Olá amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada no último dia 08/12, a Lei nº 13.532/2017, que
altera do Código Civil e confere legitimidade ao Ministério Público para
promover ação visando à declaração de indignidade de herdeiro ou legatário.
Vamos entender o que mudou, mas para isso é fundamental
relembrarmos alguns aspectos sobre o instituto da INDIGNIDADE.
O que é a indignidade, no Direito Civil?
Indignidade são situações previstas no Código Civil nas
quais o indivíduo que normalmente iria ter direito à herança, ficará impedido
de recebê-la em virtude de ter praticado uma conduta nociva em relação ao autor
da herança ou seus familiares. Trata-se, portanto, de uma causa de exclusão da
sucessão.
A indignidade é considerada uma punição, uma “pena civil”
aplicada ao herdeiro ou legatário acusado de atos reprováveis contra o falecido.
Hipóteses de indignidade
As situações que configuram indignidade estão previstas no
art. 1.814 do Código Civil:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão
os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores,
co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a
pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou
descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente
em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de
seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios
fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de
seus bens por ato de última vontade.
Este rol é taxativo (numerus
clausus).
Inciso I
Sobre a hipótese do inciso I acima, vale uma observação:
para que se ajuíze a ação de indignidade, não se exige prévia condenação no
juízo criminal. Mesmo que o processo criminal esteja ainda tramitando, o
interessado pode ingressar com a ação de indignidade, até mesmo porque esta
demanda tem prazo decadencial de 4 anos.
Vale ressaltar, no entanto, que o autor da ação de
indignidade deverá provar, neste processo cível, a ocorrência da situação
prevista em algum dos incisos do art. 1.814 do CC. Assim, o autor da ação terá
que provar, com testemunhas, perícia etc., que o indigno praticou o homicídio
doloso.
Como é feita a exclusão do indivíduo que praticou ato de indignidade
Para excluir um herdeiro ou legatário que praticou ato de
indignidade, é necessária a propositura de ação judicial de indignidade.
Assim, a exclusão do herdeiro ou legatário deverá ser declarada
por sentença (art. 1.815), que irá reconhecer que o indivíduo praticou o ato de
indignidade.
Existe, inclusive, um prazo para que essa ação seja
proposta. O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se
em quatro anos, contados da abertura da sucessão (art. 1.815, parágrafo único).
Vale ressaltar que se houver herdeiros menores, o prazo só
se inicia depois que atingirem a maioridade.
Quem tem legitimidade para ajuizar a ação de indignidade?
A ação de declaração de indignidade pode ser proposta por
qualquer interessado na sucessão.
E o Ministério Público, possui legitimidade para ajuizar ação de
indignidade?
O que diz a doutrina:
A doutrina majoritária, mesmo antes da Lei nº 13.532/2017,
já defendia o entendimento de que o Promotor de Justiça tem legitimidade para
propor esta ação, desde que presente o interesse público. Nesse sentido:
Enunciado 116 – Jornada de Direito
Civil: O Ministério Público, por força do art. 1.815, desde que presente o
interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração de
indignidade de herdeiro ou legatário.
Exemplo de situação em que há interesse público e que,
portanto, o MP teria legitimidade para propor a ação de indignidade: se os
herdeiros interessados forem incapazes.
O que diz o Código Civil:
Não havia previsão expressa no Código Civil autorizando que
o Ministério Público ajuizasse ação de indignidade.
A Lei nº 13.532/2017 acrescentou um parágrafo ao art. 1.815
prevendo expressamente a legitimidade do MP em um caso específico:
Art. 1.815 (...)
§ 2º Na hipótese do inciso I do art.
1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do
herdeiro ou legatário.
Assim, de acordo com a atual redação do Código Civil, o
Ministério Público pode ajuizar ação pedindo a declaração de indignidade caso o
herdeiro ou legatário tenham sido:
- autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso
(consumado ou tentado)
- praticado contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro,
ascendente ou descendente.
Caso Suzane Richtofen
A presente alteração legislativa foi inspirada pelo famoso caso
Suzane Richtofen, que, em 2002, matou os pais, com a ajuda do seu namorado.
Os três foram condenados e cumprem pena por isso. A garota
recebeu 38 anos de reclusão.
A situação de Suzane poderia ser enquadrada no inciso I do
art. 1.814 do CC. Assim, ela poderia ser excluída da sucessão e não receber a
herança dos seus pais. Ocorre que, para isso acontecer, o outro herdeiro (seu
irmão, Andréas Von Richtofen) teve que propor ação de indignidade contra
Suzane.
Caso Andréas não tivesse proposto a ação, Suzane, mesmo
tendo matado os pais, em tese, receberia a herança. Isso parece extremamente
injusto e contrário à ética geral.
Vale ressaltar que, antes da Lei nº 13.532/2017, mesmo se adotássemos
a posição doutrinária presente no Enunciado 116-CJF/STJ, seria discutível e
polêmica a possibilidade de o Ministério Público ajuizar a ação de indignidade
por três motivos:
1) não havia previsão legal;
2) receber herança (direito patrimonial) está muito mais
ligado a interesses privados do que interesse público;
3) o outro herdeiro, em tese, poderia perdoar a pessoa
indigna.
Pensando nisso, a Lei nº 13.532/2017 acrescentou
expressamente a possibilidade de o MP propor a ação de indignidade neste caso.
