Dizer o Direito

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)



ITR
ITR é a sigla para Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural.
Trata-se de um imposto federal previsto no art. 153, VI, da CF/88, nos arts. 29 a 31 do CTN e na Lei nº 9.393/96. Veja o texto da CF/88:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
VI - propriedade territorial rural;

Características
• Imposto com finalidade extrafiscal.
• Imposto direto.
• Sujeito a lançamento por homologação.
• Deve respeitar os princípios da legalidade, da noventena e da anterioridade.

Fato gerador
Segundo a redação do art. 29 do CTN, o ITR tem como fato gerador:
- a propriedade
- o domínio útil ou
- a posse
- de um bem imóvel por natureza (como definido na lei civil)
- e que esteja localizado fora da zona urbana* do Município.

Como se define o que seja imóvel rural?
O conceito de imóvel rural é dado por exclusão. O CTN, em seu art. 32, §§ 1º e 2º, explica em que consiste o imóvel urbano para fins de incidência do IPTU. Se o imóvel não se enquadrar em tais critérios, será considerado rural.
* Assim, em regra, o ITR incide apenas sobre imóveis rurais. Se o imóvel for urbano, o imposto devido é o IPTU.

Por que se falou “em regra”? Existe alguma exceção? Existe hipótese em que o ITR incidirá sobre imóvel localizado em zona urbana?
SIM. Segundo o STJ, incide o ITR (e não o IPTU) sobre imóveis comprovadamente utilizados para exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, ainda que localizados em áreas consideradas urbanas pela legislação municipal. Nesse sentido:
Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial.
STJ. 1ª Seção. REsp 1112646/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 26/08/2009.

O fundamento para essa decisão do STJ está no art. 15 do DL 57/66:
Art. 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (artigo do CTN que fala sobre o fato gerador do IPTU), não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, incidindo assim, sobre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados.

Se o imóvel rural está tomado pelo “Movimento Sem-Terra” (MST), o proprietário continua obrigado a pagar IPTU?
NÃO. Se o proprietário não detém o domínio ou a posse do imóvel pelo fato de este ter sido invadido pelos “Sem-Terra”, não há fato gerador do ITR (STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 1346328/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 15/12/2016).

Sujeito passivo
O contribuinte do ITR é...
- o proprietário do imóvel
- o titular de seu domínio útil ou
- o seu possuidor a qualquer título.

O domicílio tributário do contribuinte do ITR é o município de localização do imóvel, vedada a eleição de qualquer outro (art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.393/96).

Responsável tributário
É responsável tributário pelo pagamento do ITR o sucessor, a qualquer título, nos termos dos arts. 128 a 133 do CTN.

Obrigação propter rem
O ITR, assim como o IPTU, constitui-se em obrigação propter rem. Isso significa que o sucessor do imóvel, a qualquer título, também deverá responder pelo pagamento do tributo.

Se o imóvel tiver mais que um proprietário
Se o imóvel pertence a dois ou mais proprietários, em condomínio, é legítimo exigir o pagamento do ITR, em sua totalidade, de todos ou de qualquer deles, reservando-se ao que pagou a faculdade de ressarcir-se dos demais devedores, na forma do art. 283 do Código Civil.
STJ. 1ª Turma. REsp 1232344/PA, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 17/11/2011.
Existe, aqui, uma solidariedade, nos termos do art. 124, I, do CTN:
Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

Base de cálculo
A base do cálculo do ITR é o valor fundiário que, nos termos da Lei nº 9.393/96, consiste no valor da terra nua.
Segundo o art. 10, § 1º, da Lei nº 9.393/96, para fins de apuração do ITR deverá ser considerado o valor do imóvel, excluídos os valores relativos a:
a) construções, instalações e benfeitorias;
b) culturas permanentes e temporárias;
c) pastagens cultivadas e melhoradas;
d) florestas plantadas;

Assim, como já dito, a base de cálculo é o valor da terra nua tributável, não importando construções, plantações etc.
Esse valor da terra nua deve ser calculado com base no preço de mercado das terras, apurado em 1º de janeiro do ano de ocorrência do fato gerador.

Área tributável
Quando vai ser calculado o valor do ITR, é necessário considerar a área tributável do imóvel, ou seja, a área total que será considerada para fins de incidência do imposto. Isso porque determinadas áreas do imóvel podem ser excluídas do cálculo do valor fundiário.

Segundo o art. 10, § 1º, II, da Lei nº 9.393/96, a área tributável é igual à área total do imóvel, excluídas as áreas:
a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas no Código Florestal;
b) de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na letra “a”;
c) comprovadamente imprestáveis para qualquer exploração agrícola, pecuária, granjeira, aquícola ou florestal, declaradas de interesse ecológico mediante ato do órgão competente, federal ou estadual;
d) sob regime de servidão florestal ou ambiental;
d) sob regime de servidão ambiental;
e) cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração;
f) alagadas para fins de constituição de reservatório de usinas hidrelétricas autorizada pelo poder público.

Assim, o art. 10, § 1º, II, da Lei nº 9.393/96 prevê que as áreas apontadas nas letras acima listadas são partes do imóvel que estão isentas do pagamento de ITR.

Para que área de RESERVA LEGAL seja excluída da base de cálculo do ITR, é necessário que o proprietário faça a averbação disso no registro de imóveis?
SIM. O STJ entende que somente é possível assegurar a isenção do ITR nesses casos se a área da reserva legal já estiver averbada no registro do imóvel.
A isenção de ITR prevista no art. 10, § 1º, II, “a”, da Lei nº 9.393/96 depende de prévia averbação da área de reserva legal no registro do imóvel.
STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 1.243.685-PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 5/12/2013 (Info 533).

