Dizer o Direito

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

É possível que o réu condenado em 2ª instância seja obrigado a iniciar o cumprimento da pena mesmo havendo ainda embargos de declaração pendentes?



EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi condenado a uma pena de 8 anos de reclusão, tendo sido a ele assegurado na sentença o direito de recorrer em liberdade.
O réu interpôs apelação, mas o Tribunal de Justiça manteve a condenação.
Contra esse acórdão, João interpôs, simultaneamente, recurso especial e extraordinário.

João, que passou todo o processo em liberdade, deverá aguardar o julgamento dos recursos especial e extraordinário preso? É possível executar provisoriamente a condenação enquanto se aguarda o julgamento dos recursos especial e extraordinário? É possível que o réu condenado em 2ª instância seja obrigado a iniciar o cumprimento da pena mesmo sem ter havido ainda o trânsito em julgado?
SIM.
A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.
STF. Plenário. HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/02/2016 (Info 814).

A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF/88) e não viola o texto do art. 283 do CPP.
STF. Plenário. ADC 43 e 44 MC/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgados em 05/10/2016 (Info 842).


EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA E PENDÊNCIA DO JULGAMENTO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

Imagine agora uma situação ligeiramente diferente:
Maria foi condenada a uma pena de 8 anos de reclusão, tendo sido a ela assegurado na sentença o direito de recorrer em liberdade.
A ré interpôs apelação, mas o Tribunal de Justiça manteve a condenação.
Contra esse acórdão, Maria opôs embargos de declaração.
O Ministério Público pediu que o Tribunal de Justiça determinasse imediatamente a prisão de Maria, considerando que os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo, devendo, portanto, haver o início da execução provisória da pena.

O pedido do Ministério Público deverá ser acolhido? É possível executar provisoriamente a condenação enquanto se aguarda o julgamento de embargos de declaração opostos contra o acórdão condenatório do Tribunal de 2ª instância? É possível que o réu condenado em 2ª instância seja obrigado a iniciar o cumprimento da pena mesmo havendo ainda embargos de declaração pendentes?
NÃO.
Não é possível a execução provisória da pena se foram opostos embargos de declaração contra o acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de 2ª instância e este recurso ainda não foi julgado.
STJ. 6ª Turma. HC 366.907-PR, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 6/12/2016 (Info 595).

Como ainda está pendente o julgamento dos embargos de declaração, o acórdão condenatório ainda é passível de integração. Desse modo, pode-se dizer que não houve esgotamento da jurisdição ordinária. Isso porque não houve, ainda, pronunciamento definitivo do Tribunal de Justiça passível de ser impugnado por meio de recurso especial ou recurso extraordinário.

Realmente os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e apenas interrompem o prazo para a interposição dos recursos cabíveis. No entanto, dada a falibilidade que é característica do ser humano, excepcionalmente, a jurisprudência admite que sejam atribuídos efeitos infringentes aos embargos declaratórios.

Assim, em casos de réus que responderam a ação penal ou recorreram da sentença condenatória em liberdade, soa desarrazoado determinar a prisão de forma automática, antes de possibilitar a integração do acórdão, quer para sanar eventuais vícios ou para afastá-los, sendo prudente aguardar-se a confirmação da condenação, em última análise, pelo Tribunal de Justiça.

Então, nas hipóteses de acusados que responderam soltos ao processo ou recorreram em liberdade, estes devem assim permanecer até que o Tribunal de segunda instância julgue os embargos de declaração opostos contra o acórdão condenatório.


sábado, 25 de fevereiro de 2017

INFORMATIVO Comentado 595 STJ




Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 595 STJ.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 595 DO STJ

DIREITO ADMINISTRATIVO
PODER DE POLÍCIA
Não cabe ao Banco Central fiscalizar o Serasa.

DIREITO CIVIL
FIANÇA
Fiança limitada e honorários advocatícios.

SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO
Súmula 586-STJ.

CASAMENTO
Regime da separação obrigatória de bens para idosos não se aplica se o casamento foi precedido de união estável iniciada antes da idade limite.

UNIÃO ESTÁVEL
Contrato de convivência não exige escritura pública.

GUARDA COMPARTILHADA
Aplicação obrigatória da guarda compartilhada.

DIREITO EMPRESARIAL
DISSOLUÇÃO PARCIAL DA SOCIEDADE
Momento em que se considera dissolvida a sociedade empresária para fins de apuração de haveres.

SOCIEDADE ANÔNIMA
Dissolução parcial da sociedade anônima que não está gerando lucros.

DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL
DÚVIDA
Não cabe recurso especial ou extraordinário

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
MENOR SOB GUARDA
Menor sob guarda é dependente para fins previdenciários.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
EXECUÇÃO FISCAL
Súmula 583-STJ.

