Tráfico de drogas
O delito de tráfico de drogas está
previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/2006:
Art. 33. Importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar
a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15
(quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos)
dias-multa.
Tráfico privilegiado
A Lei de Drogas prevê, em seu art. 33,
§ 4º, a figura do “traficante privilegiado”, também chamada de “traficância
menor” ou “traficância eventual”:
Art. 33 (...)
§ 4º Nos delitos definidos no caput e
no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços,
vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja
primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem
integre organização criminosa.
Requisitos para aplicação da
causa de diminuição
Para que o juiz deixe de aplicar
a minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, é necessário que
demonstre, na sentença, que existem nos autos provas que possam afastar ao
menos um dos seguintes critérios, que são autônomos:
a) primariedade;
b) bons antecedentes;
c) não dedicação a atividades
criminosas; e
d) não integração à organização
criminosa.
Segundo posicionamento pacífico
do STJ:
A aplicação da causa
especial de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas exige o
preenchimento de quatro requisitos cumulativos,
quais sejam, primariedade, bons antecedentes, não se
dedicar a atividades criminosas ou integrar organização criminosa.
STJ. 5ª Turma. HC
355.593/MS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 25/8/2016.
Feitas estas considerações,
imagine a seguinte situação hipotética:
João foi denunciado pela prática
de tráfico de drogas porque surpreendido com 40 pacotes de cocaína e 20
papelotes de maconha.
A defesa requereu que fosse
aplicado o benefício do art. 33, § 4º, mas o juiz negou o pedido sob o
argumento de que o réu responde a outros inquéritos policiais e ações penais,
de forma que isso demonstra que ele se dedica a atividades criminosas.
A defesa interpôs recurso contra
a sentença sustentando que os inquéritos policiais e as ações penais a que se
referiu o magistrado ainda não transitaram em julgado. Logo, aplicando-se o
princípio da presunção de inocência, tais fatos não poderão ser utilizados
contra o réu.
A questão chegou até o STJ. Agiu
corretamente o juiz? O fato de o réu responder a inquérito policial ou a ação
penal sem condenação definitiva pode ser utilizado pelo magistrado como
argumento para negar a aplicação da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da
Lei de Drogas?
SIM.
É
possível a utilização de inquéritos policiais e/ou ações penais em curso para
formação da convicção de que o réu se dedica a atividades criminosas, de modo a
afastar o benefício legal previsto no art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/2006.
STJ. 3ª Seção. EREsp 1.431.091-SP, Rel.
Min. Felix Fischer, julgado em 14/12/2016 (Info 596).
Benefício que deve prestigiar
realmente os pequenos traficantes
Este benefício não deve ser
aplicado de forma desmedida, devendo incidir somente em casos singulares,
quando preenchidos os requisitos, os quais merecem interpretação restritiva, de
modo a prestigiar quem efetivamente mereça redução de pena.
Justamente por isso, a referida causa
de diminuição não foi criada pensando em beneficiar réus que possuam contra si
inquéritos policiais ou ações penais em andamento.
Sabe-se que inquéritos e ações
penais em curso não podem ser valoradas como maus antecedentes na 1ª fase da
dosimetria da pena (Súmula 444-STJ).
Contudo, neste caso, não se trata
de utilizar inquéritos ou ações penais para agravar a situação do réu condenado
por tráfico de drogas, mas como forma de afastar um benefício legal, desde que
existentes elementos concretos para concluir que ele se dedique a atividades
criminosas, sendo inquestionável que, em determinadas situações, a existência
de investigações e/ou ações penais em andamento possam ser elementos aptos para
formação da convicção do magistrado.
Princípios constitucionais e sua
interpretação
Os princípios constitucionais
sofreram grande modificação no decorrer do tempo, considerados num primeiro
momento como recomendações éticas, sem força normativa, verdadeira dicotomia
entre norma jurídica e princípios.
Posteriormente, passaram a
prevalecer como regras de aplicação subsidiária.
Atualmente, é amplamente
difundido serem as normas jurídicas mais importantes do ordenamento, uma vez
que todos os demais atos jurídicos decorrem dos princípios.
Em razão da inexistência de
princípio absoluto, havendo conflito entre princípios, deverá o operador do
direito, com ponderação de valores, aplicar um (ou alguns), em detrimento de
outros, avaliando a situação em cada caso concreto.
Como os princípios
constitucionais devem ser interpretados de forma harmônica, não merece ser
interpretado de forma absoluta o princípio da inocência, de modo a impedir que
a existência de inquéritos ou ações penais impeçam a interpretação em cada caso
para mensurar a dedicação do Réu em atividade criminosa.
Conceder o benefício do art. 33,
§4º, da Lei 11.343/2006 para o réu que responde a inúmeras ações penais ou seja
investigado, é equipará-lo com aquele que numa única ocasião na vida se
envolveu com as drogas, situação que ofende o princípio também previsto na
Constituição Federal de individualização da pena.