Veja o texto legal:
Art. 10. (...)
§ 1º Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á:
(...)
II — área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas:
a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, com a redação dada pela Lei nº 7.803, de 18 de julho de 1989;

Para que área de PRESERVAÇÃO PERMANENTE seja excluída da base de cálculo do ITR é necessário que o proprietário faça a averbação disso no registro de imóveis?
NÃO. As áreas de preservação permanente são instituídas por lei, sendo, por isso, desnecessário que se faça averbação no registro de imóveis.
(...) 1. Quando do julgamento do EREsp 1027051/SC (Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 21.10.2013), restou pacificado que, "diferentemente do que ocorre com as áreas de preservação permanente, as quais são instituídas por disposição legal, a caracterização da área de reserva legal exige seu prévio registro junto ao Poder Público".
2. Dessa forma, quanto à área de reserva legal, é imprescindível que haja averbação junto à matrícula do imóvel, para haver isenção tributária. Quanto às áreas de preservação permanente, no entanto, como são instituídas por disposição legal, não há nenhum condicionamento para que ocorra a isenção do ITR. (...)
STJ. 2ª Turma. AgRg nos EDcl no REsp 1342161/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 04/02/2014.

Não confunda:
• área de reserva legal: é necessária a averbação no registro de imóveis ou inscrição no CAR para que haja isenção do ITR;
• área de preservação permanente: não é necessária a averbação no registro de imóveis ou inscrição no CAR para que haja isenção do ITR.

Alíquotas
A menor alíquota do ITR é de 0,03% e a maior é de 20%.
As alíquotas do ITR devem ser progressivas, com o objetivo de desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, nos termos do art. 153, § 4º, da CF/88:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
VI - propriedade territorial rural;
(...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:
I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42/2003)

Progressividade é uma técnica de tributação que tem como objetivo fazer com que os tributos atendam à capacidade contributiva.
Na prática, a progressividade funciona da seguinte forma: a lei prevê alíquotas variadas para o imposto e o aumento dessas alíquotas ocorre na medida em que se aumenta a base de cálculo.
Assim, na progressividade, quanto maior a base de cálculo, maior será a alíquota.
O exemplo comum citado pela doutrina é o do imposto de renda, que é progressivo.
No IR, quanto maior for a renda (BC), maior será o percentual (alíquota) do imposto. Quanto mais a pessoa ganha, maior será a alíquota que irá incidir sobre seus rendimentos.

Progressividade do ITR
A Lei nº 9.393/96 estabeleceu que a progressividade do ITR deveria levar em consideração dois critérios, a serem apreciados conjuntamente:
1) o grau de utilização da terra (quanto mais improdutiva, maiores as alíquotas); e
2) a área da propriedade rural (quanto maior a área, maiores as alíquotas).

Ocorre que o art. 153, § 4º, I, da CF/88 previu apenas o critério da produtividade, não falando nada sobre a possibilidade de o ITR ser progressivo também em função da área do imóvel.
Diante disso, surgiu uma corrente defendendo que a Lei nº 9.393/96, ao estabelecer a progressividade em razão da área do imóvel, seria inconstitucional por violar o art. 153, § 4º, I, da CF/88.

Essa tese foi acolhida pelo STF? A Lei nº 9.393/96 violou a CF/88 ao prever alíquotas progressivas em função do grau de utilização da propriedade e também em razão da área do imóvel?
NÃO. O STF não concordou com a tese e decidiu que:
É constitucional a progressividade das alíquotas do ITR previstas na Lei nº 9.393/96 e que leva em consideração, de maneira conjugada, o grau de utilização (GU) e a área do imóvel.
Essa progressividade é compatível com o art. 153, § 4º, I, da CF/88, seja na sua redação atual, seja na redação originária, ou seja, antes da EC 42/2003.
Mesmo no período anterior à EC 42/2003, era possível a instituição da progressividade em relação às alíquotas do ITR.
STF. 1ª Turma. RE 1038357 AgR/ SP, Rel. Min Dias Tóffoli, julgado em 6/2/2018 (Info 890).

A Lei nº 9.393/96 estabeleceu que a progressividade das alíquotas do ITR deveria levar em consideração não só o grau de utilização da terra (GU), como também a área do imóvel, tendo em vista que tais critérios não são isolados, mas sim conjugados. Assim, quanto maior for o território rural e menor o seu aproveitamento, maior será a alíquota de ITR. Essa sistemática potencializa a função extrafiscal do ITR e desestimula a manutenção de propriedade improdutiva.

Progressividade do ITR era permitida mesmo antes da EC 42/2003
Vale ressaltar que a redação do art. 153, § 4º, I, da CF/88 foi dada pela EC 42/2003. Compare:
Redação originária
Redação dada pela EC 42/2003
Art. 153 (...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas e não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel.
Art. 153 (...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:
I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42/2003)

O STF registrou que, mesmo antes da EC 42/2003, já era possível que a Lei instituísse alíquotas progressivas do ITR, razão pela qual a Lei nº 9.393/96 nasceu compatível com o texto constitucional. Nesse sentido:
(...) I – Nos termos do art. 145, § 1º, da CF, todos os impostos, independentemente de seu caráter real ou pessoal, devem guardar relação com a capacidade contributiva do sujeito passivo e, tratando-se de impostos diretos, será legítima a adoção de alíquotas progressivas.
II – Constitucionalidade da previsão de sistema progressivo de alíquotas para o imposto sobre a propriedade territorial rural mesmo antes da EC 42/2003. (...)
STF. 2ª Turma. RE 720945 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 09/09/2014.

Mas o ITR é um imposto real... mesmo assim ele pode ser progressivo? Mesmo não sendo um imposto pessoal, o ITR pode ser progressivo?
SIM. Para o STF, é irrelevante se um imposto é real ou pessoal para fins de verificar se ele pode ou não se sujeitar à técnica da progressividade. O § 1º do art. 145 da CF/88 não proíbe que os impostos reais sejam progressivos. Nesse sentido: STF. Plenário. RE 562045/RS, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, julgado em 6/2/2013 (Info 694).

Imunidade das pequenas glebas rurais
O art. 153, § 4º, II, da CF/88 prevê uma imunidade tributária específica relacionada com o ITR:
Art. 153 (...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:
II - não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel;

Alguns autores afirmam que a lei a que se refere o art. 153, § 4º, II, deveria ser uma lei complementar já que se trata de limitação ao poder de tributar (art. 146, II, da CF/88).
Apesar disso, esse dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 9.393/96, cujo art. 2º previu:
Art. 2º Nos termos do art. 153, § 4º, in fine, da Constituição, o imposto não incide sobre pequenas glebas rurais, quando as explore, só ou com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel.
Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, pequenas glebas rurais são os imóveis com área igual ou inferior a :
I - 100 ha, se localizado em município compreendido na Amazônia Ocidental ou no Pantanal mato-grossense e sul-mato-grossense;
II - 50 ha, se localizado em município compreendido no Polígono das Secas ou na Amazônia Oriental;
III - 30 ha, se localizado em qualquer outro município.

No art. 3º, a Lei nº 9.393/96 criou hipóteses de isenção do ITR:
Art. 3º São isentos do imposto:
I - o imóvel rural compreendido em programa oficial de reforma agrária, caracterizado pelas autoridades competentes como assentamento, que, cumulativamente, atenda aos seguintes requisitos:
a) seja explorado por associação ou cooperativa de produção;
b) a fração ideal por família assentada não ultrapasse os limites estabelecidos no artigo anterior;
c) o assentado não possua outro imóvel.
II - o conjunto de imóveis rurais de um mesmo proprietário, cuja área total observe os limites fixados no parágrafo único do artigo anterior, desde que, cumulativamente, o proprietário:
a) o explore só ou com sua família, admitida ajuda eventual de terceiros;
b) não possua imóvel urbano.

Delegação da fiscalização e cobrança do ITR para os Municípios
Já vimos que o ITR é um imposto federal.
A CF/88 previu, contudo, uma interessante possibilidade.
Segundo o art. 153, § 4º, III, da CF/88, se o Município quiser, poderá combinar com a União que ele (Município) ficará responsável pela fiscalização e cobrança do ITR sobre os imóveis localizados em seu território.
Assim, por exemplo, o Município de Maués (AM) poderá optar por fiscalizar e cobrar o ITR dos imóveis rurais localizados em sua circunscrição territorial. Veja:
Art. 153 (...)
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:
III - será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.

Qual é a vantagem para o Município de assumir esse encargo?
Caso o Município faça a opção de fiscalizar e cobrar o ITR, ele receberá toda a arrecadação desse imposto relativamente aos imóveis rurais situados em seu território.
Se ele não fizer essa opção, a fiscalização e cobrança ficarão a cargo da União e o Município receberá 50% do produto da arrecadação do ITR relativa aos imóveis rurais situados em seu território.
É o que prevê o art. 158, II, da CF/88:

Art. 158. Pertencem aos Municípios:
(...)
II - cinquenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, § 4º, III;



INFORMATIVO Comentado 890 STF




Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 890 STF.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 890 DO STF

Direito Constitucional
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Alteração da Lei impugnada antes do julgamento da ADI.

COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
É constitucional lei estadual que obrigue plano de saúde a justificar recusa de tratamento.

SAÚDE
Constitucionalidade do ressarcimento ao SUS previsto no art. 32 da Lei 9.656/98.

COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

DIREITO DO CONSUMIDOR
PLANO DE SAÚDE
A Lei 9.656/98 é constitucional, mas não pode ser aplicada para contratos celebrados antes da sua vigência.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR
Os Estados-membros/DF e Municípios podem fixar valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT (RPV), desde que respeitado o princípio da proporcionalidade.

DIREITO PENAL
PRESCRIÇÃO
Interpretação do art. 112 do CP.

DIREITO PROCESSUAL PENAL
FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Haverá mudança de competência para julgar o recurso se, após a interposição, houve a diplomação do réu como Deputado Federal.

INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA
“Denúncia anônima”, quebra de sigilo e renovação das interceptações.

DIREITO TRIBUTÁRIO
ITR
Progressividade das alíquotas do ITR.












A sistemática do "ressarcimento ao SUS" é constitucional?




Ressarcimento ao SUS
O art. 32 da Lei nº 9.656/98 prevê que, se um cliente do plano de saúde utilizar-se dos serviços do SUS, o Poder Público poderá cobrar do referido plano o ressarcimento que ele teve com essas despesas. Veja:
Art. 32.  Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44/2001)

Assim, o chamado “ressarcimento ao SUS”, criado pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, é uma obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde de restituir as despesas que o SUS teve ao atender uma pessoa que seja cliente e que esteja coberta por esses planos.

