Dizer o Direito

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Comentários à Lei 13.546/2017, que altera os crimes de trânsito



Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada no dia de ontem (20/12), a Lei nº 13.546/2017, que altera o Código de Trânsito Brasileiro.

Vamos entender o que mudou.

1. ALTERAÇÃO NOS CRITÉRIOS DE ANÁLISE DA DOSIMETRIA DA PENA

Aspectos criminais do CTB
O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que é a Lei n.° 9.503/97.
O CTB prevê, dentre outras disposições, infrações de natureza administrativa (infrações de trânsito) e infrações de natureza penal (crimes de trânsito).

Crimes de trânsito
Os crimes de trânsito estão previstos nos arts. 302 a 312 do CTB e são os seguintes:
• Homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302);
• Lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303);
• Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública (art. 304);
• Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída (art. 305);
• Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (art. 306);
• Violar a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (art. 307);
• Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada (art. 308);
• Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano (art. 309);
• Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança (art. 310);
• Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano (art. 311);
• Inovar artificiosamente, em caso de acidente automobilístico com vítima, na pendência do respectivo procedimento policial preparatório, inquérito policial ou processo penal, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de induzir a erro o agente policial, o perito, ou juiz (art. 312).

Aplicação das normas gerais do CP naquilo que não for incompatível com o CTB
Dessa forma, o Código de Trânsito prevê uma série de condutas punidas como crimes na direção de veículos automotores.
Ocorre que o CTB não traz regras detalhadas sobre conduta, ilicitude, culpabilidade, punibilidade, prescrição e outros institutos da teoria geral do Direito Penal. Em razão disso, o CTB determina que devem ser aplicadas as normas gerais do Código Penal naquilo que não for incompatível. É o que prevê o caput do art. 291:
Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.

Dosimetria da pena
O CTB não traz regras detalhadas sobre a dosimetria da pena. Em virtude disso, devem ser aplicadas as normas do Código Penal sobre o tema.
O CP prevê que a dosimetria da pena na sentença obedece a um critério trifásico:
1º passo: o juiz calcula a pena-base de acordo com as circunstâncias judiciais do art. 59, CP;
2º passo: o juiz aplica as agravantes e atenuantes;
3º passo: o juiz aplica as causas de aumento e de diminuição.

Primeira fase (circunstâncias judiciais)
Na primeira fase, o juiz fixará a pena-base com fundamento nas chamadas “circunstâncias judiciais” previstas no art. 59 do CP e que são as seguintes:
a) culpabilidade;
b) antecedentes;
c) conduta social;
d) personalidade do agente;
e) motivos do crime;
f) circunstâncias do crime;
g) consequências do crime;
h) comportamento da vítima.

O que fez a Lei nº 13.546/2017?
Acrescentou o § 4º ao art. 291 do CTB dizendo que, em caso de crimes de trânsito, o juiz, ao fixar a pena-base, deverá dar maior relevância para três circunstâncias judiciais:
• a culpabilidade do agente;
• as circunstâncias do crime;
• as consequências do crime.

Veja a redação do dispositivo inserido:
§ 4º O juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime.

Culpabilidade: consiste na reprovação social que o crime e o autor do fato merecem. Essa culpabilidade de que trata o art. 59 do CP não tem nada a ver com a culpabilidade como requisito do crime (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa).

Circunstâncias do crime: “são elementos acidentais que não participam da estrutura própria de cada tipo, mas que, embora estranhas à configuração típica, influem sobre a quantidade punitiva para efeito de agravá-la ou abrandá-la. [...] Entre tais circunstâncias, podem ser incluídos o lugar do crime, o tempo de sua duração, o relacionamento existente entre o autor e a vítima, a atitude assumida pelo delinquente no decorrer da realização do fato criminoso etc.” (SILVA FRANCO, Alberto. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial — Parte Geral. v. I, t. I, São Paulo : RT, 1997, p. 900).

Consequências do crime: “é o mal causado pelo crime, que transcende ao resultado típico. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando-lhes um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo : RT, 2003, p. 265-266).

Vale ressaltar que nos crimes de trânsito o juiz continuará a examinar todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP. O que a nova Lei determina é que a culpabilidade, as circunstâncias e as consequências do crime agora apresentam caráter preponderante, ou seja, terão uma relevância maior no momento do cálculo da pena-base.

Assim, por exemplo, se, durante a dosimetria da pena em condenação por delito de trânsito, o juiz constatar que a culpabilidade, as circunstâncias e as consequências do crime são negativas, a pena deverá ficar próxima ao máximo, mesmo que as demais circunstâncias sejam favoráveis ou neutras.


2. ALTERAÇÃO NO CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO (ART. 302)

O crime de homicídio culposo no trânsito é previsto no art. 302 do CTB.

A Lei nº 13.546/2017 acrescenta o § 3º ao art. 302, com a seguinte redação:
Art. 302.  (...)
§ 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: 
Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Qualificadora do homicídio culposo no trânsito
Apesar de a redação não ser das melhores, o que a Lei nº 13.546/2017 fez foi inserir uma nova qualificadora relacionada com o crime de homicídio culposo no trânsito.
Assim, atualmente, temos três figuras relacionadas a este tipo penal:

1) Homicídio culposo no trânsito simples
Previsto no caput do art. 302 do CTB.
Pena: detenção, de 2 a 4 anos.
É subsidiário, ou seja, somente incidirá se a conduta não se amoldar no §3º do art. 302.

