A situação concreta foi a
seguinte:
Em 2015, o Deputado Federal
Eduardo Cunha respondia a cinco inquéritos no STF.
Em dezembro de 2015, o
Procurador-Geral da República formulou requerimento ao STF pedindo o
afastamento de Eduardo Cunha do cargo de Deputado Federal e da função de
Presidente da Câmara dos Deputados enquanto os inquéritos não eram concluídos.
O pedido foi deferido pelo
Ministro Relator Teori Zavascki e referendado pelo Plenário do STF. Assim,
Cunha foi afastado cautelarmente do cargo de Deputado Federal e da função de
Presidente da Câmara. Isso foi decidido na Ação Cautelar 4.070/DF.
Qual a natureza jurídica do
pedido formulado pelo MP?
Trata-se de um pedido de
aplicação de medida cautelar.
O CPP prevê, em seu art. 319, um
rol de medidas cautelares diversas da prisão. Uma delas é o afastamento da
pessoa investigada ou acusada do cargo, emprego ou função pública que ocupa.
Veja:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
(...)
VI - suspensão do
exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira
quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações
penais;
Em maio de 2016, o PGR ingressou
com novo pedido no STF (AC 4.175) desta vez pedindo a prisão preventiva de
Eduardo Cunha.
Perda do cargo e decretação da
prisão
Em setembro de 2016, Cunha perdeu
o mandato de Deputado Federal por decisão da Câmara dos Deputados, que entendeu
que ele praticou conduta incompatível com o decoro parlamentar. Com isso, ele
perdeu também o foro por prerrogativa de função, sendo o seu processo remetido
para a Justiça Federal de 1ª instância.
Chegando o processo em 1ª
instância, em outubro de 2016, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba (PR)
decretou a prisão preventiva de Cunha.
Reclamação
A defesa de Cunha impugnou a
decisão por meio de dois instrumentos:
a) habeas corpus impetrado no
TRF4;
b) reclamação no STF.
Quanto ao habeas corpus, o TRF4
negou o pedido e a defesa impetrou novo HC, agora no STJ.
Na reclamação, a defesa trouxe
duas interessantes teses:
1) os fatos que estão sendo
apurados no processo em 1ª instância são os mesmos que estavam tramitando no
STF. Quando apreciou o pedido do PGR, o Supremo concedeu uma medida cautelar
diversa da prisão (afastamento do cargo). Isso significa dizer que o STF, em
outras palavras, afirmou que não seria necessária a prisão preventiva de Cunha.
Logo, o Juiz Sérgio Moro, ao determinar a custódia cautelar do réu, teria
afrontado o que decidiu o STF na AC 4.070/DF;
2) subsidiariamente, a defesa
pediu que, se o STF entender que não cabe reclamação neste caso, então, que o
Tribunal conceda habeas corpus de ofício porque a prisão seria flagrantemente
ilegal, devendo ser aplicado o art. 654, § 2º do CPP:
Art. 654 (...)
§ 2º Os juízes e os
tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando
no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de
sofrer coação ilegal.
Desse modo, a defesa alegou o
seguinte: Ministros do STF, ainda que entendam que não cabe reclamação, como
Vossas Excelência já estarão analisando a situação do réu, não podem
"fechar os olhos" para a ilegalidade da prisão preventiva do réu.
Logo, diante desta ilegalidade patente que é levada ao conhecimento do STF, o
Tribunal deverá, de ofício, decretar a ilicitude da prisão e a liberdade do
requerente.
O primeiro pedido foi acolhido
pelo STF? Era caso de reclamação?
NÃO.
Nas
decisões apontadas como violadas, o STF não analisou se estavam presentes os
requisitos da preventiva
Segundo afirmou o STF, quando o
Tribunal julgou a AC 4.070/DF e a AC 4.175/DF, ele não se manifestou sobre os
requisitos da prisão preventiva.
Na AC 4.070/DF, o STF decidiu
apenas que cabia o seu afastamento do cargo, sem analisar a possibilidade de
prisão.