Passo-a-passo
Apenas a título de curiosidade, na prática funciona assim:
1) O paciente é atendido em uma instituição pública ou privada, conveniada ou contratada, integrante do SUS;
2) A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cruza os dados dos sistemas de informações do SUS com o Sistema de Informações de Beneficiários (SIB) da própria Agência para identificar as pessoas que foram atendidas na rede pública e que possuem plano de saúde;
3) A ANS notifica a operadora informando os atendimentos que realizou relacionados com seus clientes;
4) A operadora pode contestar isso nas instâncias administrativas, dizendo, por exemplo, que aquele serviço utilizado pelo seu cliente no SUS não era coberto pelo plano, que o paciente já havia deixado de ser usuário do plano etc.
5) Não havendo impugnação administrativa ou não sendo esta acolhida, a ANS cobra os valores devidos.
6) Caso não haja pagamento, a operadora será incluída no CADIN e os débitos inscritos em dívida ativa da ANS para, em seguida, serem executados.
7) Os valores recolhidos a título de ressarcimento ao SUS são repassados pela ANS para o Fundo Nacional de Saúde.

Sobre o tema:
As operadoras de plano de saúde que estejam em débito quanto ao ressarcimento de valores devidos ao SUS podem, em razão da inadimplência, ser inscritas no Cadin.
STJ. 1ª Turma. AgRg no AREsp 307.233-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 6/6/2013 (Info 524).

Tese dos planos de saúde
As operadoras privadas de plano de saúde comumente ingressam com ações judiciais questionando a validade do art. 32 da Lei nº 9.656/98 sob o argumento de que a sua participação na saúde tem caráter suplementar, uma vez que o dever primário de assegurar o acesso à saúde é atribuído pela Constituição Federal aos entes políticos.
Logo, defendem que o Poder Público possui sim obrigação de prestar saúde a quem procurar, não devendo os planos de saúde ser obrigados a ressarcir tais despesas.
Além disso, tais operadoras aduziram que esse art. 32 representa a instituição de uma nova fonte de custeio para a seguridade social, o que somente poderia ocorrer por meio de lei complementar, nos termos do art. 195, § 4º, da CF/88:
Art. 195 (...)
§ 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.

Art. 154. A União poderá instituir:
I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;

A tese dos planos de saúde foi aceita pelo STF? O art. 32 da Lei nº 9.656/98 é inconstitucional?
NÃO. O STF entendeu que o art. 32 da Lei nº 9.656/98 é válido.
O art. 32 não representa a criação de uma nova fonte de receitas para seguridade social, nos termos do art. 195, § 4º, da CF/88. Trata-se apenas de um desdobramento do contrato firmado entre as operadoras de saúde e seus clientes. As operadoras de saúde atuam em um serviço regulado pelo Poder Público, devendo cumprir as condições impostas.
O tratamento em hospital público não pode ser negado a nenhuma pessoa, considerando que o acesso aos serviços de saúde no Brasil é universal (art. 196 da CF/88). Porém, se o Poder Público atende um usuário do plano de saúde, o SUS deve ser ressarcido, assim como ocorreria caso esse usuário do plano de saúde tivesse sido atendido em um hospital particular (não conveniado ao SUS).
Esse art. 32 impede o enriquecimento ilícito das empresas de plano de saúde.
O STF fez, contudo, uma ressalva: a regra do art. 32 somente é aplicável aos procedimentos ocorridos após 04/06/1998, data em que foi publicada a Lei nº 9.656/98.

Resumindo:
É constitucional o ressarcimento previsto no art. 32 da Lei nº 9.656/98, o qual é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados pelo SUS e posteriores a 4.6.1998, assegurados o contraditório e a ampla defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos.
STF. Plenário. RE 597064/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7/2/2018 (repercussão geral) (Info 890).



terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Qual é o termo inicial da pretensão executória? A interpretação do art. 112, I, do CP deve ser literal?



Conceito de prescrição
Prescrição é a perda do direito do Estado de punir (pretensão punitiva) ou de executar uma punição já imposta (pretensão executória) em razão de não ter agido (inércia) nos prazos previstos em lei.

Espécies
Existem duas espécies de prescrição:
I – Prescrição da pretensão punitiva, que pode ser:
I.a) prescrição da pretensão punitiva propriamente dita;
I.b) prescrição superveniente ou intercorrente;
I.c) prescrição retroativa;

II – Prescrição da pretensão executória.

Prescrição da pretensão executória (prescrição da condenação)
Ocorre quando o Estado perde o seu poder-dever de executar uma sanção penal já definitivamente imposta pelo Poder Judiciário em razão de não ter agido nos prazos previstos em lei.

Cálculo da prescrição executória no caso de pena privativa de liberdade
A prescrição da pretensão executória da pena privativa de liberdade é calculada com base na pena concreta, fixada na sentença ou no acórdão, que já transitou em julgado e, portanto, não pode mais ser alterada.

Termo inicial
Como vimos, o Estado tem um prazo máximo para fazer com que o réu condenado inicie o cumprimento da pena. Caso não o faça, ocorre a prescrição executória.
A pergunta é: a partir de que dia começa a correr esse prazo que o Estado tem para fazer com que o condenado inicie o cumprimento da pena? Dito de outra forma: qual é o termo inicial do prazo da prescrição da pretensão executória?
A resposta encontra-se no art. 112, I do CP:
Termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível
Art. 112. No caso do art. 110 deste Código [que trata da prescrição executória], a prescrição começa a correr:
I - do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional;

Desse modo, segundo o art. 112, I do CP, o termo inicial da prescrição executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação.

