Dizer o Direito

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Qual é o termo inicial da pretensão executória? A interpretação do art. 112, I, do CP deve ser literal?



Conceito de prescrição
Prescrição é a perda do direito do Estado de punir (pretensão punitiva) ou de executar uma punição já imposta (pretensão executória) em razão de não ter agido (inércia) nos prazos previstos em lei.

Espécies
Existem duas espécies de prescrição:
I – Prescrição da pretensão punitiva, que pode ser:
I.a) prescrição da pretensão punitiva propriamente dita;
I.b) prescrição superveniente ou intercorrente;
I.c) prescrição retroativa;

II – Prescrição da pretensão executória.

Prescrição da pretensão executória (prescrição da condenação)
Ocorre quando o Estado perde o seu poder-dever de executar uma sanção penal já definitivamente imposta pelo Poder Judiciário em razão de não ter agido nos prazos previstos em lei.

Cálculo da prescrição executória no caso de pena privativa de liberdade
A prescrição da pretensão executória da pena privativa de liberdade é calculada com base na pena concreta, fixada na sentença ou no acórdão, que já transitou em julgado e, portanto, não pode mais ser alterada.

Termo inicial
Como vimos, o Estado tem um prazo máximo para fazer com que o réu condenado inicie o cumprimento da pena. Caso não o faça, ocorre a prescrição executória.
A pergunta é: a partir de que dia começa a correr esse prazo que o Estado tem para fazer com que o condenado inicie o cumprimento da pena? Dito de outra forma: qual é o termo inicial do prazo da prescrição da pretensão executória?
A resposta encontra-se no art. 112, I do CP:
Termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível
Art. 112. No caso do art. 110 deste Código [que trata da prescrição executória], a prescrição começa a correr:
I - do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional;

Desse modo, segundo o art. 112, I do CP, o termo inicial da prescrição executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação.

E se o MP não recorre, mas a defesa apresenta recurso?
Nesse caso, a sentença condenatória transitou em julgado para a acusação. Logo, segundo a redação do art. 112, I do CP, inicia-se a contagem do prazo de prescrição executória mesmo ainda estando pendente a apreciação do recurso interposto pela defesa.

Veja o seguinte exemplo hipotético
João foi condenado a 4 anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça.
O Ministério Público concorda com o acórdão e não recorre, razão pela qual ocorre trânsito em julgado para a acusação no dia 18/02/2010.
O advogado do réu apresenta recurso extraordinário, de forma que, para a defesa, não houve trânsito em julgado.

Qual é o prazo de prescrição executória quando o réu é condenado a 4 anos?
A prescrição ocorre em 8 anos (art. 109, IV, do CP). Em outras palavras, se o réu for condenado a 4 anos, o Estado tem o poder-dever de fazer com que esse condenado inicie o cumprimento da pena em até 8 anos. Se passar desse prazo, o Estado perde o poder de executar a sanção e o condenado não mais terá que cumprir a pena imposta.

Em nosso exemplo, quando se iniciou a contagem do prazo de prescrição executória (levando-se em consideração a regra do art. 112, I do CP)?
No dia 18/02/2010, data em que a sentença transitou em julgado para a acusação. Isso significa que o Estado tinha um prazo de 8 anos para fazer com que o réu iniciasse o cumprimento da pena.
Se o réu não começou a cumprir a pena até 18/02/2018, aconteceu a prescrição.
Essa é a regra que está presente no art. 112, I do CP.

Crítica à regra do art. 112, I do CP
A CF/88 prevê que ninguém poderá ser considerado culpado até que haja o trânsito em jugado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). Por força desse princípio, durante os anos de 2009 até 2016 prevaleceu no STF o entendimento de que não existia no Brasil a execução provisória (antecipada) da pena.
Assim, de 2009 até 2016 o STF entendia que, enquanto não tivesse havido trânsito em julgado para a acusação e para a defesa, o réu não poderia ser obrigado a iniciar o cumprimento da pena.
Se ainda estava pendente de julgamento qualquer recurso da defesa, o condenado não podia iniciar o cumprimento da pena porque ainda era presumivelmente inocente.
Isso perdurou, como já dito, de 2009 (STF. Plenário. HC 84078, julgado em 05/02/2009) até 2016, quando o STF mudou sua jurisprudência no HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/2/2016.

Desse modo, perceba a seguinte situação estranha que o art. 112, I, ocasionava (entre 2009 a 2016):
• se o réu fosse condenado, a defesa recorresse e o MP não, esse condenado não podia iniciar o cumprimento da pena enquanto estivesse pendente o recurso;
• apesar disso, pela redação literal do art. 112, I, do CP, já começava a correr o prazo da prescrição executória.