Já no segundo pedido do PGR (AC
4.175/DF), antes que o STF pudesse examinar o seu mérito, Cunha perdeu o foro
privativo, fazendo com que o pedido fosse julgado prejudicado.
Assim, ao analisar as duas cautelares,
o STF não se manifestou sobre os requisitos da prisão preventiva.
Para o Min. Fachin, a defesa
confundiu ausência de análise com ausência de motivos para a prisão preventiva.
O STF não analisou se havia ou não motivos para a preventiva. Logo, não se pode
dizer que o decreto de prisão expedido pelo Juiz Sérgio Moro tenha afrontado a
decisão do STF.
Cunha, na época que era Deputado
Federal, só poderia ter sua prisão decretada pelo STF em caso de flagrante de
crime inafiançável (art. 53, § 2º, da CF). Logo, em tese, haveria até mesmo um
óbice para a decretação da prisão preventiva. A partir do momento em que ele
deixou a condição de parlamentar, esta vedação acabou e o Juiz Federal de 1º
grau não estava mais restringido por esta limitação.
Reclamação não pode ser utilizada
como atalho processual
Além disso, a defesa já impetrou
dois habeas corpus (primeiro no TRF e depois no STJ) e os requisitos da prisão
preventiva estão em análise no STJ. Por essa razão, é prematura a manifestação
do STF sobre o tema antes de esgotadas as instâncias antecedentes.
A reclamação somente é cabível se
houver necessidade de preservação da competência do STF ou para garantia da
autoridade de suas decisões (art. 102, I, “l”, da CF/88). A reclamação não se
destina a funcionar como sucedâneo recursal ("substituto de recurso")
nem se presta a atuar como atalho processual destinado a submeter o processo ao
STF “per saltum”, ou seja, pulando-se todas as instâncias anteriores.
As competências originárias do
STF se submetem ao regime de direito estrito, não admitindo interpretação extensiva.
Em outras palavras, o rol de competências originárias do STF não pode ser
alargado por meio de interpretação.
E o segundo pedido? O STF poderia
conceder habeas corpus de ofício?
Também NÃO.
O STF afirmou que a regra
prevista no art. 654, § 2º, do CPP não dispensa a observância do quadro de
distribuição constitucional das competências para conhecer do “habeas corpus”.
Assim, somente o órgão
jurisdicional competente para a concessão da ordem “a pedido” pode conceder o
“writ” de ofício.
Em outras palavras, o Tribunal
pode conceder habeas corpus de ofício, mas para isso acontecer é necessário que
ele seja o Tribunal competente para apreciar eventual pedido de habeas corpus
relacionado com este caso.
Exemplo hipotético:
A decisão de prisão foi proferida
pelo Juiz de Direito; logo, o órgão jurisdicional competente para apreciar
habeas corpus contra esta decisão é o TJ; imagine que a defesa, em vez de
impetrar habeas corpus para pleitear a liberdade do preso, formula um pedido ao
TJ apenas para ter acesso ao processo (o que estaria sendo negado); o TJ
poderá, além de conferir vista dos autos à defesa, conceder, de ofício, habeas
corpus para revogar a prisão preventiva com base no art. 654, § 2º do CPP. Isso
é permitido porque este Tribunal é o competente julgar o habeas corpus "a
pedido". Logo, ele também é competente para conceder o habeas corpus
"de ofício".
Em suma: somente pode conceder
habeas corpus "de ofício" quem for competente para julgar o habeas
corpus "a pedido". Isso porque o art. 654, § 2º do CPP não dispensa
as regras de competência.
Voltando ao caso concreto
O STF poderia conceder a ordem de
ofício se, no caso concreto, estivesse demonstrado que algum Tribunal Superior
tivesse praticado o ato coator. Assim, se o STJ já tivesse julgado o habeas
corpus impetrado pela defesa de Cunha e tivesse mantido a decisão do TRF4 (e do
Juiz Federal de 1ª instância), então, neste caso, o STF seria competente para
julgar o habeas corpus "a pedido". Consequentemente, também poderia
conceder a ordem de ofício, com fundamento no art. 654, § 2º do CPP c/ o art.
