Imagine a seguinte situação
hipotética:
João mora em Rio Branco (AC) e queria
passar férias em Porto Velho (RO).
Diante disso, ele comprou duas
passagens áreas: uma de ida (Rio Branco – Porto Velho) e outra de volta (Porto
Velho – Rio Branco).
A passagem de ida estava marcada
para o dia 01/03 e a de volta para o dia 15/03.
No dia 01/03, João teve um
problema pessoal e não conseguiu embarcar no voo.
Como precisava estar na capital
rondoniense no dia seguinte, ele foi de ônibus para Porto Velho, chegando lá
dia 02/03.
João curtiu suas férias
normalmente, mas quando tentou embarcar de volta para Rio Branco, no dia 15/03,
teve um problema: a companhia aérea cancelou a sua reserva e colocou outra
pessoa no lugar.
A explicação da empresa, quanto
ao cancelamento, foi no sentido de que, não havendo embarque em um dos trechos
adquiridos, o segundo, posterior, é automaticamente cancelado. Trata-se do que
as companhias chamam, na prática, de cancelamento pelo no show. “É assim que funciona, senhor”, disse a funcionária da empresa.
João,
contudo, não se conformou e ajuizou ação de indenização por danos morais e
materiais contra a empresa.
Afirmou que a conduta da ré de
cancelar a passagem do trecho da volta foi indevida e abusiva. A conduta de
proceder ao cancelamento dos bilhetes da volta, em razão do não embarque da ida,
é cláusula nula, sem eficácia jurídica, por se tratarem de bilhetes distintos
considerando que o consumidor paga um determinado preço pela passagem de ida e
um outro preço distinto pela volta.
A empresa área contestou a
demanda afirmando que a prática do no
show é aceita pela ANAC, além de estar prevista no contrato que é firmado
com o consumidor.
O STJ concordou com a tese do
consumidor? Houve prática abusiva da companhia aérea?
SIM.
Atende a interesse meramente
comercial da empresa
A adoção do cancelamento
unilateral de um dos trechos da passagem adquirida por consumidor quando do não
comparecimento no voo de ida (no show)
é prática tarifária comumente utilizada pelas empresas do ramo de transporte
aéreo de passageiros.
Essa prática tem por finalidade
exclusiva, ou ao menos primordial, possibilitar que a companhia possa fazer nova
comercialização do assento da aeronave, atendendo, portanto, a interesses
essencialmente comerciais da empresa, promovendo a obtenção de maior de lucro,
a partir da dupla venda.
Muitas vezes a totalidade dos
bilhetes foi vendida, mas nem todos os passageiros embarcam. Isso ocorre devido
ao cancelamento de reservas com pouca antecedência em relação ao horário do voo
ou à existência de no show
(passageiros que não comparecem ao embarque), que inviabilizam que o avião
viaje com todos seus assentos preenchidos. Assim, com o intuito de se antecipar
às perdas consequentes deste tipo de comportamento e como estratégia de gerenciamento
de receitas, as empresas que operam o ramo de transporte aéreo optam por cancelar
automaticamente o voo de volta, podendo desse modo, revender o assento para
outra pessoa.
Tal conduta, embora justificável
do ponto de vista econômico e empresarial, configura prática abusiva
considerando que afronta direitos básicos do consumidor, tais como a vedação ao
enriquecimento ilícito, a falta de razoabilidade nas sanções impostas e, ainda,
a deficiência na informação sobre os produtos e serviços prestados.
Enriquecimento ilícito
Quando o consumidor adquire uma
viagem de ida e volta, na verdade, ele compra dois bilhetes aéreos de passagem.
Tanto é assim, que o preço pago por apenas um bilhete é, naturalmente, inferior
ao valor do contrato de transporte envolvendo o trajeto de ida e retorno, o que
demonstra que a majoração do preço se deve, justamente, à autonomia dos trechos
contratados.
O cancelamento da passagem de
volta pela empresa aérea significa a frustração da utilização de um serviço
pelo qual o consumidor pagou. Trata-se, portanto, de inadimplemento desmotivado
por parte da companhia aérea.
Não bastasse isso, o cancelamento
unilateral arbitrário faz surgir para o consumidor novo dispêndio financeiro,
dada a necessidade de retornar a seu local de origem, seja por qual meio de
transporte for.
Falta de razoabilidade nas sanções
previstas
Normalmente os contratos das
companhias áreas preveem que em caso de não comparecimento para o embarque (no show), será cobrada uma taxa
administrativa referente à quebra de contrato e os demais trechos subsequentes serão
cancelados. Descontada essa taxa administrativa (“espécie de multa”), o valor que
sobrar ficará como “crédito” em favor do consumidor até que ele solicite
reembolso ou remarcação dentro do prazo de 1 ano a contar da data do voo
original não utilizado.
O STJ entendeu que não há
razoabilidade na aplicação de todas essas sanções contra o consumidor que não
embarcou no voo de ida.
Esta previsão não é razoável.
Isso porque há uma sucessão de penalidades impostas para uma mesma falta
cometida pelo consumidor.
Com efeito, é cobrado do consumidor
uma primeira “taxa”, deduzida do valor da tarifa do voo de ida, porque não
compareceu para embarque, uma segunda “taxa” sobre a tarifa paga pelo trecho de
volta, que foi cancelado e, por fim, ele será impedido de voar.
Violação ao princípio da transparência
Vale ressaltar, ainda que, essa
cláusula é prevista sem qualquer destaque ou visibilidade, o que viola o dever
de informação, especialmente porque se trata de cláusula restritiva em um
contrato de adesão.
Há, portanto, afronta ao
princípio da transparência (art. 4º, caput, CDC), o que resulta a nulidade da
respectiva cláusula contratual, com fundamento no art. 51, XV, do CDC.
Conclui-se, portanto, que:
É
abusiva a prática comercial consistente no cancelamento unilateral e automático
de um dos trechos da passagem aérea, sob a justificativa de não ter o
passageiro se apresentado para embarque no voo antecedente.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.595.731-RO, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/11/2017 (Info 618).
Mas a ANAC permite essa prática...
Não importa. Como se sabe, a
normatização realizada pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) possui
natureza administrativa, capaz de vincular aqueles que exercem a atividade
sujeita à regulação técnica. No entanto, essa regulamentação não está isenta de
controle por parte do Poder Judiciário, em razão do disposto no art. 5º, XXXV,
da Constituição Federal, que dispõe que a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Assim, as agências reguladoras não
podem editar atos arbitrários ou desarrazoados, já que estão sujeitas ao
controle jurisdicional. Há, então, uma “discricionariedade vigiada” (MELO
FILHO, João Aurino. Controle jurisdicional na atividade das agências reguladoras.
Delimitação da discricionariedade administrativa. Revista de Direito Administrativo.
Teresina, ano 14, n. 2163, 3 jun. 2009).