Dizer o Direito

sábado, 15 de julho de 2017

O sistema de cotas para negros em concursos públicos é constitucional



ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI 12.990/2014
O que a Lei estabelece?
A Lei nº 12.990/2014 determinou que deveria haver cotas para negros nos concursos públicos federais.
Assim, 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos realizados pela administração pública federal devem ser destinadas a candidatos negros (art. 1º da Lei).

A lei obriga expressamente quais entidades?
Órgãos, autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista federais, ligadas ao Poder Executivo.

Número mínimo de vagas
A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (art. 1º, § 1º).
Em outras palavras, se o concurso previr menos que 3 vagas, não haverá cotas para negros.

O que acontece se, ao reservar os 20% de vagas aos negros, surgir um número fracionado? Ex: em um concurso para 9 vagas, 20% será igual a 1,8 vagas. O que fazer nesse caso?
• Se a fração for igual ou maior que 0,5 (cinco décimos): o número de vagas deverá ser aumentado para o primeiro número inteiro subsequente. Ex: concurso para 9 vagas (20% = 1,8). Logo, será arredondado para 2 vagas destinadas a negros.
• Se a fração for menor que 0,5 (cinco décimos): o número de vagas deverá ser diminuído para o número inteiro imediatamente inferior. Ex: concurso para 16 vagas (20% = 3,2). Logo, será arredondado para 3 vagas de negros.

Edital deverá informar o número de vagas da cota
O edital do concurso deverá especificar o total de vagas reservadas aos candidatos negros para cada cargo ou emprego público oferecido.

CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 12.990/2014
Em 2016, a OAB ajuizou ação declaratória de constitucionalidade em defesa da Lei nº 12.990/2014 pedindo que o STF declarasse esta norma compatível com a CF/88. O que decidiu o Supremo?
O STF julgou procedente a ADC, declarando a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014. Além disso, a Corte fixou uma tese para ser observada pela Administração Pública e demais órgãos do Poder Judiciário:
É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta.
STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (repercussão geral) (Info 868).

Vejamos abaixo um resumo dos argumentos desenvolvidos pelo Min. Relator Luis Roberto Barroso:

Três dimensões da igualdade
A igualdade proíbe que haja uma hierarquização dos indivíduos e que sejam feitas distinções sem fundamento.
No entanto, a igualdade também transmite um comando, qual seja, o de que deve haver a neutralização de injustiças históricas, econômicas e sociais e que haja um maior respeito à diferença.
No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa em três dimensões: a) a igualdade formal; b) a igualdade material; c) a igualdade como reconhecimento.

a) Igualdade formal
A igualdade formal significa dizer que não pode haver privilégios e tratamentos discriminatórios.
A igualdade formal está ligada ao chamado Estado liberal e foi idealizada como uma forma de reação aos privilégios da nobreza e do clero.
Pode ser subdividida em dois aspectos:
• Igualdade perante a lei: comando dirigido ao aplicador da lei – judicial e administrativo –, que deverá aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidência.
• Igualdade na lei: comando endereçado ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo.

A igualdade formal encontra-se prevista no art. 5º, caput, da CF/88: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

b) Igualdade material
O conceito de igualdade material está ligado a demandas por redistribuição de riqueza e poder e, em última análise, por justiça social.
O desenvolvimento da ideia de igualdade material surge a partir da constatação de que não basta proibir que haja privilégios. É preciso atuar ativamente contra a desigualdade econômica e em favor da superação da miséria.
Mais do que a igualdade perante a lei, deve-se assegurar algum grau de igualdade perante a vida.
Dessa forma, deve-se garantir a proteção jurídica do polo mais fraco de certas relações econômicas, a criação de redes de proteção social e mecanismos de redistribuição de riquezas.
Para isso, é necessário que o Poder Público faça a entrega de prestações positivas adequadas em matérias como educação, saúde, saneamento, trabalho, moradia, assistência social.
A igualdade material encontra-se prevista no art. 3º, I e III, da CF/88, que afirma que a República Federativa do Brasil tem como objetivos “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