E se o MP não recorre, mas a defesa apresenta recurso?
Nesse caso, a sentença condenatória transitou em julgado para a acusação. Logo, segundo a redação do art. 112, I do CP, inicia-se a contagem do prazo de prescrição executória mesmo ainda estando pendente a apreciação do recurso interposto pela defesa.

Veja o seguinte exemplo hipotético
João foi condenado a 4 anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça.
O Ministério Público concorda com o acórdão e não recorre, razão pela qual ocorre trânsito em julgado para a acusação no dia 18/02/2010.
O advogado do réu apresenta recurso extraordinário, de forma que, para a defesa, não houve trânsito em julgado.

Qual é o prazo de prescrição executória quando o réu é condenado a 4 anos?
A prescrição ocorre em 8 anos (art. 109, IV, do CP). Em outras palavras, se o réu for condenado a 4 anos, o Estado tem o poder-dever de fazer com que esse condenado inicie o cumprimento da pena em até 8 anos. Se passar desse prazo, o Estado perde o poder de executar a sanção e o condenado não mais terá que cumprir a pena imposta.

Em nosso exemplo, quando se iniciou a contagem do prazo de prescrição executória (levando-se em consideração a regra do art. 112, I do CP)?
No dia 18/02/2010, data em que a sentença transitou em julgado para a acusação. Isso significa que o Estado tinha um prazo de 8 anos para fazer com que o réu iniciasse o cumprimento da pena.
Se o réu não começou a cumprir a pena até 18/02/2018, aconteceu a prescrição.
Essa é a regra que está presente no art. 112, I do CP.

Crítica à regra do art. 112, I do CP
A CF/88 prevê que ninguém poderá ser considerado culpado até que haja o trânsito em jugado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). Por força desse princípio, durante os anos de 2009 até 2016 prevaleceu no STF o entendimento de que não existia no Brasil a execução provisória (antecipada) da pena.
Assim, de 2009 até 2016 o STF entendia que, enquanto não tivesse havido trânsito em julgado para a acusação e para a defesa, o réu não poderia ser obrigado a iniciar o cumprimento da pena.
Se ainda estava pendente de julgamento qualquer recurso da defesa, o condenado não podia iniciar o cumprimento da pena porque ainda era presumivelmente inocente.
Isso perdurou, como já dito, de 2009 (STF. Plenário. HC 84078, julgado em 05/02/2009) até 2016, quando o STF mudou sua jurisprudência no HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/2/2016.

Desse modo, perceba a seguinte situação estranha que o art. 112, I, ocasionava (entre 2009 a 2016):
• se o réu fosse condenado, a defesa recorresse e o MP não, esse condenado não podia iniciar o cumprimento da pena enquanto estivesse pendente o recurso;
• apesar disso, pela redação literal do art. 112, I, do CP, já começava a correr o prazo da prescrição executória.

Diante desse paradoxo que podia ser ocasionado pela regra do art. 112, I do CP, alguns doutrinadores e membros do Ministério Público idealizaram a seguinte tese:
O início do prazo da prescrição executória devia ser o momento em que ocorre o trânsito em julgado para ambas as partes, ou seja, tanto para a acusação como para a defesa.
Não se pode dizer que o prazo prescricional começa com o trânsito em julgado apenas para a acusação, uma vez que, se a defesa recorreu, o Estado não pode dar início à execução da pena, já que ainda não haveria uma condenação definitiva.
Se há recurso da defesa, o Estado não inicia o cumprimento da pena não por desinteresse dele, mas sim porque há uma vedação de ordem constitucional decorrente do princípio da presunção de inocência. Ora, se não há desídia do Estado, não se pode falar em prescrição.
Desse modo, foi uma tese que surgiu para desconsiderar a interpretação literal do art. 112, I, do CP.

Essa tese que desconsidera a regra do art. 112, I, do CP foi aceita pela jurisprudência?
• STJ: NÃO. Para o STJ, conforme determina o art. 112, I do CP, o termo inicial da prescrição da pretensão executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, ainda que a defesa tenha recorrido e que se esteja aguardando o julgamento desse recurso. Nesse sentido: STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 74.996/PB, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 12/09/2017.
O argumento de que se deveria aguardar o trânsito em julgado para ambas as partes não tem previsão legal e contraria o texto do Código Penal.
Além disso, não se pode querer “corrigir” a redação do art. 112, I do CP invocando-se o art. 5º, LVII da CF/88, porque nesse caso se estaria utilizando um dispositivo da Constituição Federal para respaldar uma “interpretação” totalmente desfavorável ao réu e contra expressa disposição legal.
Exigir o trânsito em julgado para ambas as partes como termo inicial da contagem do lapso da prescrição da pretensão executória, ao contrário do texto expresso da lei, seria inaugurar novo marco interruptivo da prescrição não previsto no rol taxativo do art. 117 do CP, situação que também afrontaria o princípio da reserva legal.
Assim, somente com a devida alteração legislativa é que seria possível modificar o termo inicial da prescrição da pretensão executória, e não por meio de "adequação hermenêutica".

• Precedente da 1ª Turma do STF: SIM.
A 1ª Turma do STF acolhe a tese acima explicada e entende que o art. 112, I, do CP deve ser interpretado sistematicamente à luz da jurisprudência que prevaleceu no STF de 2009 a 2016, segundo a qual só era possível a execução da decisão condenatória depois do trânsito em julgado.
Assim, se não era possível a execução provisória da pena, não era razoável considerar que o curso da prescrição da pretensão punitiva já começou a correr pelo simples fato de a acusação não ter recorrido. Ora, não é possível prescrever aquilo que não pode ser executado.
Veja ementa nesse sentido:
(...) 2. A partir do julgamento pelo Plenário desta Corte do HC nº 84.078, deixou-se de se admitir a execução provisória da pena, na pendência do RE.
3. O princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade, tal como interpretado pelo STF, deve repercutir no marco inicial da contagem da prescrição da pretensão executória, originariamente regulado pelo art. 112, I do Código Penal.
4. Como consequência das premissas estabelecidas, o início da contagem do prazo de prescrição somente se dá quando a pretensão executória pode ser exercida. (...)
STF. 1ª Turma. HC 107710 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 09/06/2015.

Em suma:

Se o Ministério Público não recorreu contra a sentença condenatória, tendo havido apenas recurso apenas da defesa, qual deverá ser o termo inicial da prescrição da pretensão executiva? O início do prazo da prescrição executória deve ser o momento em que ocorre o trânsito em julgado para o MP? Ou o início do prazo deverá ser o instante em que se dá o trânsito em julgado para ambas as partes, ou seja, tanto para a acusação como para a defesa?
• Posicionamento pacífico do STJ: o termo inicial da prescrição da pretensão executória é a data do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, ainda que a defesa tenha recorrido e que se esteja aguardando o julgamento desse recurso. Aplica-se a interpretação literal do art. 112, I, do CP considerando que ela é mais benéfica ao condenado.
• Entendimento da 1ª Turma do STF: o início da contagem do prazo de prescrição somente se dá quando a pretensão executória pode ser exercida. Se o Estado não pode executar a pena, não se pode dizer que o prazo prescricional já está correndo. Assim, mesmo que tenha havido trânsito em julgado para a acusação, se o Estado ainda não pode executar a pena (ex: está pendente uma apelação da defesa), não teve ainda início a contagem do prazo para a prescrição executória. É preciso fazer uma interpretação sistemática do art. 112, I, do CP.
STF. 1ª Turma. RE 696533/SC, Rel. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/2/2018 (Info 890).


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos



Quilombolas
O art. 68 do ADCT da CF/88 confere proteção especial aos territórios ocupados pelos remanescentes quilombolas. Confira:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Esse artigo possui duas partes:
1ª) estabelece um direito aos quilombolas: propriedade das terras ocupadas (“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”);
2) determina uma ordem ao Estado para que pratique o ato necessário a fim de assegurar esse direito:  expedição dos títulos de propriedade (“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”).

O que são as terras dos quilombolas?
São as áreas ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas por este grupo social para a sua reprodução física, social, econômica e cultural.

O que são remanescentes das comunidades dos quilombos?
Existe uma grande discussão antropológica sobre isso, mas, de maneira bem simples, os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos são agrupamentos humanos de afrodescendentes que se formaram durante o sistema escravocrata ou logo após a sua extinção.
O Decreto 4.887/2003 assim os define:
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

A previsão do art. 68 do ADCT foi uma forma que o constituinte encontrou de homenagear “o papel protagonizado pelos quilombolas na resistência ao injusto regime escravista” (Min. Rosa Weber).

Fundação Cultural Palmares (FCP)
Por meio da Lei nº 7.668/88, a União foi autorizada a constituir a Fundação Cultural Palmares, uma fundação pública federal que possui, dentre outras atribuições, a de realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação (art. 2º, III).

Decreto nº 4.887/2003
O Decreto nº 4.887/2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

ADI
Em 2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), ajuizou ADI contra o Decreto nº 4.887/2003.
Na ação, o autor alegou que o referido Decreto possuiria vícios de inconstitucionalidade formal e material.
Quanto ao aspecto formal, alegou que houve invasão da “esfera reservada à lei”, considerando que disciplina direitos e deveres entre particulares e a administração pública, define os titulares da propriedade de terras onde se localizavam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa. Em outras palavras, afirmou que foi editado um decreto autônomo, ou seja, que foi muito além de apenas regulamentar a lei.
Apontou também supostas inconstitucionalidades materiais:
• no art. 2º, § 1º: o Decreto seria inconstitucional pelo fato de ter escolhido o critério da autoatribuição para a identificação dos remanescentes quilombolas;
• nos §§ 2º e 3º do art. 2º: pelo fato de o Decreto ter, supostamente, ampliado demais aquilo que deve ser considerado como terras pertencentes aos quilombolas;
• no art. 13: o Decreto prevê que o INCRA deverá determinar a desapropriação de áreas que estejam em domínio particular, para transferi-las às comunidades. O partido alegou que, por força do art. 68 do ADCT, as terras já pertencem aos remanescentes das comunidades quilombolas que lá fixam residência desde 5 de outubro de 1988. Logo, não haveria necessidade de desapropriar considerando que os particulares não seriam donos dessas terras.

O que o STF decidiu? O Decreto nº 4.887/2003 é inconstitucional?
NÃO. Vejamos abaixo os principais pontos discutidos.

Cabe ADI contra Decreto? O STF conheceu a ação proposta contra o Decreto nº 4.887/2003?
O STF afirmou que a ADI deveria ser conhecida, ou seja, que o seu mérito deveria ser apreciado. Isso porque cabe ADI contra decreto desde que este tenha “coeficiente mínimo de normatividade, generalidade e abstração”, ou seja, desde que esse decreto possa ser considerado um ato normativo autônomo, que retire seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal.

