Dizer o Direito

quarta-feira, 22 de março de 2017

Quando a entidade imune é apenas contribuinte de fato, haverá mesmo assim imunidade tributária?


Imunidade tributária
Imunidade tributária consiste na determinação feita pela Constituição Federal de que certas atividades, rendas, bens ou pessoas não poderão sofrer a incidência de tributos.
Trata-se de uma dispensa constitucional de tributo.
A imunidade é uma limitação ao poder de tributar, sendo sempre prevista na própria CF.

Imunidades subjetiva, objetiva e mista
Como vocês sabem, a doutrina adora criar classificações sobre os institutos jurídicos.
As imunidades também são classificadas segundo diversos critérios.
Uma das classificações diz que existem três espécies de imunidades:

a) SUBJETIVA (PESSOAL)
b) OBJETIVA (REAL)
c) MISTAS
Ocorre quando a imunidade foi instituída em razão das características de uma determinada pessoa.
Ocorre quando a imunidade foi instituída em função de determinados fatos, bens ou situações.
Verifica-se quando ocorre uma combinação entre os dois critérios anteriores.
Ex: art. 150, VI, "a", "b" e "c", da CF/88.
Ex: art. 150, VI, "d", da CF/88.
Ex: art. 153, § 4º, II, da CF/88.
Assim, a imunidade que beneficia instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos é uma imunidade subjetiva, considerando que foi criada em função da condição pessoal dessas instituições.
A imunidade que recai sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão é objetiva porque não interessa quem seja a pessoa envolvida, mas sim esta lista de bens.
A CF/88 prevê que o ITR não incide sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel.
"Tal imunidade é mista porque depende de aspectos subjetivos (o proprietário possuir apenas um imóvel) e objetivos (a área da pequena gleba estar dentro dos limites da lei" (ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário, p. 206).

Tributos indiretos
Tributos indiretos são aqueles que permitem a transferência do seu encargo econômico para uma pessoa diferente daquela definida em lei como sujeito passivo. Exemplos mais conhecidos: IPI, ICMS, ISS e IOF.
Assim, quando você recebe a conta de energia elétrica, por exemplo, vai ter um campo chamado detalhamento da conta. Nele você irá encontrar a discriminação dos itens que você está pagando enquanto consumidor:
Consumo: R$ xxx
ICMS: yyy
Total: xxx + yyy

Dessa forma, o "contribuinte de direito" ("pela lei") do ICMS é a empresa concessionária de energia elétrica. No entanto, ela oficialmente está autorizada a repassar este tributo para o consumidor. Logo, o consumidor final é quem acaba sendo o "contribuinte de fato".
Como explica Ricardo Alexandre:
"O ICMS é tributo indireto. Todo o seu ônus econômico-financeiro é transferido para o consumidor que, ao pagar o preço da mercadoria, paga também o valor do imposto que naquele preço se acha embutido". (ob. cit., p. 225).

Tributos diretos são aqueles que, oficialmente, não permitem tal transferência.

Contribuinte de direito e contribuinte de fato
Assim, pode-se dizer que nos tributos indiretos surgem as figuras do contribuinte de direito e do contribuinte de fato:
a) Contribuinte de direito: é a pessoa que realiza o fato gerador.
b) Contribuinte de fato: é a pessoa que paga efetivamente o imposto considerando que o contribuinte de direito transferiu para ele este encargo.

Quando a entidade imune é contribuinte de direito, haverá imunidade?
Imagine a seguinte situação:
A CF/88 prevê que as entidades de assistência social, sem fins lucrativos, na forma da lei, gozam de imunidade tributária (art. 150, VI, "c").
Imagine que determinada entidade de assistência social comercialize camisas. A venda de camisas está sujeita, em tese, ao pagamento de ICMS.
Ocorre que esta entidade argumentou que não deveria incidir ICMS neste caso porque ela goza de imunidade tributária.
O Fisco estadual, por sua vez, refutou o argumento afirmando que o ICMS é um tributo indireto e que esta entidade iria repassar o encargo econômico do imposto para o consumidor final (contribuinte de fato). Logo, para a Fazenda Pública, deveria sim incidir o imposto já que quem iria pagar não era a entidade imune.

Qual das duas teses foi acolhida pelo STF?
A tese das entidades imunes, ou seja, haverá imunidade neste caso.

E quando a entidade imune é contribuinte de fato, haverá imunidade?
Vamos modificar o exemplo:
Determinada entidade de assistência social adquire na loja um forno para preparar comida para pessoas carentes.
No momento de pagar o valor, ao conferir a nota fiscal, o diretor da entidade percebe que está sendo cobrado dele o ICMS sobre a mercadoria vendida. Ele não se conforma e alega que não deverá pagar o imposto porque a entidade é imune.

A tese da entidade foi acolhida pelo STF?
NÃO. Segundo entende o STF, mesmo que o comprador da mercadoria seja uma entidade que goza de imunidade tributária, ainda assim deverá haver a normal incidência do imposto.
As imunidades deverão ser interpretadas sob o aspecto formal (e não econômico). Dessa forma, tem-se que:
·       se a entidade imune for contribuinte de direito, o imposto não incidirá;
·       se a entidade imune for apenas contribuinte de fato, o imposto incidirá normalmente.

O STF apreciou o tema sob a sistemática da repercussão geral e fixou a seguinte tese:
A imunidade tributária subjetiva aplica-se a seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante, para a verificação da existência do beneplácito constitucional, a repercussão econômica do tributo envolvido.
STF. Plenário. RE 608872/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 22 e 23/2/2017 (repercussão geral) (Info 855).

Assim, a imunidade tributária subjetiva aplica-se ao ente beneficiário se ele for o contribuinte de direito, não importando discutir se o tributo em questão pode ou não ter repercussão econômica para terceiros.
Não se pode estender ao particular vendedor (contribuinte de direito) a imunidade tributária subjetiva que detém o adquirente de mercadoria (contribuinte de fato).

O STF possui um enunciado antigo que transmite essa mesma ideia:
Súmula 591-STF: A imunidade ou a isenção tributária do comprador não se estende ao produtor, contribuinte do imposto sobre produtos industrializados.

Sobre o tema, já explicou Leandro Paulsen:
“Importa, para a verificação da existência ou não da imunidade, a posição de contribuinte, nos moldes do raciocínio que inspirou a Súmula nº 591 do STF. Conforme orientação atual do STF, seguindo a linha da referida súmula, descabe verificar se o ente imune é ou não contribuinte de fato, pois a repercussão econômica não está em questão. Ora, se a Constituição diz que é vedado cobrar impostos das entidades de assistência social, é porque nega competência para tanto, não sendo dado ao intérprete perquirir quanto à repercussão econômica do tributo para efeito de decidir se é devido ou não." (PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 106).

No exemplo que demos acima em que a entidade beneficente compra o forno, tal pessoa jurídica irá realmente arcar com o ônus financeiro dos impostos envolvidos nessa venda (IPI e ICMS) caso tenham sido realmente transferidos pelo vendedor (contribuinte de direito). No entanto, este valor que será pago pela entidade não possui natureza jurídica de tributo, mas sim de "preço", decorrente de uma relação contratual. Em outras palavras, a entidade está pagando apenas o preço total no qual, obviamente, o vendedor embutiu todos os seus custos (a fim de que ele possa ter lucro). Vale reiterar, porém, que o valor pago pela entidade não é tributo, mas sim preço.

Hugo de Brito Machado trata sobre o tema com maestria, dando o exemplo de uma entidade do Poder Público (que é imune, nos termos do art. 150, VI, "a") que compra uma mercadoria. Veja:
“O argumento de que o imposto sobre produtos industrializados (IPI) assim como o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS) não incidem na saída de mercadorias que o particular (industrial, comerciante ou produtor) vende ao Poder Público, porque o ônus financeiro respectivo recai sobre este, não tem qualquer fundamento jurídico. Pode ser válido no âmbito da Ciência das Finanças. Não no Direito Tributário. A relação tributária instaura-se entre o industrial, ou comerciante, que vende, e por isto assume a condição de contribuinte, e a Fazenda Pública, ou fisco, credor do tributo. Entre o Estado comprador da mercadoria e o industrial, ou comerciante, que a fornece, instaura-se uma relação jurídica inteiramente diversa, de natureza contratual. O Estado comprador paga simplesmente o preço da mercadoria adquirida. Não o tributo. Este pode estar incluído no preço, mas neste também está incluído o salário dos empregados do industrial, ou comerciante, e nem por isto se pode dizer que há no caso pagamento de salários. Tal inclusão pode ocorrer, ou não. É circunstancial e independe de qualquer norma jurídica. Em última análise, no preço de um produto poderão estar incluídos todos os seus custos, mas isto não tem relevância para o Direito, no pertinente à questão de saber quem paga tais custos” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 30ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 286/287)

Resumindo:
• Se a entidade imune for contribuinte de direito: incide a imunidade subjetiva.
• Se a entidade imune for contribuinte de fato: não incide a imunidade subjetiva.