c) Igualdade como reconhecimento
A igualdade como reconhecimento significa o respeito que se deve ter para com as minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.
A injustiça a ser combatida nesse caso tem natureza cultural ou simbólica. Ela decorre de modelos sociais de representação que, ao imporem determinados códigos de interpretação, recusariam os “outros” e produziriam a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo.
Determinados grupos são marginalizados em razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência física ou orientação sexual, como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos, deficientes, mulheres, homossexuais e transgêneros.
O instrumento para se alcançar a igualdade como reconhecimento é a transformação cultural ou simbólica.
O objetivo é constituir um mundo aberto à diferença (“a difference-friendly world”).
A igualdade como reconhecimento encontra-se também prevista no art. 3º, IV, da CF/88, que determina que um dos objetivos fundamentais da República é o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Vale ressaltar que, em muitos casos, alguns grupos sofrem tanto uma desigualdade material como uma desigualdade quanto ao reconhecimento. As mulheres e os negros, por exemplo, sofrem injustiças cujas raízes se encontram tanto na estrutura econômica, quanto na estrutura cultural-valorativa, exigindo ambos os tipos de remédio.

Voltando à análise da Lei
A Lei nº 12.990/2014 atende aos três planos de igualdade acima explicados.
A igualdade formal, como vimos, impede a lei de estabelecer privilégios e diferenciações arbitrárias entre as pessoas, isto é, exige que o fundamento da desequiparação seja razoável e que o fim almejado seja compatível com a Constituição. No caso analisado, o fundamento e o fim da Lei nº 12.990/2014 são razoáveis, motivados por um dever de reparação histórica e por circunstâncias que explicitam um racismo estrutural na sociedade brasileira a ser enfrentado.
Quanto à igualdade material, o racismo estrutural gerou uma desigualdade material profunda. Desse modo, qualquer política redistributivista precisará indiscutivelmente assegurar vantagens competitivas aos negros.
Por fim, a igualdade como reconhecimento significa respeitar as pessoas nas suas diferenças e procurar aproximá-las, igualando as oportunidades. A política afirmativa instituída pela Lei nº 12.990/2014 tem exatamente esse papel.
Há uma dimensão simbólica importante no fato de negros ocuparem posições de destaque na sociedade brasileira. Além disso, há um efeito considerável sobre a autoestima das pessoas. Afinal, cria-se resistência ao preconceito alheio. Portanto, a ideia de pessoas negras e pardas serem símbolo de sucesso e ascensão e terem acesso a cargos importantes influencia a autoestima das comunidades negras. Ademais, o pluralismo e a diversidade tornam qualquer ambiente melhor e mais rico.
Dessa forma, o STF concluiu que a Lei nº 12.990/2014 supera o teste da igualdade formal, material e como reconhecimento.

Princípio do concurso público
A Lei nº 12.990/2014 não viola o princípio do concurso público. Isso porque, para serem investidos nos cargos públicos, os candidatos negros têm de ser aprovados no concurso. Caso não atinjam o patamar mínimo, sequer disputarão as vagas.
A única coisa que a Lei fez foi criar duas formas distintas de preenchimento de vagas, em razão de reparações históricas, sem abrir mão do critério mínimo de suficiência.

Princípio da eficiência
A Lei nº 12.990/2014 não afronta o princípio da eficiência.
Não necessariamente os candidatos aprovados em primeiro lugar, segundo o critério da nota, serão absolutamente melhores que os outros.
A noção de meritocracia deve comportar nuances que permitam a competição em igualdade de condições.
Pode-se até mesmo imaginar um ganho importante de eficiência. Afinal, a vida não é feita apenas de competência técnica, ou de capacidade de pontuar em concurso, mas sim de uma dimensão de compreensão do outro e de variadas realidades. A eficiência pode ser muito bem-servida pelo pluralismo e pela diversidade no serviço público.

Princípio da proporcionalidade
Por fim, o STF entendeu que a Lei nº 12.990/2014 não ofende o princípio da proporcionalidade.
A demanda por reparação histórica e ação afirmativa não foi resolvida com a simples existência de cotas para acesso às universidades públicas. Isso não foi suficiente.
O impacto das cotas raciais não se manifesta no mercado de trabalho automaticamente, pois há um tempo de espera até que essas pessoas estudem, se formem e se tornem competitivas.
Além disso, a proporção de 20% escolhida pelo legislador é extremamente razoável. Se essa escolha fosse submetida a um teste de proporcionalidade em sentido estrito, também não haveria problema, porque 20%, em rigor, representariam menos da metade do percentual de negros na sociedade brasileira.

CRITÉRIOS DE IDENTIFICAÇÃO DOS COTISTAS
Critério da autodeclaração
Segundo o art. 2º da Lei nº 12.990/2014, poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE.
Esse é o chamado critério da autodeclaração.

