Imagine a seguinte situação
hipotética:
João decidiu alienar seu imóvel
para Pedro.
Para tanto, foram até um
tabelionato de notas e ali foi lavrada uma escritura pública na qual João
aliena o bem a Pedro. Isso, contudo, não é suficiente. Será necessário, ainda,
fazer o registro desta escritura pública no Registro de Imóveis. Essa exigência
está prevista no Código Civil:
Art. 1.245. Transfere-se
entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro
de Imóveis.
§ 1º Enquanto não se
registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do
imóvel.
(...)
Em
razão dessa necessidade de registro do título translativo, a doutrina afirma
que o Brasil adotou o modelo romano de sistema registral. Segundo este sistema
romano, o contrato de compra e venda, por si só, não transfere a propriedade da
coisa. Ele apenas gera uma obrigação de que o vendedor faça a transferência.
Além de assinar o contrato, a
efetiva transferência da propriedade ainda dependerá:
• No caso de bem móvel: da
tradição (entrega).
• No caso de bem imóvel: do
registro do título aquisitivo (contrato) no RI.
Voltando ao nosso exemplo:
De posse da escritura pública,
Pedro (comprador) foi até o Registro de Imóveis solicitar o registro do título
translativo.
Para que seja feito o registro de
uma escritura pública de compra e venda são necessários diversos documentos.
O Oficial do Registro atendeu
Pedro, examinou todos os papéis que ele levou, mas não fez o registro porque
alegou que faltava mais um documento que seria necessário.
Pedro, que é advogado, não
concordou com o documento exigido afirmando que ele não está previsto na
legislação.
O que fazer diante desta situação
de impasse?
O apresentante do título (no
caso, Pedro) deverá requerer ao Oficial do Registro que ele suscite
"dúvida" e encaminhe a questão para que o Juiz da Vara de Registros
Públicos decida se a exigência é devida ou não.
Inicia-se, aqui, o chamado
procedimento de dúvida.
O que é o procedimento de dúvida?
A dúvida é um procedimento
administrativo iniciado pelo titular da serventia extrajudicial, a requerimento
do apresentante, nas situações em que houver divergência sobre alguma exigência
que seja feita pelo Oficial e com a qual o apresentante não concorde. Neste
caso, esta discordância deverá ser encaminhada ao juiz competente (em regra, o
Juiz da Vara de Registros Públicos) para que este decida sobre a legalidade da
exigência que foi feita pelo titular como condição para o registro.
Vale ressaltar que as exigências
do Oficial devem ser feitas por escrito. A isso chamamos de “nota de
devolução”.
Quem suscita a dúvida?
O Oficial (Registrador). É ele
quem suscita a dúvida (a requerimento do interessado).
Denominação
O termo "dúvida" é
utilizado pela legislação. No entanto, vale ressaltar que dúvida, aqui, não
está empregada no sentido de ignorância. Em outras palavras, o Oficial não
suscita a dúvida porque ele não sabe o que fazer, ou seja, por estar em dúvida.
Não é isso. Ele sabe o que fazer, exige determinado documento do apresentante,
mas este não concorda. Daí se inicia o procedimento. Assim, a palavra
"dúvida" é utilizada no sentido de "objeção, discordância,
impugnação".
Procedimento:
Encontra-se previsto no art. 198
da Lei nº 6.015/73.
Se o Oficial entender que existe
exigência a ser satisfeita, ele deverá indicá-la por escrito para que o
apresentante atenda.
Caso o apresentante não se
conforme com a exigência feita, ou se não puder atendê-la, ele poderá requerer
que o título e a declaração de dúvida sejam remetidos ao juízo competente para
dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte:
I - o Oficial anotará no
Protocolo, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida;
Il - após certificar, no título,
a prenotação e a suscitação da dúvida, o Oficial deverá rubricar todas as suas
folhas;
III - em seguida, o Oficial:
• dará ciência dos termos da
dúvida ao apresentante, ou seja, fornecerá a ele, por escrito, as razões pelas
quais não aceitou fazer o registro; e
• notificará o apresentante para,
no prazo de 15 dias, impugnar essas razões, ou seja, para apresentar os
argumentos pelos quais não concorda com a exigência feita.
IV - certificado o cumprimento do
disposto no item III, as razões da dúvida e o título deverão ser remetidos ao
juízo competente, mediante carga.
Documentos que devem ser
apresentados pelo Oficial ao juízo competente:
• Requerimento escrito da dúvida;
• Comprovante do protocolo (com
prenotação vigente);
• Título original;
• Documentos que acompanham;
• Razões do Oficial;
• Nota devolutiva;
• Prova da intimação do
interessado.
Caso o interessado não impugne a
dúvida no prazo de 15 dias: não há problema
Art. 199. Se o interessado
não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será
ela, ainda assim, julgada por sentença.
Oitiva do MP (prazo: 10 dias)
Art. 200. Impugnada a
dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério
Público, no prazo de dez dias.
Diligências
Art. 201. Se não forem
requeridas diligências, o juiz proferirá decisão no prazo de quinze dias, com
base nos elementos constantes dos autos.
Produção de provas:
Não é possível a dilação
probatória, pois se trata de procedimento especial e sumário (posição da
maioria da doutrina).
Assim, o exame de questões mais
complexas, que envolvam produção de provas deverá ser resolvida pela jurisdicional
adequada.
É possível a intervenção de
terceiros no procedimento de dúvida?
NÃO.
Não é cabível a intervenção de terceiros em procedimento de dúvida
registral suscitada por Oficial de Registro de Imóveis (arts. 198 a 207 da Lei
nº 6.015/73).
STJ. 4ª Turma. RMS
39.236-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 26/4/2016 (Info 582).
Não existe previsão legal para a
intervenção de terceiros na dúvida, que possui, na verdade, natureza de
procedimento administrativo (não jurisdicional), agindo o juiz singular ou o
colegiado em atividade de controle da Administração Pública.
Poder-se-ia argumentar,
entretanto, que casos existem em que a dúvida registral se reveste de caráter
contencioso, em razão do nascimento de uma pretensão resistida e, portanto, de
uma lide, o que conferiria, em tese, a possibilidade de intervenção de
terceiros. Contudo, referida possibilidade só poderá ocorrer entre sujeitos que
defendam interesses próprios, nunca podendo ser reconhecida entre o registrador
e o apresentante do título a registro, pois o Oficial não é titular de
interesse próprio, não sustentando pretensão alguma.
Sentença:
A dúvida é decidida por sentença,
que deverá ser prolatada no prazo de 15 dias.
Apesar de o art. 202 da LRP
utilizar o nome "sentença", a doutrina e a jurisprudência entendem
que não se trata de uma sentença igual àquela prevista no art. 203, § 1º, do
CPC/2015:
Art. 203 (...)
§ 1º Ressalvadas as
disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento
por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase
cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.
A sentença do procedimento de
dúvida (art. 202 da LRP) é um ato decisório administrativo, que não se
reveste das mesmas características da sentença judicial, não resultando de
quaisquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487 do CPC/2015.
Juízo competente:
O juízo competente é previsto na
Lei de Organização Judiciária.
Em geral, é o Juiz da Vara de
Registros Públicos.
A doutrina aponta uma situação
excepcional em que o procedimento de dúvida será decidido por um Juiz Federal.
Trata-se da hipótese prevista na Lei nº 5.972/73, que regula o procedimento
para o registro da propriedade de bens imóveis discriminados
administrativamente ou possuídos pela União.
Resultado da sentença (art. 203):
Transitada em julgado a decisão
da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo:
I - se for julgada PROCEDENTE (o
Oficial tinha razão): não é efetuado o registro.
Os documentos são devolvidos à
parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao Oficial,
para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação.
II - se for julgada IMPROCEDENTE
(o Oficial não tinha razão): é efetuado o registro.
O interessado apresentará, de
novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença,
que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro,
declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo.
Recurso cabível contra a
sentença: APELAÇÃO.
Aqui também é importante
esclarecer que esta "apelação" prevista no procedimento de dúvida não
é igual à apelação do art. 1.009 do CPC/2015.
A apelação do procedimento de
dúvida (art. 202 da LRP) tem natureza administrativa e a apelação do CPC é
recurso judicial.
Quem julga apelação no
procedimento de dúvida:
Depende da Lei de Organização
Judiciária. Em regra é a Corregedoria Geral de Justiça.
Inexistência de coisa julgada
Qualquer que seja a decisão
proferida no procedimento de dúvida, sobre ela não pesarão os efeitos da coisa
julgada judicial. Isso significa dizer que a discussão pode ser reaberta no
campo jurisdicional, por meio de um processo judicial.
É cabível RE ou Resp contra a
decisão proferida na apelação do procedimento de dúvida?
NÃO, uma vez que o procedimento
de dúvida reveste-se de caráter administrativo, conforme previsto no art. 204
da LRP:
Art. 204. A decisão da
dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso
competente.
O procedimento de dúvida consiste
em atividade atípica desempenhada pelo Poder Judiciário, exercida em
caráter correcional a fim de fazer o controle de legalidade dos atos praticados
pelo delegatário da atividade estatal. Desse modo, não se pode dizer que no
procedimento de dúvida ocorra a prestação jurisdicional stricto sensu.
O procedimento de dúvida ocorre
porque a Constituição Federal determinou que o Poder Judiciário deve fazer a fiscalização
dos serviços notariais e de registro (art. 236, § 1º, parte final). Ocorre que,
no exercício dessa atividade, o julgador não desempenha sua função típica (a
jurisdição), mas sim uma atividade meramente correcional. Na "dúvida",
o magistrado não atua com a finalidade de solucionar litígios, tampouco de
garantir a pacificação social. Seu objetivo ali é simplesmente o de verificar
se estão sendo cumpridas as normas que disciplinam o sistema de registros públicos,
visando a assegurar a "autenticidade, segurança e eficácia dos atos
jurídicos" (LRP, art. 1º).
Vale ressaltar que não importa
que o interessado não concorde com a posição do Oficial de Registro ou com a
sentença proferida pelo magistrado. Mesmo assim o procedimento de dúvida
continuará tendo natureza administrativa.
Assim, tratando-se de
procedimento de inequívoca natureza administrativa, circunscrito à análise de
questões formais do pedido de registro ou averbação a decisão que julga a
dúvida não pode ser qualificada como "causa decidida em única ou última
instância", que autoriza a interposição de recurso especial (art. 105, III,
da CF/88). Quando o constituinte falou em "causa" no art. 105, III,
ele quis restringir às decisões proferidas no exercício de atividade
jurisdicional stricto sensu (processo
judicial), não se admitindo a possibilidade de recurso especial (ou
extraordinário) para se discutir um julgamento de conflito administrativo,
ainda que tenha sido realizado por órgão colegiado formado por membros do Poder
Judiciário.
Em suma:
Não cabe recurso especial contra decisão proferida em procedimento de
dúvida registral, sendo irrelevantes a existência de litigiosidade ou o fato de
o julgamento emanar de órgão do Poder Judiciário, em função atípica.
O procedimento de dúvida registral tem, por força de expressa
previsão legal, natureza administrativa
(art. 204 da LRP), não se qualificando como
prestação jurisdicional.
STJ. 2ª Seção. REsp
1.570.655-GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 23/11/2016 (Info
595).