Pagamento indevido de ICMS nas contas de energia elétrica e legitimidade para pedir a restituição
Como vimos acima, tributos indiretos são aqueles que permitem a transferência do seu encargo econômico para uma pessoa diferente daquela definida em lei como sujeito passivo. Exemplos mais conhecidos: IPI, ICMS, ISS e IOF.
Tributos diretos são aqueles que, oficialmente, não permitem tal transferência.
Se houver pagamento indevido de tributo, o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo (art. 165 do CTN). A isso se dá o nome de repetição de indébito.
Nos tributos diretos, a regra relativa às restituições é simples: quem pagou um valor indevido ou maior que o devido tem direito à restituição.
Nos tributos indiretos, a questão é um pouco mais complexa.

Se o contribuinte de direito repassou oficialmente o encargo econômico do tributo a um terceiro e, mais tarde, percebeu-se que tal ônus não correspondia ao previsto na lei, havendo direito à restituição, seria justo restituir o excesso ao primeiro? Em outras palavras, sendo o tributo indireto, quem detém a legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito?
Trata-se de questão difícil e polêmica. O STJ estabeleceu a seguinte distinção:
1) REGRA GERAL: a legitimidade para pleitear a restituição é do CONTRIBUINTE DE DIREITO.
Argumento: o contribuinte de fato não integra a relação jurídica tributária.
Ex: no caso de pagamento indevido de IPI sobre a fabricação de bebidas, o STJ decidiu que a legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito é do fabricante de bebida (contribuinte de direito) (REsp 903.394/AL, DJe de 26/04/2010).

2) No caso de tributos pagos indevidamente por CONCESSIONÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA: a legitimidade para pleitear a restituição é do CONTRIBUINTE DE FATO (consumidor).
Argumentos: a concessionária sempre evitará embates desgastantes com o Poder Público. Além disso, em caso de aumento de tributos, poderá repassar esse valor nas tarifas. Logo, o STJ concluiu que não haveria interesse das concessionárias em pleitear a restituição do indébito em caso de terem sido tributadas indevidamente. Desse modo, o consumidor iria arcar com a repercussão econômica do tributo pago a maior e, como a concessionária não iria pleitear a repetição do indébito, essa situação de abusividade na cobrança iria se perpetuar, em prejuízo ao usuário dos serviços públicos.
Veja as palavras do Min. Cesar Asfor Rocha:
“Sem dúvida, no caso das concessionárias do serviço público, diante de tudo o que foi dito acima, entendo que a legitimidade do consumidor final permanece. Decidir de forma  diversa  impede  qualquer  discussão,  por  exemplo,  sobre  a  ilegalidade  –  já reconhecida  neste  Tribunal  Superior  –  da  incidência  do  ICMS  sobre  a  demanda "contratada  e  não  utilizada",  contrariando  as  normas  que  disciplinam  as  relações envolvidas  nas  concessões  de  serviço  público.  Isso  porque,  volto  a  afirmar,  em  casos como o presente, inexiste conflito de interesses entre a Fazenda Pública, titular do tributo, e as concessionárias, que apenas repassam o custo tributário à tarifa por força do art. 9º,  §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.987/1995.
(...)
Situação diversa é a da fabricação e do comércio de bebidas, objeto do REsp  903.394/AL  (repetitivo), não aplicável ao caso em debate. Se o fabricante simplesmente  repassar  ao  preço  do  seu  produto  de  venda  o  valor  do  ICMS  cobrado indevidamente,  as  suas  vendas  poderão  cair.  Em virtude da concorrência no setor privado – o que dificilmente ocorre no fornecimento de energia elétrica –, o distribuidor (adquirente da bebida) poderá buscar outro fabricante, com produtos inferiores ou importados, com preços menores. Para compensar o ICMS pago a mais e a fim de não reduzir as vendas, terá o fabricante que reduzir custos e lucros, ao menos até que volte a dominar o mercado. Sem dúvida, portanto, nessa situação, há conflitos de interesses entre o credor do tributo e o fabricante, o que viabiliza o ingresso de ações na Justiça por parte deste.” (REsp 1.299.303/SC).

Este entendimento do STJ permanece válido mesmo com a decisão do STF acima explicada.



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