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sexta-feira, 10 de março de 2017

Inquéritos policiais e ações penais em cursos podem ser utilizados para afastar o benefício do tráfico privilegiado



Tráfico de drogas
O delito de tráfico de drogas está previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/2006:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Tráfico privilegiado
A Lei de Drogas prevê, em seu art. 33, § 4º, a figura do “traficante privilegiado”, também chamada de “traficância menor” ou “traficância eventual”:
Art. 33 (...)
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Requisitos para aplicação da causa de diminuição
Para que o juiz deixe de aplicar a minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, é necessário que demonstre, na sentença, que existem nos autos provas que possam afastar ao menos um dos seguintes critérios, que são autônomos:
a) primariedade;
b) bons antecedentes;
c) não dedicação a atividades criminosas; e
d) não integração à organização criminosa.

Segundo posicionamento pacífico do STJ:
A aplicação da causa especial de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas exige o preenchimento de quatro requisitos cumulativos,  quais  sejam,  primariedade, bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas ou integrar organização criminosa.
STJ. 5ª Turma. HC 355.593/MS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 25/8/2016.

Feitas estas considerações, imagine a seguinte situação hipotética:
João foi denunciado pela prática de tráfico de drogas porque surpreendido com 40 pacotes de cocaína e 20 papelotes de maconha.
A defesa requereu que fosse aplicado o benefício do art. 33, § 4º, mas o juiz negou o pedido sob o argumento de que o réu responde a outros inquéritos policiais e ações penais, de forma que isso demonstra que ele se dedica a atividades criminosas.
A defesa interpôs recurso contra a sentença sustentando que os inquéritos policiais e as ações penais a que se referiu o magistrado ainda não transitaram em julgado. Logo, aplicando-se o princípio da presunção de inocência, tais fatos não poderão ser utilizados contra o réu.

A questão chegou até o STJ. Agiu corretamente o juiz? O fato de o réu responder a inquérito policial ou a ação penal sem condenação definitiva pode ser utilizado pelo magistrado como argumento para negar a aplicação da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas?
SIM.
É possível a utilização de inquéritos policiais e/ou ações penais em curso para formação da convicção de que o réu se dedica a atividades criminosas, de modo a afastar o benefício legal previsto no art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/2006.
STJ. 3ª Seção. EREsp 1.431.091-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 14/12/2016 (Info 596).

Benefício que deve prestigiar realmente os pequenos traficantes
Este benefício não deve ser aplicado de forma desmedida, devendo incidir somente em casos singulares, quando preenchidos os requisitos, os quais merecem interpretação restritiva, de modo a prestigiar quem efetivamente mereça redução de pena.
Justamente por isso, a referida causa de diminuição não foi criada pensando em beneficiar réus que possuam contra si inquéritos policiais ou ações penais em andamento.
Sabe-se que inquéritos e ações penais em curso não podem ser valoradas como maus antecedentes na 1ª fase da dosimetria da pena (Súmula 444-STJ).
Contudo, neste caso, não se trata de utilizar inquéritos ou ações penais para agravar a situação do réu condenado por tráfico de drogas, mas como forma de afastar um benefício legal, desde que existentes elementos concretos para concluir que ele se dedique a atividades criminosas, sendo inquestionável que, em determinadas situações, a existência de investigações e/ou ações penais em andamento possam ser elementos aptos para formação da convicção do magistrado.

Princípios constitucionais e sua interpretação
Os princípios constitucionais sofreram grande modificação no decorrer do tempo, considerados num primeiro momento como recomendações éticas, sem força normativa, verdadeira dicotomia entre norma jurídica e princípios.
Posteriormente, passaram a prevalecer como regras de aplicação subsidiária.
Atualmente, é amplamente difundido serem as normas jurídicas mais importantes do ordenamento, uma vez que todos os demais atos jurídicos decorrem dos princípios.
Em razão da inexistência de princípio absoluto, havendo conflito entre princípios, deverá o operador do direito, com ponderação de valores, aplicar um (ou alguns), em detrimento de outros, avaliando a situação em cada caso concreto.
Como os princípios constitucionais devem ser interpretados de forma harmônica, não merece ser interpretado de forma absoluta o princípio da inocência, de modo a impedir que a existência de inquéritos ou ações penais impeçam a interpretação em cada caso para mensurar a dedicação do Réu em atividade criminosa.
Conceder o benefício do art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006 para o réu que responde a inúmeras ações penais ou seja investigado, é equipará-lo com aquele que numa única ocasião na vida se envolveu com as drogas, situação que ofende o princípio também previsto na Constituição Federal de individualização da pena.
Do mesmo modo, o princípio da vedação de proteção deficiente também deve ser parâmetro, uma vez que intimamente interligado com o mandamento constitucional de criminalização do tráfico de drogas, que deve ser ponderado na avaliação, em atenção ao direito fundamental de segurança (art. 5º, caput, CF/88).
Conforme dito, os direitos e princípios constitucionais não podem ser avaliados somente sob uma perspectiva, mas de modo a conciliar todo o ordenamento jurídico numa interpretação sistemática, sendo que, afastar a causa de diminuição de pena do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 para réus que se dedicam à atividade criminosa, com decisão devidamente fundamentada diante da comprovação de existência de inquéritos e ações penais, encontra-se acertada.