Alegação de que houve invasão de esfera reservada a lei
O autor da ADI alegou que o Decreto nº 4.887/2003 não regulamentou nenhuma lei, tendo regulamentado diretamente o art. 68 do ADCT. Desse modo, para o autor, o Presidente da República invadiu esfera reservada ao Poder Legislativo considerando que o tema deveria ter sido tratado por meio de lei.
O STF não acolheu este argumento.
O art. 68 do ADCT é uma norma de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral. Isso significa que o art. 68 do ADCT já era apto a produzir todos os seus efeitos desde o momento em que entrou em vigor a CF/88, independentemente de qualquer norma integrativa infraconstitucional. Em outras palavras, ele nunca precisou de lei ou decreto para produzir seus efeitos.
Diante disso, o Decreto nº 4.887/2003 teve por objetivo tão somente regular o comportamento do Estado na implementação do comando constitucional previsto no art. 68 do ADCT, razão pela qual não houve invasão de esfera reservada à lei. Houve o mero exercício do poder regulamentar da Administração, nos limites estabelecidos pelo art. 84, VI, da Constituição.
O art. 68 do ADCT é autoaplicável, mas o Decreto confere efetividade máxima à norma constitucional.
Veja que interessante: para a maioria dos Ministros, é possível que um decreto regulamente, de forma direta, ou seja, sem necessidade de intermediação de lei, um dispositivo da Constituição Federal (especialmente em caso de normas que veiculem direitos fundamentais).

Análise do art. 2º, caput e § 1º do Decreto (critério de identificação)
O art. 2º, caput e § 1º do Decreto nº 4.887/2003 prevê como deve ser o critério utilizado pelo Poder Público para a identificação dos quilombolas. O critério escolhido pelo Decreto foi o da autoatribuição, ou seja, as próprias pessoas se autodefinem como sendo quilombolas. Veja:
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

O autor questionava esse critério da autoatribuição afirmando que, com isso, haveria o reconhecimento do direito para pessoas que não mereceriam por não se enquadrarem no art. 68 do ADCT.
O STF entendeu que a escolha do critério da autoatribuição não foi arbitrária, não sendo contrária à Constituição.
A autoatribuição é um método autorizado e prestigiado pela antropologia contemporânea e tem por objetivo interromper um “processo de negação sistemática da própria identidade aos grupos marginalizados”. Em outras palavras, ao se adotar este critério, estimula-se que as pessoas integrantes de tais grupos, antes marginalizados, tenham orgulho de assumirem-se.
Trata-se de uma forma de revalorização das identidades antes desrespeitadas.
Vale ressaltar que o Estado brasileiro incorporou, ao seu direito interno, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 27.6.1989, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e ratificada pelo Decreto 5.051/2004. Esta Convenção consagrou a “consciência da própria identidade” como critério para determinar os grupos tradicionais (indígenas ou tribais). Esta Convenção determinou que nenhum Estado tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal.
Para os efeitos do Decreto nº 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola é atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2º, III, da Lei nº 7.668/88.
Importante esclarecer que, para os fins do art. 68 do ADCT, não basta que uma comunidade se qualifique como remanescente de quilombo (elemento subjetivo da autoidentificação). É necessário também o preenchimento de um elemento objetivo: “que a reprodução da unidade social, que se afirma originada de um quilombo, estivesse atrelada a uma ocupação continuada do espaço.”

Análise do art. 2º, §§ 2º e 3º, do Decreto (terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas)
Confira o que dizem os §§ 2º e 3º do art. 2º do Decreto:
Art. 2º (...)
§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

O autor da ADI afirmava que esses dispositivos seriam inconstitucionais considerando que na identificação, medição e demarcação das terras dos quilombolas deveriam ser utilizados critérios histórico-antropológicos (e não critérios indicados pelos próprios interessados).
O STF explicou que o Decreto nº 4.887/2003 não prevê a apropriação individual das terras pelos integrantes da comunidade, mas sim a formalização de uma “propriedade coletiva das terras”, atribuída à unidade sociocultural. Em outras palavras, os títulos não são emitidos em favor das pessoas físicas individualmente consideradas. São emitidos em favor da comunidade quilombola, sendo este pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representam as comunidades quilombolas.
Assim, quando o Decreto afirma que deverão ser levados em consideração, na medição e na marcação da terra, os critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas, isso não significa que o procedimento demarcatório ficará ao arbítrio exclusivo dos próprios interessados. Não é isso. O que o Decreto está garantindo é que as comunidades envolvidas tenham voz e sejam ouvidas.

Análise do art. 13 do Decreto (desapropriação)
O art. 13 do Decreto prevê o seguinte:
Art. 13.  Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
(...)
§ 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.

A insurgência do autor quanto a este dispositivo foi a seguinte: o art. 68 do ADCT já prevê que as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas pertencem a estes grupos. Logo, se uma pessoa que não é quilombola possui um título de propriedade referente a esta área, esse título não é válido. Assim, não haveria necessidade de desapropriar o imóvel considerando que o particular não seria o real dono dessas terras.
O STF, mais uma vez, não concordou com o autor.
De fato, o próprio art. 68 do ADCT confere o título de propriedade. Assim, constatada a situação de fato – ocupação tradicional das terras por remanescentes dos quilombos –, a própria Constituição confere-lhes o título de propriedade.
Ocorre que em nenhum momento a Constituição afirma que são nulos ou extintos os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, diferentemente do que acontece no caso das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, cujo art. 231, § 6º preconiza:
Art. 231 (...)
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Assim, o art. 68 do ADCT, apesar de reconhecer um direito aos quilombolas, não invalida os títulos de propriedade eventualmente existentes, de modo que, para que haja a regularização do registro em favor das comunidades quilombolas, exige-se a realização do procedimento de desapropriação.

Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios x terras dos quilombolas
A Constituição Federal prevê que as terras tradicionalmente ocupadas por índios pertencem à União (art. 20, XI), mas os índios possuem o direito à posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 2º).
Segundo o § 1º do art. 231 da CF/88 são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios:
• as que eles habitam em caráter permanente;
• as utilizadas para suas atividades produtivas;
• as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
• e as necessárias a sua reprodução física e cultural (segundo seus usos, costumes e tradições).
Vale ressaltar que se a terra já foi habitada pelos índios, porém quando foi editada a CF/88 o aldeamento já estava extinto, ela não será considerada terra indígena. Confira:
Súmula 650-STF: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.

Apesar da divergência de alguns Ministros, segundo o critério que prevalece até hoje no STF, somente são consideradas “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” aquelas que eles habitavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal) e, complementarmente, se houver a efetiva relação dos índios com a terra (marco da tradicionalidade da ocupação).
Assim, em regra, se em 05/10/1988 a área em questão não era ocupada por índios, isso significa que ela não se revestirá da natureza indígena de que trata o art. 231 da CF/88. Exceção: renitente esbulho.

Esse mesmo critério temporal é adotado no caso das terras dos quilombolas?
NÃO. Durante os debates da ADI 3239/DF, os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes tentaram fazer com que o STF desse interpretação conforme à Constituição ao § 2º do art. 2º do Decreto nº 4.887/2003 para definir que “somente deveriam ser titularizadas as áreas que estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos — inclusive as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural —, na data da promulgação da Constituição (5.10.1988), salvo comprovação, por todos os meios de prova juridicamente admitidos, da suspensão ou perda da posse nesta data em decorrência de atos ilícitos praticados por terceiros”.
A maioria dos Ministros, contudo, não concordou com essa tese.
O Min. Edson Fachin registrou, no que foi acompanhado pelo Min. Celso de Mello, que, dentro de uma hermenêutica constitucionalmente adequada à interpretação e à aplicação de um direito fundamental que surge pela primeira vez na CF/1988, não se poderia depreender, da redação do art. 68 do ADCT, a restrição do direito à titulação de propriedade apenas àqueles remanescentes de comunidades quilombolas que estivessem na posse da área na data da promulgação do texto constitucional. Assim, não haveria fundamento constitucional para a incidência da teoria do marco temporal na hipótese.
Nessa mesma linha de entendimento, o Min. Roberto Barroso assentou que o art. 68 do ADCT deveria ser aplicado às comunidades que ocupavam suas áreas quando da promulgação da Constituição, bem como àquelas que foram delas desapossadas à força e cujo comportamento, à luz da sua cultura, indica intenção de retomar a permanência do vínculo cultural e tradicional com o território, dispensada a comprovação de conflito possessório atual de fato.
Diante disso, a Ministra Relatora Rosa Weber decidiu suprimir de seu voto qualquer referência à ideia de marco temporal.
Muita atenção porque esse ponto será explorado nas provas!

Resumindo:
O art. 68 do ADCT estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
Em 2003, foi editado o Decreto nº 4.887, com o objetivo de regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
O STF entendeu que este Decreto não invadiu esfera reservada à lei. O objetivo do Decreto foi tão somente o de regular o comportamento do Estado na implementação do comando constitucional previsto no art. 68 do ADCT. Houve o mero exercício do poder regulamentar da Administração, nos limites estabelecidos pelo art. 84, VI, da Constituição.
O art. 2º, caput e § 1º do Decreto nº 4.887/2003 prevê como deve ser o critério utilizado pelo Poder Público para a identificação dos quilombolas. O critério escolhido foi o da autoatribuição (autodefinição). O STF entendeu que a escolha desse critério não foi arbitrária, não sendo contrária à Constituição.
O art. 2º, §§ 2º e 3º, do Decreto preconiza que, na identificação, medição e demarcação das terras dos quilombolas devem ser levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. O STF afirmou que essa previsão é constitucional. Isso porque o que o Decreto está garantindo é apenas que as comunidades envolvidas sejam ouvidas, não significando que a demarcação será feita exclusivamente com base nos critérios indicados pelos quilombolas.
O art. 13 do Decreto, por sua vez, estabelece que o INCRA poderá realizar a desapropriação de determinadas áreas caso os territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos estejam situados em locais pertencentes a particulares. O STF reputou válida essa previsão, tendo em vista que em nenhum momento a Constituição afirma que são nulos ou extintos os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Assim, o art. 68 do ADCT, apesar de reconhecer um direito aos quilombolas, não invalida os títulos de propriedade eventualmente existentes, de modo que, para que haja a regularização do registro em favor das comunidades quilombolas, exige-se a realização do procedimento de desapropriação.
Por fim, o STF não acolheu a tese de que somente poderiam ser consideradas terras de quilombolas aquelas que estivessem sendo ocupadas por essas comunidades na data da promulgação da CF/88 (05/10/1988). Em outras palavras, mesmo que na data da promulgação da CF/88 a terra não mais estivesse sendo ocupada pelas comunidades quilombolas, é possível, em tese, que seja garantido o direito previsto no art. 68 do ADCT.
STF. Plenário. ADI 3239/DF, rel. orig. Min. Cezar Peluso, red.p/ o ac. Min. Rosa Weber, julgado em 8/2/2018 (Info 890).



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