102, I, "i", da CF/88:
Art. 102. Compete ao
Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar,
originariamente:
(...)
i) o habeas corpus, quando
o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade
ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo
Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única
instância;
Portanto, é necessário que o tema
tenha sido submetido às instâncias antecedentes e que se possa concluir que o
ato coator foi praticado por Tribunal Superior. Vale ressaltar que este ato
coator pode ser simplesmente a manutenção da prisão decretada (ex: STJ mantém a
decisão do TRF4 que manteve a prisão decretada pelo Juiz). Neste caso, haveria,
em tese, um ato coator praticado pelo STJ que, mesmo diante de uma prisão
ilegal, a manteve. Nesta situação, o STF poderia conceder “habeas corpus” de
ofício. A Suprema Corte pode conceder a ordem de ofício se verificar que um
Tribunal Superior teve a oportunidade de sanar uma coação ilegal e não o fez.
Ocorre
que, no momento em que o STF apreciou a reclamação, ele ainda não era
competente para julgar o habeas corpus, considerando que a decisão do Juiz
Federal foi mantida pelo TRF4. Logo, a autoridade coatora passou a ser o TRF4 e
o Tribunal competente para julgar HC contra ato do TRF é o STJ (art. 105, I,
"c").
Se houve coação ilegal contra o
réu, essa não seria mais imputável ao juiz de primeiro grau, autoridade
reclamada. O reclamante impetrou “habeas corpus” perante tribunal regional, que
denegou a ordem. Essa situação que faz da corte regional, caso seja mesmo
ilegal a prisão, a autoridade coatora. Há, portanto, alteração do título, o que
torna sem objeto o pedido de concessão de ordem de ofício.
Observação final
A interpretação dada pelo
Plenário do STF para o art. 654, § 2º do CPP acima explicada vai de encontro a
uma decisão monocrática recente proferida pelo Min. Dias Toffoli.
O ex-Ministro de Estado Paulo
Bernardo foi preso por ordem do Juiz da 6ª Vara Federal de São Paulo. A defesa
do preso ingressou com reclamação no STF afirmando que a decretação da prisão
teria violado a competência do STF para apreciar a causa, considerando que
Paulo Bernardo estaria sendo investigado em conjunto com a sua esposa (Senadora
Gleisi Hoffman), de forma que todo o procedimento deveria tramitar na Corte
Suprema.
O Min. Dias Toffoli negou o
pedido da defesa na reclamação afirmando que houve desmembramento dos processos
e que a Senadora continua sendo investigada no STF ao passo que a apuração
penal quanto a Paulo Bernardo e os demais investigados sem foro privativo está
sendo conduzida em 1ª instância.
Assim, não houve violação à competência
do STF na decisão do Juiz que determinou a prisão.
No entanto, o Min. Dias Toffoli
afirmou que, apesar disso, ele, analisando os autos, concluiu que a prisão foi
decretada de forma ilegal, considerando que não estão presentes os pressupostos
da custódia preventiva. Dessa forma, de ofício, ele revogou a prisão preventiva
de Paulo Bernardo (STF. Decisão Monocrática. Rcl 24506 MC, Rel. Min. Dias
Toffoli, julgado em 29/06/2016).
Se fôssemos adotar o entendimento
acima explicado (Rcl 25509 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin), o Min. Dias
Toffoli, em tese, não poderia ter aplicado o art. 654, § 2º do CPP e concedido
o habeas corpus de ofício. Isso porque o STF não era competente para apreciar o
habeas corpus "a pedido". A defesa primeiramente deveria impetrar HC
no TRF3, depois no STJ e só então no STF caso as demais
instâncias negassem a liberdade.
Destaquei esta decisão
monocrática recente para que vocês não ficassem com dúvidas, mas, para fins de
concurso, penso que é mais provável que seja cobrado o entendimento do Plenário
que foi divulgado no Informativo 854 do STF, ou seja, o de que o art. 654, § 2º
do CPP não dispensa o respeito às regras de competência.