Assim, se o caso Suzane Richtofen tivesse acontecido após a
Lei nº 13.532/2017, o Promotor de Justiça poderia ajuizar a ação de indignidade
mesmo sem a iniciativa ou concordância de Andréas, outro herdeiro.
No caso de Suzane, como já dito, Andréas ajuizou a ação de indignidade,
tendo ela sido julgada procedente já com trânsito em julgado. Confira trecho do
dispositivo da sentença:
“ANDREAS ALBERT VON RICHTHOFEN
moveu AÇÃO DE EXCLUSÃO DE HERANÇA em face de sua irmã SUZANE LOUISE VON
RICHTHOFEN, por manifesta indignidade desta, pois teria ela, aos 31 de outubro
de 2002, em companhia do seu namorado, Daniel Cravinhos de Paula e Silva, e do
irmão dele, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, barbaramente executado seus
pais (...)
Conheço desde logo do pedido,
pois se trata de matéria exclusiva de direito, estando a lide definida com a
condenação penal, transitada em julgado, da herdeira Suzane Louise Von
Richthofen pela morte de seus pais, pela qual foi condenada a 39 anos de
reclusão e seis meses de detenção.
A indignidade é uma sanção civil
que causa a perda do direito sucessório, privando da fruição dos bens o
herdeiro que se tornou indigno por se conduzir de forma injusta, como fez
Suzane, contra quem lhe iria transmitir a herança (...)
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE
a presente Ação de Exclusão de Herança que Andreas Albert Von Richthofen moveu
em face de Suzane Louise Von Richthofen e, em consequência, declaro a indignidade
da requerida em relação à herança deixada por seus pais, Manfred Albert Von
Richthofen e Marísia Von Richthofen, em razão do trânsito em julgado da ação
penal que a condenou criminalmente pela morte de ambos os seus genitores, nos
exatos termos do disposto no artigo 1.814, I, do Código Civil.
Condeno também a requerida a
restituir os frutos e rendimentos dos bens da herança que porventura
anteriormente percebeu, desde a abertura da sucessão, nos termos do § único,
artigo 1.817, também do Código Civil. (...)”
Discussão quanto à constitucionalidade da Lei nº 13.532/2017
Vislumbro a discussão sobre a (in)constitucionalidade da Lei
nº 13.532/2017.
Para uma primeira corrente, a inovação legislativa seria
inconstitucional por violar o art. 127 da CF/88. Acompanhe o raciocínio.
Sendo a ação de indignidade julgada procedente, o indigno ficará
excluído da herança e a sua parte será redistribuída aos demais herdeiros.
Dessa forma, é fácil perceber que o que se discute na ação
de indignidade são direitos patrimoniais (direito à herança). Não se discute
prisão, cumprimento de pena, ressocialização, prevenção de crimes etc.
Discute-se dinheiro pertencente, em regra, a particulares.
Os outros aspectos relacionados com o fato serão debatidos
no respectivo processo criminal.
Por essa razão, mesmo que uma situação como a da Suzane
Richtofen cause enorme clamor popular e justificada revolta, o certo é que,
tecnicamente, a discussão se ela tem ou não direito à herança envolve um debate
patrimonial e de índole disponível.
Por exemplo, se Andréas resolve perdoar a irmã, isso não
terá efeito direto no processo criminal. Tecnicamente, ela não poderia ser
absolvida por conta disso. No entanto, nada impediria que ele, ao perdoar a
homicida, resolvesse dividir sua herança com ela. Tem ele total disponibilidade
sobre isso por se tratar do seu patrimônio.
Diante desse cenário, poder-se-ia cogitar sobre a inconstitucionalidade
da nova previsão. Isso porque impõe-se ao Ministério Público a atribuição de
envolver-se em uma disputa de interesses patrimoniais disponíveis, ignorando,
inclusive, a eventual vontade do titular desse direito.
A lei pode prever novas atribuições ao Ministério Público,
mas para isso elas devem estar de acordo com o art. 127 da Constituição
Federal, que preconiza:
Art. 127. O Ministério Público é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis.
Pelo comando constitucional, o Ministério Público somente
pode desempenhar atribuições que estejam relacionadas com a defesa:
• da ordem jurídica;
• do regime democrático;
• dos interesses sociais; e
• dos interesses individuais indisponíveis.
Logo, em um primeiro entendimento, o MP não poderia ajuizar
ação de indignidade porque isso representaria tutelar interesses individuais
disponíveis (herança), o que não é autorizado pelo art. 127 da CF/88.
Por outro lado, para uma segunda corrente, a Lei nº
13.532/2017 não seria inconstitucional. Na verdade, ela refletiria o
entendimento majoritário da doutrina e a correta interpretação do art. 127 da
CF/88. Isso porque o Ministério Público, ao propor ação de indignidade no caso
do art. 1.814, I, do Código Civil (homicídio envolvendo o autor da herança ou
seus familiares), está defendendo a ordem jurídica, um dos valores previstos no
art. 127 da Constituição. É a posição, por exemplo, de Maria Berenice Dias que,
mesmo antes da novidade legislativa, defendia este entendimento. Confira:
“(...) Quando o ato de indignidade constitui crime de ação
pública incondicionada, possível conceder legitimação extraordinária ao agente
ministerial. (...)” (DIAS, Maria Berenice. Manual
das Sucessões. São Paulo: RT, 2013, p. 318).
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor