Imagine a seguinte situação
hipotética:
A União possui um contrato com a
empresa privada "XXX Vigilância Ltda.".
Por meio deste contrato, a
empresa, com seus funcionários, obrigou-se a fazer a vigilância armada do
prédio onde funciona o órgão público federal, recebendo, em contraprestação, R$
200 mil mensais.
Desse modo, a
União terceirizou os serviços de vigilância, algo extremamente comum na
administração pública federal, sendo, inclusive, uma recomendação expressa no
Decreto nº 2.271/97:
Art. 1º No âmbito da Administração
Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução
indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares
aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação,
limpeza, segurança, vigilância, transportes,
informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção
de prédios, equipamentos e instalações serão, de
preferência, objeto de execução indireta.
Ocorre que a empresa
"XXX", por estar enfrentando dificuldades financeiras, passou a não
mais pagar os salários e demais verbas trabalhistas de seus funcionários.
Diante da inadimplência da empresa contratada
perante seus funcionários, a responsabilidade pelo pagamento dos salários e
demais verbas trabalhistas é transferida para a União (contratante dos
serviços)?
O que diz a Lei nº 8.666/93:
NÃO
A
inadimplência do contratado com relação aos encargos trabalhistas, fiscais e
comerciais não transfere para a Administração Pública a responsabilidade por
seu pagamento. Essa é a regra expressa no art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93:
Art. 71. O contratado é responsável
pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes
da execução do contrato.
§ 1º A inadimplência do contratado,
com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à
Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o
objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e
edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº
9.032/95)
Esse dispositivo foi declarado constitucional
pelo STF no julgamento da ADC 16:
(...) É constitucional a norma
inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com
a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.
STF. Plenário. ADC 16, Rel. Min. Cezar
Peluso, julgado em 24/11/2010.
Qual foi o entendimento da
Justiça do Trabalho:
Como o STF declarou que o art.
71, § 1º da Lei nº 8.666/93 é constitucional, a Justiça do Trabalho não poderia
deixar de aplicar esse dispositivo. No entanto, a intenção era continuar
condenando o Poder Público. Diante disso, o TST criou a seguinte interpretação
do art. 71, § 1º:
• Em regra, a inadimplência do
contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não
transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento (art.
71, § 1º, da Lei nº 8.666/93).
• Exceção: a Administração
Pública terá responsabilidade subsidiária se ficar demonstrada a sua culpa
"in vigilando", ou seja, somente será responsabilidade se ficar
comprovado que o Poder Público deixou de fiscalizar se a empresa estava
cumprindo pontualmente suas obrigações trabalhistas, fiscais e comerciais.
Assim, para o TST, a
Administração Pública deveria ter o dever de fiscalizar se a empresa contratada
(prestadora dos serviços) está cumprindo fielmente seus encargos trabalhistas,
fiscais e comerciais. Se houve fiscalização, não haveria responsabilidade
subsidiária do Poder Público em caso de inadimplemento. Se não houve
fiscalização, o Poder Público deveria responder subsidiariamente pelas dívidas
deixadas pela empresa, considerando que houve culpa "in vigilando".
O TST editou um enunciado espelhando
esse entendimento:
Súmula 331-TST: CONTRATO
DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE
(...)
IV — O inadimplemento das
obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade
subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja
participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V — Os entes integrantes
da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas
mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa
no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, de 21.06.1993, especialmente na
fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora
de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de
mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa
regularmente contratada.
VI — A responsabilidade
subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da
condenação referentes ao período da prestação laboral.
Na prática, contudo, o Poder
Público era sempre condenado pela Justiça do Trabalho em caso de inadimplemento
da empresa contratada. Isso porque a jurisprudência trabalhista construiu a
tese de que a culpa da Administração seria presumida. Em outras palavras, o
trabalhador não tinha o ônus de provar a culpa da Administração Pública. Esta
seria presumivelmente culpada, salvo se conseguisse provar o contrário.
Assim, pela tese trabalhista,
para não ser condenado a indenizar subsidiariamente, o ente público teria que provar
que cumpriu o poder dever de fiscalizar o contrato. Ocorre que o TST ia além e
dizia que, se não houve o pagamento dos direitos trabalhistas pela empresa, o
Estado falhou em seu dever de fiscalizar. Logo, no fim das contas, sempre em
caso de inadimplemento da empresa contratada a Administração era presumida
culpada e tinha que pagar o débito trabalhista.
A Fazenda Pública não se
conformou com esse entendimento do TST e conseguiu levar o caso à apreciação do
Supremo Tribunal Federal. O STF concordou com a interpretação dada pelo TST?
NÃO. O STF
não concordou com o posicionamento do TST e editou a seguinte tese:
O
inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não
transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo
seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71,
§ 1º, da Lei nº 8.666/93.
STF. Plenário. RE 760931/DF, rel.
orig. Min. Rosa Weber, red. p/ o ac. Min. Luiz Fux, julgado em 26/4/2017
(repercussão geral) (Info 862).
A responsabilização do Poder
Público não pode ser automática nem genérica como estava sendo decidido pela
Justiça do Trabalho.
A interpretação dada pelo TST ao
art. 71 da Lei nº 8.666/93, com o reconhecimento da responsabilidade
subsidiária da Administração Pública de forma quase que automática e genérica,
contraria a decisão tomada pelo próprio STF no julgamento da ADC 16/DF,
ofendendo, por conseguinte, a coisa julgada.
O legislador teve a clara
intenção de excluir a responsabilidade subsidiária automática da Administração,
tendo o dispositivo sido declarado constitucional.
A imputação da culpa “in
vigilando” ou “in elegendo” à Administração Pública, por suposta deficiência na
fiscalização da fiel observância das normas trabalhistas pela empresa
contratada, somente pode acontecer nos casos em que se tenha a efetiva
comprovação da ausência de fiscalização.
Não se pode considerar válida a
interpretação que cria uma culpa presumida da Administração Pública. A
Administração Pública não pode responder pelas dívidas trabalhistas da empresa
contratada a partir de qualquer tipo de presunção, somente admitindo que isso
ocorra caso a condenação esteja inequivocamente lastreada em elementos
concretos de prova da falha da fiscalização do contrato.
A alegada ausência de comprovação
em juízo da efetiva fiscalização do contrato não substitui a necessidade de
prova taxativa do nexo de causalidade entre a conduta da Administração e o dano
sofrido.
Pela tese do STF, a Administração
Pública nunca irá responder pelas dívidas trabalhistas geradas pela empresa
contratada? É isso?
NÃO. É possível sim, excepcionalmente,
que a Administração Pública responda pelas dívidas trabalhistas contraídas pela
empresa contratada e que não foram pagas, desde que o ex-empregado reclamante
comprove, com elementos concretos de prova, que houve falha concreta do Poder
Público na fiscalização do contrato.
Ex: a Administração Pública é
comunicada que a empresa contratada está descumprindo a legislação trabalhista,
atrasando os salários dos seus funcionários etc, no entanto, mesmo assim, o
Poder Público não toma nenhuma providência para sanar o problema. Neste caso,
está demonstrada a desídia do ente, ensejando a sua responsabilidade
subsidiária.
E quanto aos encargos
previdenciários? A regra é a mesma?
NÃO. Caso a
empresa contratada não pague seus encargos previdenciários (ex: não pagou a
contribuição previdenciária dos funcionários), a Administração Pública
contratante irá responder pelo débito de forma solidária. Essa foi a opção do
legislador:
Art. 71 (...)
§ 2º A Administração Pública responde
solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da
execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de
1991. (Redação dada pela Lei nº 9.032/95)