Do mesmo modo, o princípio da
vedação de proteção deficiente também deve ser parâmetro, uma vez que
intimamente interligado com o mandamento constitucional de criminalização do
tráfico de drogas, que deve ser ponderado na avaliação, em atenção ao direito
fundamental de segurança (art. 5º, caput, CF/88).
Conforme dito, os direitos e
princípios constitucionais não podem ser avaliados somente sob uma perspectiva,
mas de modo a conciliar todo o ordenamento jurídico numa interpretação
sistemática, sendo que, afastar a causa de diminuição de pena do §4º do art. 33
da Lei nº 11.343/2006 para réus que se dedicam à atividade criminosa, com
decisão devidamente fundamentada diante da comprovação de existência de
inquéritos e ações penais, encontra-se acertada.
Exemplo de abrandamento do princípio
da presunção de inocência
Como já dito, o princípio da
presunção de inocência não é absoluto, pois se assim o fosse, as investigações
criminais e processos em andamento não poderiam nunca influenciar a convicção
de magistrados para qualquer decisão.
Nesse sentido, um exemplo de mitigação
do princípio é a possibilidade aceita pela jurisprudência de que os inquéritos
e as ações penais em andamento sirvam como respaldo para a decretação de prisão
preventiva, entendimento que é consolidado no STJ:
(...) inquéritos e ações
penais em curso constituem
elementos capazes de
demonstrar o risco concreto de reiteração delituosa,
justificando a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública.
(...)
STJ. 5ª Turma. RHC 70.698/MG,
Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJe de 1º/8/2016.
Outro exemplo de mitigação do
princípio da presunção de inocência foi a decisão do STF no HC 126.292/SP que a
execução provisória da pena, mesmo que ainda estejam pendentes recursos
especial e extraordinário.
Mandamento constitucional de
criminalização
A Constituição Federal de 1988
previu, em seu art. 5º, XLIII, que são inafiançáveis e insuscetíveis de graça
ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.
A doutrina afirma que esse
dispositivo consagra um verdadeiro mandamento constitucional de criminalização,
ou seja, trata-se de uma vontade do legislador constituinte de punir, de forma
mais severa, estes delitos que são considerados como mais graves que os demais.
Desse modo, havendo mais de uma
forma de interpretar algum aspecto relacionado com esses delitos, deve-se levar
em consideração a vontade do legislador constitucional de punir de forma mais rígida
tais crimes.
Isso significa que se o réu tiver
inquéritos policiais ou ações penais contra si, ele estará obrigatoriamente
impedido de receber o benefício do art. 33, § 4º da LD?
NÃO. Também não é assim. Não existe
uma obrigatoriedade de que sempre o juiz tenha que negar o benefício pelo fato
de o réu possuir inquéritos policiais ou ações penais contra si. O que o STJ afirmou
é que o magistrado poderá utilizar este argumento para deixar de aplicar a causa
de diminuição. No entanto, nada impede que, diante das peculiaridades do caso
concreto, o juiz faça incidir o art. 33, § 4º mesmo que exista inquérito ou
ação penal contra o réu.
Nas palavras do Min. Relator
Felix Fischer, “não se pretende tornar regra que a existência de inquérito ou
ação penal obste o benefício em todas as situações”.
Para que seja negado o benefício
do art. 33, § 4º da LD ao réu, é necessário que o inquérito policial ou a ação
penal que ele responda sejam também relacionados com tráfico de drogas?
NÃO. É possível negar o benefício
mesmo que o inquérito ou a ação penal tenham por objeto outros crimes. Ex: o
réu é preso por tráfico de drogas, sendo que já possuía contra si uma ação
penal por roubo. Isso porque o art. 33, § 4º da LD exige que o réu não se
dedique a “atividades criminosas”, expressão ampla que abrange não apenas o
tráfico de drogas.
O entendimento acima exposto
encontra amparo também na jurisprudência do STF?
SIM. Existe um precedente do STF também
aplicando o mesmo entendimento. Confira:
(...) 1. O § 4º do art. 33
da Lei n. 11.343/2006 dispõe que “Nos delitos definidos no caput e no § 1º
deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada
a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário,
de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre
organização criminosa”.
2. In casu, a minorante especial a que se refere o § 4º do art. 33 da
Lei n. 11.343/2006 foi corretamente afastada ante a comprovação, por certidão
cartorária, de que o paciente está indiciado em vários inquéritos e responde a
diversas ações penais, entendimento que se coaduna com a jurisprudência desta
Corte: RHC 94.802, 1ª Turma, Rel. Min. MENEZES DE DIREITO, DJe de 20/03/2009; e
HC 109.168, 1ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe de 14/02/2012, entre outros.
(...)
STF. 1ª Turma. HC 108135,
Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05/06/2012.