Diante desse paradoxo que podia ser ocasionado pela regra do art. 112, I do CP, alguns doutrinadores e membros do Ministério Público idealizaram a seguinte tese:
O início do prazo da prescrição executória devia ser o momento em que ocorre o trânsito em julgado para ambas as partes, ou seja, tanto para a acusação como para a defesa.
Não se pode dizer que o prazo prescricional começa com o trânsito em julgado apenas para a acusação, uma vez que, se a defesa recorreu, o Estado não pode dar início à execução da pena, já que ainda não haveria uma condenação definitiva.
Se há recurso da defesa, o Estado não inicia o cumprimento da pena não por desinteresse dele, mas sim porque há uma vedação de ordem constitucional decorrente do princípio da presunção de inocência. Ora, se não há desídia do Estado, não se pode falar em prescrição.
Desse modo, foi uma tese que surgiu para desconsiderar a interpretação literal do art. 112, I, do CP.

Essa tese que desconsidera a regra do art. 112, I, do CP foi aceita pela jurisprudência?
• STJ: NÃO. Para o STJ, conforme determina o art. 112, I do CP, o termo inicial da prescrição da pretensão executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, ainda que a defesa tenha recorrido e que se esteja aguardando o julgamento desse recurso. Nesse sentido: STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 74.996/PB, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 12/09/2017.
O argumento de que se deveria aguardar o trânsito em julgado para ambas as partes não tem previsão legal e contraria o texto do Código Penal.
Além disso, não se pode querer “corrigir” a redação do art. 112, I do CP invocando-se o art. 5º, LVII da CF/88, porque nesse caso se estaria utilizando um dispositivo da Constituição Federal para respaldar uma “interpretação” totalmente desfavorável ao réu e contra expressa disposição legal.
Exigir o trânsito em julgado para ambas as partes como termo inicial da contagem do lapso da prescrição da pretensão executória, ao contrário do texto expresso da lei, seria inaugurar novo marco interruptivo da prescrição não previsto no rol taxativo do art. 117 do CP, situação que também afrontaria o princípio da reserva legal.
Assim, somente com a devida alteração legislativa é que seria possível modificar o termo inicial da prescrição da pretensão executória, e não por meio de "adequação hermenêutica".

• Precedente da 1ª Turma do STF: SIM.
A 1ª Turma do STF acolhe a tese acima explicada e entende que o art. 112, I, do CP deve ser interpretado sistematicamente à luz da jurisprudência que prevaleceu no STF de 2009 a 2016, segundo a qual só era possível a execução da decisão condenatória depois do trânsito em julgado.
Assim, se não era possível a execução provisória da pena, não era razoável considerar que o curso da prescrição da pretensão punitiva já começou a correr pelo simples fato de a acusação não ter recorrido. Ora, não é possível prescrever aquilo que não pode ser executado.
Veja ementa nesse sentido:
(...) 2. A partir do julgamento pelo Plenário desta Corte do HC nº 84.078, deixou-se de se admitir a execução provisória da pena, na pendência do RE.
3. O princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade, tal como interpretado pelo STF, deve repercutir no marco inicial da contagem da prescrição da pretensão executória, originariamente regulado pelo art. 112, I do Código Penal.
4. Como consequência das premissas estabelecidas, o início da contagem do prazo de prescrição somente se dá quando a pretensão executória pode ser exercida. (...)
STF. 1ª Turma. HC 107710 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 09/06/2015.

Em suma:

Se o Ministério Público não recorreu contra a sentença condenatória, tendo havido apenas recurso apenas da defesa, qual deverá ser o termo inicial da prescrição da pretensão executiva? O início do prazo da prescrição executória deve ser o momento em que ocorre o trânsito em julgado para o MP? Ou o início do prazo deverá ser o instante em que se dá o trânsito em julgado para ambas as partes, ou seja, tanto para a acusação como para a defesa?
• Posicionamento pacífico do STJ: o termo inicial da prescrição da pretensão executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, ainda que a defesa tenha recorrido e que se esteja aguardando o julgamento desse recurso. Aplica-se a interpretação literal do art. 112, I, do CP considerando que ela é mais benéfica ao condenado.
• Entendimento da 1ª Turma do STF: o início da contagem do prazo de prescrição somente se dá quando a pretensão executória pode ser exercida. Se o Estado não pode executar a pena, não se pode dizer que o prazo prescricional já está correndo. Assim, mesmo que tenha havido trânsito em julgado para a acusação, se o Estado ainda não pode executar a pena (ex: está pendente uma apelação da defesa), não teve ainda início a contagem do prazo para a prescrição executória. É preciso fazer uma interpretação sistemática do art. 112, I, do CP.
STF. 1ª Turma. RE 696533/SC, Rel. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/2/2018 (Info 890).


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