quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Inserir informação falsa em currículo Lattes não configura crime de falsidade ideológica
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Imagine a seguinte situação adaptada:
João é professor de uma
Universidade Federal.
Ele inseriu seu currículo pessoal
na plataforma digital Lattes, mantida pelo CNPq.
Ocorre que João colocou que seu
regime de trabalho na Universidade era de 40 horas semanais, quando, na
verdade, era de apenas 20 horas.
Essa
inexatidão foi descoberta e João foi denunciado, pelo MPF, pela prática do
crime de falsidade ideológica, delito previsto no art. 299 do Código Penal:
Art. 299. Omitir, em documento público
ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer
inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de
prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato
juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e
multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o
documento é particular.
Parágrafo
único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do
cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil,
aumenta-se a pena de sexta parte.
A denúncia narrou o seguinte:
“Conforme restou demonstrado nos
autos, JOÃO, de forma livre e consciente, inseriu dados falsos na plataforma
Lattes (sistema informático da CAPES), com o objetivo de obter uma melhor
avaliação do curso de mestrado da Universidade Federal do XXX, do qual seria o
coordenador.
No dia 22 de fevereiro de 2010, o
denunciado inseriu na plataforma mencionada informação inverídica, afirmando
que trabalhava como Professor Adjunto Efetivo da XXX num regime de 40 horas
semanais, quando, na verdade, seriam 20 horas.
As informações lançadas na plataforma
Lattes têm relevância no sentido de subsidiarem a atuação do CNPq - Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico no que diz respeito
especialmente à avaliação de cursos que podem se beneficiar dos recursos de
programas desenvolvidos pela autarquia.
Ao inserir na plataforma
informações não condizentes com a verdade no que concerne à carga horária que
cumpria como professor da XXX, o denunciado pretendeu ludibriar o CNPq nas
avaliações trienais sobre o Programa de Pós-Graduação da universidade.
Assim agindo, JOÃO praticou o
delito previsto no art. 299 do Código Penal.”
O STJ concordou com a tese do
MPF? A conduta narrada configura crime?
NÃO.
Não
é típica a conduta de inserir, em currículo Lattes, dado que não condiz com a
realidade.
Isso
não configura falsidade ideológica (art. 299 do CP).
STJ. 6ª Turma. RHC 81.451-RJ, Rel.
Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 22/8/2017 (Info 610).
Plataforma Lattes não é
considerada documento
Conforme vimos acima, o crime de
falsidade ideológica consiste em “omitir, em documento
público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou
fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim
de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato
juridicamente relevante”.
Na situação narrada envolvendo
João, não há o objeto material do tipo. Isso porque não há “documento” no qual
tenha sido inserida declaração falsa.
A plataforma Lattes, como se
sabe, é virtual e nela o usuário, após colocar seu "login" e senha,
insere as informações desejadas. Não se trata, portanto, de um escrito
palpável, ou seja, um papel do mundo real, mas sim de uma página em um sítio
eletrônico.
Para que seja documento
eletrônico, é necessária assinatura digital
Embora possa
existir "documento eletrônico", não está ele presente no caso
concreto. Isso porque somente pode ser considerado “documento eletrônico”
aquele que consta em site que possa ter sua autenticidade aferida por
assinatura digital. Nesse sentido, a MP 2.200-2/2001, que instituiu a
Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), dispõe no seu art.
1º:
Art. 1º Fica instituída a
Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a
autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos
em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações
habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de
transações eletrônicas seguras.
No Brasil, a infraestrutura de
chaves públicas é de responsabilidade de uma Autarquia Federal, o ITI -
Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, ligado à Presidência da
República.
Para que pudesse ser considerado
documento eletrônico, a plataforma Lattes teria que ter a sua validade jurídica
atestada por meio da assinatura digital.
Logo, não se pode ter como
documento o currículo inserido na plataforma virtual do Lattes do CNPq, porque
desprovido de assinatura digital e, portanto, sem validade jurídica.
Currículo Lattes é passível de
averiguação e, portanto, não é objeto material de falsidade ideológica
O STJ foi além e disse o
seguinte: ainda que o currículo Lattes pudesse ser considerado um documento digital
válido para fins penais, mesmo assim não teria havido crime. Isso porque, como qualquer
currículo, seja clássico (papel escrito) ou digital, o currículo Lattes é
passível de averiguação, ou seja, as informações nele contidas deverão ser
objeto de aferição por quem nelas tenha interesse.
Quando o documento é passível de
averiguação, o STJ entende que não há crime de falsidade ideológica, mesmo que
o agente tenha inserido nele informações falsas. Nesse sentido:
(...) Já se sedimentou na doutrina e
na jurisprudência o entendimento de que a petição apresentada em Juízo não
caracteriza documento para fins penais, uma vez que não é capaz de produzir
prova por si mesma, dependendo de outras verificações para que sua fidelidade
seja atestada. (...)
STJ. 5ª Turma. RHC 70.596/MS, Rel.
Min. Jorge Mussi, julgado em 01/09/2016.
(...) somente se configura o crime de
falsidade ideológica se a declaração prestada não estiver sujeita a confirmação
pela parte interessada, gozando, portanto, de presunção absoluta de veracidade.
(...)
STJ. 6ª Turma. RHC 46.569/SP, Rel.
Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 28/04/2015.
É a opinião também da doutrina:
"(...) havendo necessidade
de comprovação - objetiva e concomitante -, pela autoridade, da autenticidade
da declaração, não se configura o crime, caso ela seja falsa ou, de algum modo,
dissociada da realidade." (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13ª ed., São Paulo: RT, 2013, p. 1.138)