Exemplo de abrandamento do princípio da presunção de inocência
Como já dito, o princípio da presunção de inocência não é absoluto, pois se assim o fosse, as investigações criminais e processos em andamento não poderiam nunca influenciar a convicção de magistrados para qualquer decisão.
Nesse sentido, um exemplo de mitigação do princípio é a possibilidade aceita pela jurisprudência de que os inquéritos e as ações penais em andamento sirvam como respaldo para a decretação de prisão preventiva, entendimento que é consolidado no STJ:
(...) inquéritos e ações penais em curso constituem  elementos  capazes  de  demonstrar  o  risco concreto de reiteração delituosa, justificando a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública. (...)
STJ. 5ª Turma. RHC 70.698/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJe de 1º/8/2016.

Outro exemplo de mitigação do princípio da presunção de inocência foi a decisão do STF no HC 126.292/SP que a execução provisória da pena, mesmo que ainda estejam pendentes recursos especial e extraordinário.

Mandamento constitucional de criminalização
A Constituição Federal de 1988 previu, em seu art. 5º, XLIII, que são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.
A doutrina afirma que esse dispositivo consagra um verdadeiro mandamento constitucional de criminalização, ou seja, trata-se de uma vontade do legislador constituinte de punir, de forma mais severa, estes delitos que são considerados como mais graves que os demais.
Desse modo, havendo mais de uma forma de interpretar algum aspecto relacionado com esses delitos, deve-se levar em consideração a vontade do legislador constitucional de punir de forma mais rígida tais crimes.

Isso significa que se o réu tiver inquéritos policiais ou ações penais contra si, ele estará obrigatoriamente impedido de receber o benefício do art. 33, § 4º da LD?
NÃO. Também não é assim. Não existe uma obrigatoriedade de que sempre o juiz tenha que negar o benefício pelo fato de o réu possuir inquéritos policiais ou ações penais contra si. O que o STJ afirmou é que o magistrado poderá utilizar este argumento para deixar de aplicar a causa de diminuição. No entanto, nada impede que, diante das peculiaridades do caso concreto, o juiz faça incidir o art. 33, § 4º mesmo que exista inquérito ou ação penal contra o réu.
Nas palavras do Min. Relator Felix Fischer, “não se pretende tornar regra que a existência de inquérito ou ação penal obste o benefício em todas as situações”.

Para que seja negado o benefício do art. 33, § 4º da LD ao réu, é necessário que o inquérito policial ou a ação penal que ele responda sejam também relacionados com tráfico de drogas?
NÃO. É possível negar o benefício mesmo que o inquérito ou a ação penal tenham por objeto outros crimes. Ex: o réu é preso por tráfico de drogas, sendo que já possuía contra si uma ação penal por roubo. Isso porque o art. 33, § 4º da LD exige que o réu não se dedique a “atividades criminosas”, expressão ampla que abrange não apenas o tráfico de drogas.

O entendimento acima exposto encontra amparo também na jurisprudência do STF?
SIM. Existe um precedente do STF também aplicando o mesmo entendimento. Confira:
(...) 1. O § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 dispõe que “Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.
2. In casu, a minorante especial a que se refere o § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 foi corretamente afastada ante a comprovação, por certidão cartorária, de que o paciente está indiciado em vários inquéritos e responde a diversas ações penais, entendimento que se coaduna com a jurisprudência desta Corte: RHC 94.802, 1ª Turma, Rel. Min. MENEZES DE DIREITO, DJe de 20/03/2009; e HC 109.168, 1ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe de 14/02/2012, entre outros. (...)
STF. 1ª Turma. HC 108135, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05/06/2012.



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