quarta-feira, 7 de junho de 2017
Breves comentários à EC 96/2017 (Emenda da Vaquejada)
quarta-feira, 7 de junho de 2017
Olá amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada hoje (07/06/2017) mais uma emenda
constitucional.
Trata-se da EC 96/2017, que acrescenta o § 7º ao art. 225 da
CF/88 “para determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são
consideradas cruéis”.
O verdadeiro objetivo desta emenda foi o de superar uma
decisão do STF proferida em 2016 na qual o Tribunal declarou que a atividade
conhecida como “vaquejada” era inconstitucional em virtude de gerar tratamento
cruel aos bovinos.
Antes de mostrar o conteúdo da EC 96/2017 vamos relembrar em
que consiste a vaquejada e qual foi a decisão do STF a respeito do tema.
Vaquejada
A vaquejada é uma prática cultural comum nos Estados do
nordeste do Brasil, em especial no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba,
em Alagoas e na Bahia.
Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um montado em seu cavalo,
perseguem o boi na arena e, após emparelhá-lo com os cavalos, tentam conduzi-lo
até uma região delimitada, onde deverão derrubar o boi puxando-o pelo rabo.
Se o boi, quando foi derrubado, ficou, ainda que por alguns
instantes, com as quatro patas para cima antes de se levantar, o juiz declara
ao público “Valeu boi!” e a dupla recebe os pontos.
Se o boi caiu, mas não ficou com as patas para cima, o juiz
anuncia “Zero!”, e a dupla não pontua.
Algumas regras mudam de acordo com a organização do evento,
mas, em regra, cada dupla enfrenta cinco bois. O primeiro vale 8 pontos, o
segundo 9 pontos, o terceiro 10 pontos, o quarto 11 e o quinto 12, totalizando 50
pontos.
Críticas e defensores
As associações protetoras dos animais criticam bastante as
vaquejadas, alegando que os bois e cavalos envolvidos sofrem maus tratos e que,
com frequência, ficam com sequelas decorrentes das agressões e do estresse que
passam.
Os defensores da atividade, por sua vez, alegam que os
animais não sofrem maus tratos e que esta prática é centenária, fazendo parte
do patrimônio cultural do povo nordestino. Além disso, argumentam que se trata
de um esporte e que os eventos geram inúmeros empregos e renda para aquela
região do país.
Lei 15.299/2013
O Ceará editou a Lei nº 15.299/2013, regulamentando a atividade
de “vaquejada” no Estado. A norma fixou os critérios para a competição e
obrigou os organizadores a adotarem medidas de segurança para os vaqueiros,
público e animais.
O Procurador-Geral da República, no entanto, ajuizou ação
direta de inconstitucionalidade contra a lei.
Segundo a ação, com a profissionalização da vaquejada,
algumas práticas passaram a ser adotadas, como o enclausuramento dos animais antes de serem lançados à pista,
momento em que são açoitados e instigados para que entrem agitados na arena
quando da abertura do portão. Tais práticas acarretam danos e constituem
crueldade contra os animais, o que é vedado pelo art. 225, § 1º, VII, da CF/88:
Art. 225. Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras
gerações.
§ 1º Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
O pedido do PGR foi acolhido pelo STF? A vaquejada foi considerada uma
prática contrária à CF?
SIM.
Conflito de normas constitucionais sobre direitos fundamentais
O caso em tela revela um conflito de normas constitucionais
sobre direitos fundamentais:
• De um lado, a CF/88 proíbe as práticas que submetam os
animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII);
• De outro, o texto constitucional garante o pleno exercício
dos direitos culturais, das manifestações culturais e determina que o Estado
proteja as manifestações das culturas populares (art. 215, caput e § 1º).
Direito fundamental de terceira geração
O art. 225 da CF/88 consagra a proteção da fauna e da flora
como modo de assegurar o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado. É,
portanto, direito fundamental de terceira geração, fundado na solidariedade, de
caráter coletivo ou difuso, dotado de "altíssimo teor de humanismo e
universalidade" (BONAVIDES, Paulo. Curso
de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 523).
A manutenção do ecossistema é um dever de todos em benefício
das gerações do presente e do futuro.
Nas questões ambientais, o indivíduo é considerado titular
do direito e, ao mesmo tempo, destinatário dos deveres de proteção. Daí porque
a doutrina fala que existe um verdadeiro “direito-dever” fundamental.
Laudos técnicos comprovaram consequências nocivas aos animais
O PGR juntou aos autos laudos técnicos que comprovam que as
vaquejadas provocam consequências nocivas à saúde dos bovinos, tais como
fraturas nas patas, ruptura dos ligamentos e dos vasos sanguíneos, traumatismos
e deslocamento da articulação do rabo e até seu arrancamento, das quais
resultam comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores
físicas e sofrimento mental.
Diante desses dados, o STF concluiu que é indiscutível que
os animais envolvidos sofrem tratamento cruel, o que contraria o art. 225, §
1º, VII, da CF/88.
Proibição da crueldade prevalece sobre a proteção cultural
O STF entendeu que a crueldade provocada pela “vaquejada”
faz com que, mesmo sendo esta uma atividade cultural, não possa ser permitida.
A expressão “crueldade”, constante da parte final do inciso
VII do § 1º do art. 225 da CF/88, engloba a tortura e os maus-tratos sofridos
pelos bovinos durante a prática da vaquejada, de modo a tornar intolerável esta
conduta que havia sido autorizada pela norma estadual impugnada.
Assim, mesmo reconhecendo a importância da vaquejada como
manifestação cultural regional, esse fator não torna a atividade imune aos
outros valores constitucionais, em especial à proteção ao meio ambiente.
Resultado
O placar foi bastante apertado (6x5):
• Inconstitucionalidade da lei: Ministros Marco Aurélio,
Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Cármen
Lúcia.
• Constitucionalidade da lei (vencidos): Ministros Edson
Fachin, Teori Zavascki (agora falecido), Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar
Mendes.
Resumindo:
É
inconstitucional lei estadual que regulamenta a atividade da “vaquejada”.
Segundo
decidiu o STF, os animais envolvidos nesta prática sofrem tratamento cruel,
razão pela qual esta atividade contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
A
crueldade provocada pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma
atividade cultural, não possa ser permitida.
A
obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da
observância do disposto no inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, que veda
práticas que submetam os animais à crueldade.
STF. Plenário. ADI 4983/CE, Rel. Min.
Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016 (Info 842).
Decisão que vale apenas para a Lei do CE
Apesar dos argumentos utilizados pelos Ministros terem sido
muito incisivos, em sentido estritamente técnico, a decisão acima explicada (ADI
4983/CE) só vale para a lei do Estado do Ceará.
Assim, todas as demais leis que eventualmente tratam sobre o
tema, para serem declaradas inconstitucionais, precisam ser formalmente
questionadas no STF.
De igual modo, se for realizada uma vaquejada em outro
Estado da Federação, não se pode propor uma reclamação alegando que a decisão
do STF está sendo descumprida. Foi o que aconteceu na RCL 25869.
Em Teresina (PI) estava sendo programada a realização de uma
vaquejada. Isso foi questionado na Justiça por entidades de proteção aos
animais. Contudo, o juiz de 1ª instância negou o pedido e manteve a vaquejada.
As entidades de proteção ingressaram, então, com reclamação
no STF contra esta decisão do magistrado.
As associações alegaram que, ao negar a liminar nos autos de
ação civil pública, o juízo de primeiro grau teria violado a decisão do STF na
ADI 4983.
O Ministro Teori Zavascki negou seguimento à reclamação
afirmando que o STF efetivamente decidiu foi a inconstitucionalidade da lei
cearense, não sendo cabível, até o presente momento, extrair conclusão no
sentido da proibição da prática da vaquejada em todo o território nacional.
STF. Decisão monocrática. Rcl 25869, Rel. Min. Teori
Zavascki, julgado em 07/12/2016.
Lei nº 13.364/2016
Pouco mais de um mês após esta decisão do STF acima
explicada (ADI 4983/CE) o Congresso Nacional editou a Lei nº 13.364/2016, que
prevê o seguinte:
Art. 1º Esta Lei eleva o
Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à
condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural
imaterial.
Art. 2º O Rodeio, a
Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser
considerados manifestações da cultura nacional.
Trata-se de uma "reação" do Poder Legislativo à
decisão do STF.
O Congresso Nacional poderia editar esta Lei, em tese,
contrariando o que decidiu o STF na ADI 4983? Sim, porque, como já dito, a
decisão do STF restringiu-se a uma lei do Ceará, que permitia a realização da
vaquejada naquele Estado. O efeito vinculante do acórdão se limita a isso.
Assim, esta lei do Ceará é inconstitucional e ninguém pode contrariar isso. A
decisão do STF não impede, contudo, que o Congresso Nacional ou mesmo outros
Estados editem leis permitindo a vaquejada. Formalmente, tais leis não violam a
decisão do STF.
EC 96/2017
A Lei nº 13.364/2016, acima mencionada, sozinha, não teria
força jurídica suficiente para superar a decisão do STF. Isso porque, na visão
do Supremo, a prática da vaquejada não era proibida por ausência de lei. Ao
contrário, a Corte entendeu que, mesmo havendo lei regulamentando a atividade,
a vaquejada era inconstitucional por violar o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
Assim, essa Lei nº 13.364/2016 não ajudava muito os
partidários da vaquejada e era certo que o STF iria manter a proibição.
Ciente disso, o Congresso Nacional decidiu alterar a própria
Constituição, nela inserindo a previsão expressa de que são permitidas práticas
desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais.
Veja a íntegra do § 7º que foi inserido pela EC 96/2017 no
art. 225 da CF/88:
Art. 225. (...)
§ 7º Para fins do disposto na parte
final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas
desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais,
conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de
natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas
por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
Foi uma tentativa de superação legislativa da jurisprudência (reversão jurisprudencial), uma manifestação de ativismo congressual. Para maiores informações sobre o tema, veja este post.
Efeito Backlash
A EC 96/2017 é um exemplo do que a doutrina
constitucionalista denomina de “efeito backlash”.
Em palavras muito simples, efeito backlash consiste em uma reação conservadora de parcela da
sociedade ou das forças políticas (em geral, do parlamento) diante de uma
decisão liberal do Poder Judiciário em um tema polêmico.
George Marmelstein resume a lógica do efeito backlash ao ativismo judicial:
“(1) Em uma matéria que divide a
opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma
posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a
consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é
bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com
forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à
decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar
as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os
candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço
político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e
assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis
e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder
político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos
órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de
entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver
um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que
a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que,
supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.” (Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-constitucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/).
A EC 96/2017 é inconstitucional?
Este será um belíssimo e imprevisível debate.
No caso de reversão jurisprudencial (reação legislativa)
proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas
restritas hipóteses de violação aos limites previstos no art. 60, e seus §§, da
CF/88. Em suma, se o Congresso editar uma emenda constitucional buscando
alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda
somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender uma cláusula pétrea ou
o processo legislativo para edição de emendas.
Segundo o art. 60, § 4º, da CF/88, não é permitida a edição
de emenda constitucional que acabe ou enfraqueça:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Essas são as chamadas “cláusulas pétreas”, ou seja, o núcleo
intangível da Constituição Federal.
A grande dúvida será a seguinte: a proibição de que os animais sofram
tratamento cruel, prevista no art. 225, § 1º, VII, da CF/88, pode ser
considerada como uma garantia individual (art. 60, § 4º, IV)?
Penso que sim. Conforme já explicado, o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental de terceira
geração, não podendo ser abolido nem restringido, ainda que por emenda
constitucional.
Resta saber, no entanto, como o STF entenderá o tema após o backlash, considerando que a primeira
decisão foi extremamente apertada.
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor