz de 1ª instância).
DÚVIDAS:
1) Essa mesma exceção poderá ser
aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros
dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs?
2) Essa mesma exceção poderá ser
aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros
do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (e que estão
listados no art. 105, I, “a”, da CF/88)?
3) Se o crime praticado pelo
Desembargador do Tribunal de Justiça for um “crime federal” (delito de
competência da Justiça Federal), ele poderia ser julgado pelo Juiz Federal de
1ª instância, considerando que eles não mantêm qualquer vinculação entre si, já
que não fazem parte do mesmo Tribunal?