quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
É possível que o cassino cobre no Brasil por dívidas de jogo contraídas no exterior
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João gosta muito de cassinos a
fim de participar de torneios de poker e foi passar o fim de semana em Las
Vegas (EUA), como faz frequentemente.
Por ser cliente assíduo do hotel,
João possui um privilégio por meio do qual adquire as fichas para o cassino com
a obrigação de pagar depois. Isso é chamado de “marker”, créditos concedidos ao
jogador, que recebe a antecipação dos valores em forma de fichas e assina uma
espécie de promissória.
João pegou o equivalente a 500
mil dólares em fichas, assinando as respectivas promissórias.
Depois de dois dias jogando, o
brasileiro perdeu tudo.
Ele voltou para o Brasil sem
pagar pelas fichas que adquiriu.
O cassino ingressou, então, com
ação de cobrança na vara cível de São Paulo, local onde mora o réu, pedindo o
pagamento de quase R$ 2 milhões, valor atualizado do débito.
João contestou a ação alegando
que o pedido é juridicamente impossível considerando que o ordenamento
brasileiro proíbe a cobrança de dívidas de jogo.
O argumento do réu foi acolhido
pelo STJ? A ação deve ser julgada extinta sem resolução do mérito pela
impossibilidade jurídica do pedido?
NÃO.
A
cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro em cassino que funciona
legalmente no exterior é juridicamente possível e não ofende a ordem pública,
os bons costumes e a soberania nacional.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.628.974-SP, Rel.
Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 13/6/2017 (Info 610).
O jogo explorado por cassinos é
proibido pela legislação brasileira, sendo, no entanto, lícito em diversos
estados americanos, como é o caso de Nevada, onde se situa Las Vegas.
A questão a ser debatida, então,
diz respeito à possibilidade de cobrança judicial de dívida de jogo contraída
por um brasileiro em um cassino que funciona legalmente no exterior. O STJ
entendeu que é possível. Vamos entender com calma.
Dívidas de jogo contraídas no
Brasil são inexigíveis
O art. 814 do
Código Civil preconiza:
Art. 814. As dívidas de jogo ou de
aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que
voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor
ou interdito.
Em caso de obrigação constituída
no exterior aplica-se o art. 9º da LINDB
Ocorre que a
obrigação foi constituída nos EUA. Dessa forma, deve-se aplicar a legislação
estadunidense, conforme prevê o art. 9º, caput, da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (LINDB):
Art. 9º Para qualificar e reger as
obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
Assim, a lei material aplicável
ao caso é a norte-americana, mais especificamente a do Estado de Nevada.
Para obrigação constituída no
exterior poder ser exigida em nosso país, deve-se respeitar a soberania
nacional, a ordem pública e os bons costumes
Vale
ressaltar que a lei estrangeira somente pode produzir eficácia jurídica no
Brasil se não ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons
costumes. Em outras palavras, mesmo tendo a obrigação se constituído no
exterior, esta obrigação somente será exigível em nosso país se não violar
estes valores. Isso é o que estabelece o art. 17 da LINDB:
Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem
como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando
ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Dessa feita, a possibilidade (ou
não) de cobrança de dívida de jogo contraída no exterior está diretamente
relacionada com os valores mencionados no referido art. 17.
A pergunta que surge, então, é a
seguinte: cobrar dívida de jogo contraída no exterior viola a soberania
nacional, ordem pública e bons costumes?
NÃO. Vejamos.
Soberania nacional
A cobrança de dívida de jogo
ocorrida no exterior não ofende a soberania nacional. Ora, a concessão de
validade a negócio jurídico realizado no estrangeiro não retira o poder do
Brasil em relação ao seu território nem cria nenhuma forma de dependência ou
subordinação a outros Estados soberanos.
Ordem pública
A ordem pública é conceito
mutável, relacionado com a moral e com a ordem jurídica vigente em dado momento
histórico. Não se trata de uma noção rígida, mas de um critério que deve ser
revisto conforme a evolução da sociedade.
Existem atualmente no Brasil
diversos jogos de azar legalizados, os quais em nada se diferenciam dos jogos
estimulados nos cassinos.
Não há, portanto, uma absoluta
incompatibilidade entre a lei do Estado de Nevada, que autoriza os cassinos
supervisionados pelo Estado, com a ordem jurídica vigente no Brasil.
Vale ressaltar que o Brasil pune
como contravenção penal a exploração de jogos não legalizados (art. 50). Ocorre
que os cassinos no Estado de Nevada são jogos legalizados, de forma que não se
enquadram na Lei de Contravenções Penais.
Bons costumes
O meio social e o ordenamento
jurídico brasileiros não consideram atentatórios aos bons costumes os jogos de
azar. Isso se mostra pelo fato de que diversos deles são autorizados no Brasil,
como loterias, raspadinhas, sorteios e corridas de cavalo.
Além disso, o próprio art. 814 do
CC, em sua parte final, afirma que não se pode recobrar a quantia que
voluntariamente se pagou a título de dívida de jogo ou aposta. Ora, se fosse
contrário aos bons costumes, não haveria essa regra de irrepetibilidade.
Dessa forma, cobrar dívida de
jogo contraída no exterior não viola a soberania nacional, ordem pública e bons
costumes.
Enriquecimento sem causa
Além disso, permitir a cobrança,
no Brasil, de dívida de jogo contraída no exterior é uma medida que está de
acordo com o art. 884 do Código Civil, que proíbe expressamente o
enriquecimento sem causa.
Aquele que visita país
estrangeiro, usufrui de sua hospitalidade e contrai livremente obrigações
lícitas não pode retornar a seu país de origem buscando a impunidade civil.
Se não fosse permitido que o
cassino cobrasse a dívida aqui no Brasil, haveria lesão à boa-fé de terceiro,
bem como o enriquecimento sem causa do devedor.
Conclui-se, portanto, que o
pedido é juridicamente possível e não ofende a ordem pública, os bons costumes
e a soberania brasileira. Ademais, deve ser aplicada, no que respeita ao
direito material, a lei americana.