Declaração falsa
Se ficar constatado que o candidato fez declaração falsa sobre sua cor, a Lei prevê que ele será eliminado do concurso.
Caso a declaração falsa somente seja constatada após o candidato já ter sido nomeado, a sua admissão poderá ser anulada, após processo administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Além disso, o candidato ainda poderá ser processado criminalmente.

Critério da heteroidentificação
O STF afirmou que o critério da autodeclaração é constitucional. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se percebem.
Entretanto, a Corte afirmou que é possível também que a Administração Pública adote um controle heterônomo, sobretudo quando existirem fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração.
Exemplos desse controle heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração.

Cautelas no critério de heteroidentificação
Vale ressaltar que o controle heterônomo pode ser realizado, mas desde que observadas algumas cautelas a fim de que não haja violação à dignidade da pessoa humana, devendo ser garantido o contraditório e a ampla defesa aos candidatos interessados.

Em suma
É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (repercussão geral) (Info 868).

APLICAÇÃO DA LEI
A reserva de vagas tratada pela Lei nº 12.990/2014 vale para todos os três Poderes da União (Executivo, Legislativo e Judiciário), além do MPU e DPU.
A Lei nº 12.990/2014 não se aplica para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. No entanto, caso estes entes editem leis semelhantes, elas também são consideradas constitucionais.
Não ficou definido, neste julgamento, se as cotas valem também para concursos de remoção e promoção. Isso porque este tema não constou do pedido nem foi discutido em memoriais.

PREENCHIMENTO DAS VAGAS
Os candidatos negros concorrem apenas às vagas da cota?
NÃO. Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.
Ex: em determinado concurso, 80 vagas eram destinadas à ampla concorrência e 20 reservadas para negros. João, que se autodeclarou preto no momento da inscrição, ficou em 25º lugar na lista de candidatos negros. Ao mesmo tempo, na lista de ampla concorrência, ele ficou em 79º lugar. Logo, ele será nomeado nas vagas destinadas à ampla concorrência.

Candidato negro que foi aprovado nas vagas de ampla concorrência
Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas (art. 3º, § 1º).
Ex: em determinado concurso, 80 vagas eram destinadas à ampla concorrência e 20 reservadas para negros. Pedro, que se autodeclarou preto no momento da inscrição, ficou em 19º lugar na lista de candidatos negros. Ao mesmo tempo, na lista de ampla concorrência, ele ficou em 79º lugar. Logo, ele será nomeado nas vagas destinadas à ampla concorrência e a sua vaga na lista da cota (19º lugar) será utilizada por outro candidato negro.

Candidato negro que desiste da nomeação ou posse
Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado.
Ex: em determinado concurso, 20 vagas eram reservadas para negros. Lucas, que se autodeclarou preto no momento da inscrição, ficou em 20º lugar na lista de candidatos negros. Ocorre que ele desistiu de sua nomeação em razão de ter passado em outro certame. Logo, a administração pública terá que convocar o 21º candidato negro.

O que acontece se as vagas reservadas aos candidatos negros não forem integralmente preenchidas?
Na hipótese de não haver candidatos negros aprovados em número suficiente para ocupar as vagas reservadas, tais vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.
Ex: em determinado concurso, 4 vagas eram reservadas para candidatos negros. Ocorre que somente 3 candidatos negros fizeram a pontuação mínima exigida (nota de corte). Assim, essa quarta vaga poderá ser preenchida por candidato não negro.

Nomeação dos candidatos
A Lei n.º 12.990/2014 prevê a seguinte regra:
Art. 4º A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.

Quanto aos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos, o STF exemplificou a forma correta de interpretar a lei. No caso de haver 20 vagas, 4 seriam reservadas a negros, obedecida a seguinte sequência de ingresso: primeiro colocado geral, segundo colocado geral, terceiro colocado geral, quarto colocado geral, até que o quinto convocado seria o primeiro colocado entre os negros, e assim sucessivamente.
Dessa forma, evita-se colocar os aprovados da lista geral primeiro e somente depois os aprovados por cotas.

Vigência do sistema de cotas para negros
O sistema de cotas para negros previsto na Lei nº 12.990/2014 irá durar pelo prazo de 10 anos. Após esse período, acabam as cotas para negros em concursos públicos da administração pública federal, salvo se for verificado que a medida ainda é necessária quando, então, deverá ser editada uma nova lei prorrogando o prazo.




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