2) Homicídio culposo no trânsito majorado
Previsto no § 1º do art. 302 do CTB.
Neste § 1º, o legislador previu causas de aumento para o homicídio culposo no trânsito.
Pena: detenção, de 2 a 4 anos, com uma causa de aumento de 1/3 a 1/2.

3) Homicídio culposo no trânsito qualificado pela embriaguez ou uso de substância psicoativa
Previsto no § 3º do art. 302 do CTB.
Pena: reclusão, de 5 a 8 anos.
O agente que provocou o homicídio culposo no trânsito conduzia o veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

Atenção
Ao contrário do que uma leitura apressada pode dar a entender, o novo § 3º do art. 302 do CTB não pune o simples fato de o indivíduo dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. A chamada “embriaguez ao volante” continua sendo punida pelo art. 306 do CTB:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

O que o § 3º do art. 302 pune é a conduta de praticar homicídio culposo sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Não se pode esquecer que o parágrafo de um artigo está vinculado ao caput do dispositivo. Assim, não se pode fazer uma interpretação literal e isolada do § 3º sem considerar que ele se refere e está subordinado ao art. 302.

Repetindo:
• Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: trata-se de crime formal punido pelo art. 306 do CTB (pena: detenção, de 6 meses a 3 anos).
• Conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência e causar homicídio culposo no trânsito: consiste em crime material, punido pelo art. 302, § 3º do CTB (pena: reclusão, de 5 a 8 anos).

Inexistência de concurso de crimes entre o art. 302 e o art. 306 do CTB
Apenas para que fique claro, se o agente, sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, causar a morte de alguém no trânsito, ele não irá responder pelos delitos dos arts. 302 e 306 em concurso de crimes. Ele responderá apenas pelo crime do art. 302, § 3º do CTB.


3. ALTERAÇÃO NO CRIME DE LESÃO CORPORAL CULPOSA NO TRÂNSITO (ART. 303)

O art. 303 do CTB trata sobre o crime de lesão corporal culposa no trânsito.

A Lei nº 13.546/2017 acrescenta uma nova qualificadora no § 2º com a seguinte redação:
Art. 303. (...)
(...)
§ 2º A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.

Figuras da lesão corporal culposa no trânsito:

1) Lesão corporal culposa no trânsito simples
Prevista no caput do art. 303 do CTB.
Pena: detenção, de 6 meses a 2 anos.
É subsidiário, ou seja, somente incidirá se a conduta não se amoldar no §2º do art. 303.

2) Lesão corporal culposa no trânsito majorada
Previsto no § 1º do art. 303 do CTB.
Neste § 1º, o legislador previu causas de aumento para a lesão corporal culposa no trânsito.
Pena: detenção, de 6 meses a 2 anos, com uma causa de aumento de 1/3 a 1/2.

3) Lesão corporal culposa no trânsito qualificada
Prevista no § 2º do art. 303 do CTB.
Pena: reclusão, de 2 a 5 anos.
São exigidos três requisitos:
1) deve ter havido lesão corporal culposa cometida pelo agente na direção de veículo automotor;
2) o agente conduzia o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência; e
3) a lesão corporal provocada na vítima foi de natureza grave ou gravíssima.

As hipóteses de lesão corporal grave estão previstas no § 1º do art. 129.
Se a lesão corporal resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto.

Os casos de lesão corporal gravíssima estão elencados no § 2º do art. 129.
Se a lesão corporal resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incuravel;
III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto.

Inexistência de concurso de crimes entre o art. 303 e o art. 306 do CTB
Apenas para que fique claro, se o agente, sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, causar lesão corporal grave ou gravíssima a alguém no trânsito, ele não irá responder pelos delitos dos arts. 303 e 306 em concurso de crimes. Ele responderá apenas pelo crime do art. 303, § 2º do CTB.


4. ALTERAÇÃO NO CRIME DE PARTICIPAR DE CORRIDA EM VIA PÚBLICA (ART. 308)

O art. 308 do CTB tipifica o crime de participar de corrida em via pública, sem autorização da autoridade competente. Trata-se da conduta mais conhecida popularmente como “racha” ou “pega”.

A Lei nº 13.546/2017 alterou o caput do art. 308. Compare:

Antes
Agora
Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

Dessa forma, a Lei nº 13.546/2017 acrescentou a seguinte expressão: “ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor”.

O objetivo da alteração foi o de punir o motorista que, mesmo sem disputar com ninguém, faz manobras arriscadas no carro a fim de exibir ou demonstrar perícia no veículo. Ex: dar cavalo-de-pau com o veículo.

Vale ressaltar que essa conduta já era punida como infração administrativa no art. 174 do CTB e agora foi também tipificada como crime.

VIGÊNCIA
A Lei nº 13.546/2017 entrará em vigor no dia 19 de abril de 2018.

Márcio André Lopes Cavalcante
Professor



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