Dizer o Direito

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Requisitos para a impenhorabilidade da pequena propriedade rural



Imagine a seguinte situação hipotética:
O filho de João resolveu fazer faculdade na capital.
Para custear as despesas, João tomou um empréstimo bancário e, como garantia do pagamento, assinou nota promissória no valor de R$ 20 mil.
O devedor não efetuou o pagamento na data do vencimento, razão pela qual o banco ingressou com execução de título extrajudicial, tendo sido penhorado uma chácara (imóvel rural) que está em nome de João.
O executado alegou que o imóvel em questão é impenhorável, considerando que se trata de pequena propriedade rural onde pratica agricultura juntamente com a mulher e os filhos.
Invocou, para tanto, o art. 5º, XXVI, da CF/88 e o art. 833, VIII, do CPC, que estabelecem:
CF88. Art. 5º (...)
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

CPC/Art. 833. São impenhoráveis:
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

Teses do exequente
O banco refutou a tese de João apresentando dois argumentos:
1) a dívida foi contraída para interesses particulares (e não para promover a atividade produtiva desenvolvida no imóvel). Logo, como o débito não tem relação com o imóvel, não gera a sua impenhorabilidade;
2) João e a sua família não moram na chácara que foi penhorada. Eles residem em uma casa alugada, que fica na vila a alguns minutos do imóvel rural. Dessa forma, incidiria a hipótese do art. 4º, § 2º, da Lei nº 8.009/90:
Art. 4º (...)
§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural.

A primeira tese do exequente foi aceita pelo STJ?
NÃO.
A pequena propriedade rural é impenhorável (art. 5º, XXVI, da CF/88 e o art. 833, VIII, do CPC) mesmo que a dívida executada não seja oriunda da atividade produtiva do imóvel.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.591.298-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 14/11/2017 (Info 616).

Mas o art. 5º, XXVI, da CF/88 fala que “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva (...)”. Essa parte grifada não exige que os débitos sejam relacionados com as atividades desenvolvidas no imóvel rural?
NÃO. O STJ afirma que essa interpretação literal não pode ser feita já que isso:
• não garantiria a máxima efetividade que deve ser dada ao mandamento constitucional;
•  conferiria proteção deficiente ao direito fundamental tutelado.

A correta interpretação do dispositivo é, portanto, a seguinte: a CF/88 não permite a penhora da pequena propriedade rural mesmo que o devedor tenha dado o imóvel em garantia de dívidas contraídas para assegurar a sua atividade produtiva. Logo, com mais razão, esse imóvel também é impenhorável com relação a débitos de outra natureza, ou seja, não necessariamente relacionados com a atividade produtiva da propriedade rural.
Essa interpretação do art. 5º, XXVI, da CF/88 foi adotada pelo legislador infraconstitucional tanto que o CPC/1973 e o CPC/2015 não exigem, para conferir a impenhorabilidade, que os débitos sejam oriundos da atividade produtiva do imóvel.
Conclui-se, portanto, que, nos termos dos arts. 5º, XXVII, c/c o art. 649, VIII, do CPC/1973 (art. 833, VIII, do CPC/2015), a proteção da impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela entidade familiar, como direito fundamental que é, não se restringe às dividas relacionadas à atividade produtiva.

A segunda tese do exequente foi aceita pelo STJ?
Também NÃO.
A pequena propriedade rural é impenhorável, nos termos do art. 5º, XXVI, da CF/88 e do art. 833, VIII, do CPC, mesmo que o imóvel não sirva de moradia ao executado e à sua família.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.591.298-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 14/11/2017 (Info 616).

Impenhorabilidade do art. 833, VIII, do CPC não é o mesmo que a impenhorabilidade do bem de família rural
Tanto a impenhorabilidade do art. 833, VIII, do CPC como a impenhorabilidade do bem de família rural estão relacionadas com o princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo-se ao executado a preservação de um patrimônio mínimo, do qual lhe seja possível extrair condições dignas de subsistência.
Apesar disso, são institutos diferentes com fundamentos diferentes:
• impenhorabilidade do bem de família rural: destina-se a garantir o direito fundamental à moradia;

• impenhorabilidade do art. 833, VIII, do CPC: tem por objetivo assegurar o direito, também fundamental, de acesso aos meios geradores de renda, no caso, o imóvel rural, de onde a família do trabalhador rural, por meio do labor agrícola, obtém seu sustento.

O art. 4º, § 2º, da Lei nº 8.009/90 trata sobre bem de família rural (e não sobre a impenhorabilidade da pequena propriedade rural).

Requisitos
Desse modo, para que o imóvel rural seja impenhorável, nos termos do art. 5º, XXVI, da CF/88 e do art. 833, VIII, do CPC, é necessário que cumpra apenas dois requisitos cumulativos:
1) seja enquadrado como pequena propriedade rural, nos termos definidos pela lei; e
2) seja trabalhado pela família.


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