DIREITO PENAL
TRÁFICO DE DROGAS
Agente que pratica delitos da Lei de Drogas envolvendo criança ou adolescente responde também por corrupção de menores?
Tráfico privilegiado não é hediondo (cancelamento da Súmula 512-STJ).

DIREITO PROCESSUAL PENAL
COMPETÊNCIA
Fraudes praticadas na administração de operadora de plano de saúde que não seja seguradora.

CITAÇÃO POR EDITAL
Produção antecipada de provas e oitiva de testemunhas policiais.

EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA
Não é possível a execução provisória da pena se ainda estão pendentes embargos de declaração.

EXECUÇÃO PENAL
Condenado tem direito à progressão a partir da data em que preenche requisitos legais.
Inobservância do perímetro rastreado pelo monitoramento eletrônico não configura falta grave.

DIREITO TRIBUTÁRIO
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
Súmula 585-STJ.

COFINS
Súmula 584-STJ.

DIREITO PREVIDENCIÁRIO
PENSÃO POR MORTE
Menor sob guarda é dependente para fins previdenciários.













INFORMATIVO Comentado 595 STJ - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 595 STJ - Versão Resumida.

Bons estudos.










sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Condenado tem direito à progressão a partir da data em que preenche requisitos legais



NOÇÕES GERAIS SOBRE A PROGRESSÃO DE REGIME

Existem três regimes de cumprimento de pena:
a) Fechado: a pena é cumprida na Penitenciária.
b) Semiaberto: a pena é cumprida em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.
c) Aberto: a pena é cumprida na Casa do Albergado.

Progressão de regime
No Brasil, adota-se o sistema progressivo (ou inglês), ainda que de maneira não pura.
Assim, de acordo com o CP e com a LEP, as penas privativas de liberdade deverão ser executadas (cumpridas) em forma progressiva, com a transferência do apenado de regime mais gravoso para menos gravoso tão logo ele preencha os requisitos legais.

Requisitos para a progressão
Os requisitos para que a pessoa tenha direito à progressão de regime estão previstos na Lei n.° 7.210/84 e também no Código Penal. Veja um resumo:

Requisitos para a progressão do regime FECHADO para o SEMIABERTO:
Requisito OBJETIVO
Crimes comuns: cumprimento de 1/6 da pena aplicada.
Crimes hediondos ou equiparados
(se cometidos após a Lei 11.464/07):
·       Cumprimento de 2/5 da pena se for primário.
·       Cumprimento de 3/5 da pena se for reincidente.
Requisito SUBJETIVO
Bom comportamento carcerário durante a execução (mérito).
Requisito FORMAL
Oitiva prévia do MP e do defensor do apenado (§ 1ºA do art. 112 da LEP).

Requisitos para a progressão do regime SEMIABERTO para o ABERTO:
Requisito OBJETIVO
Crimes comuns: cumprimento de 1/6 da pena RESTANTE.
Crimes hediondos ou equiparados
(se cometidos após a Lei 11.464/07):
·       Cumprimento de 2/5 da pena se for primário.
·       Cumprimento de 3/5 da pena se for reincidente.
Requisito SUBJETIVO
Bom comportamento carcerário durante a execução (mérito).
Requisito FORMAL
Oitiva prévia do MP e do defensor do apenado (§ 1ºA do art. 112 da LEP).
Requisitos ESPECÍFICOS do regime aberto
Além dos requisitos acima expostos, o reeducando deve:
a)      Aceitar o programa do regime aberto (art. 115 da LEP) e as condições especiais impostas pelo Juiz (art. 116 da LEP);
b)      Estar trabalhando ou comprovar a possibilidade de trabalhar imediatamente quando for para o regime aberto (inciso I do art. 114);
c)       Apresentar, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime (inciso II do art. 114).

Requisito OBJETIVO adicional no caso de condenados por crime contra a Administração Pública:
No caso de crime contra a Administração Pública, para que haja a progressão será necessária ainda:
·       a reparação do dano causado; ou
·       a devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

Isso está previsto no § 4º do art. 33 do Código Penal:
§ 4º O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

DATA-BASE PARA SUBSEQUENTE PROGRESSÃO DE REGIME
Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi condenado a 6 anos de reclusão em regime fechado pela prática de um crime “comum” (não hediondo ou equiparado).
Segundo o requisito objetivo acima explicado, ele terá que cumprir 1/6 da pena (1 ano) para ter direito de ir para o regime semiaberto.
Em 02/05/2015, João completou 1 ano de pena.
Ocorre que, devido à grande quantidade de processos, somente em 02/10/2015, ou seja, 5 meses depois, o juiz conseguiu proferir a decisão determinando a progressão de regime.
João está, portanto, agora no regime semiaberto. Para ter direito de progredir ao regime aberto, ele terá que cumprir mais 1/6 da pena remanescente.
A dúvida, no entanto, diz respeito à data-base que deverá ser considerada para este novo cumprimento do requisito objetivo:

O início do cumprimento do requisito objetivo (1/6 da pena) para a nova progressão deverá ser considerado na data em que o apenado preencheu os requisitos da progressão anterior (02/05/2015) ou na data em que o juiz proferiu a decisão deferindo a progressão (02/10/2015)? Em nosso exemplo, João ficou 5 meses a mais no regime fechado aguardando a decisão da progressão; este período já conta como tempo de pena cumprido no regime semiaberto para fins de nova progressão (agora para o aberto)?
SIM.

A data-base para subsequente progressão de regime é aquela em que o reeducando preencheu os requisitos do art. 112 da LEP e não aquela em que o Juízo das Execuções deferiu o benefício.
A decisão do Juízo das Execuções que defere a progressão de regime é declaratória (e não constitutiva). Algumas vezes o reeducando preenche os requisitos em uma data, mas a decisão acaba demorando meses para ser proferida. Não se pode desconsiderar, em prejuízo do reeducando, o período em que permaneceu cumprindo pena enquanto o Judiciário analisava seu requerimento de progressão.
STJ. 6ª Turma. HC 369.774/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/11/2016.
STF. 2ª Turma. HC 115254, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 15/12/2015.

Em nosso exemplo, quando o juízo for analisar o requisito objetivo para João progredir do semiaberto para o aberto, deverá computar o tempo de cumprimento de pena no semiaberto a partir de 02/05/2015 (e não de 02/10/2015).
Assim, deve-se considerar os meses em que o apenado ficou aguardando deliberação (maio a outubro) como sendo de cumprimento da pena em regime semiaberto, mesmo ele estando no fechado.
O período de permanência no regime mais gravoso, por mora do Judiciário em analisar requerimento de progressão ao modo intermediário de cumprimento da pena, deverá ser considerado para o cálculo de futuro benefício, sob pena de ofensa ao princípio da dignidade do apenado, como pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e prejuízo ao seu direito de locomoção.



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Agente que pratica delitos da Lei de Drogas envolvendo criança ou adolescente responde também por corrupção de menores?



DELITO ENVOLVENDO MENOR DE 18 ANOS E CONCURSO COM CORRUPÇÃO DE MENORES

Imagine a seguinte situação hipotética:
João (com 20 anos de idade) e Maikon (com 16 anos), mediante grave ameaça, subtraem a carteira de uma vítima.
Vale ressaltar que, antes desse evento, Maikon já respondia a cinco ações socioeducativas pela participação em outros atos infracionais equiparados a roubo.
O Promotor de Justiça oferece denúncia contra João pela prática de dois crimes em concurso:
• Roubo circunstanciado (art. 157, § 2º, II, do CP); e
• Corrupção de menores (art. 244-B do ECA).

Veja os dispositivos legais:
Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;

Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Agiu corretamente o Ministério Público? O agente que utiliza uma criança ou adolescente para a prática de crime poderá responder pelo delito praticado em concurso com a corrupção de menores?
SIM.

A defesa de João pediu a sua absolvição quanto ao delito do art. 244-B do ECA, argumentando que o tipo penal fala em “corromper” menor de 18 anos. No entanto, no caso concreto, o adolescente já estaria “corrompido”, considerando que tinha participado de outros atos infracionais equiparados a crime (era infrator contumaz). Logo, disse o advogado, não foi o réu (João) quem corrompeu o menor. A tese defensiva é aceita pela jurisprudência?
NÃO. A configuração do crime previsto no artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal (Súmula 500 do STJ). Assim, pouco importa se houve ou não a corrupção efetiva do menor.


CRIMES DA LEI DE DROGAS ENVOLVENDO MENOR DE 18 ANOS E INEXISTÊNCIA DE CORRUPÇÃO DE MENORES

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
Pedro, conhecido traficante do bairro, convenceu Lucas (17 anos) a entregar, de bicicleta, 100g de cocaína na casa de Maurício, que havia encomendado a droga do traficante.
Pedro foi denunciado pela prática de dois crimes em concurso:
• Tráfico de drogas (art. 33 c/c art. 40, VI, da Lei nº 11.343/2006); e
• Corrupção de menores (art. 244-B do ECA).

Relembre a redação da Lei de Drogas:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
(...)
VI - sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;

Agiu corretamente o Ministério Público? O agente que utiliza uma criança ou adolescente para a prática do crime do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 poderá responder pelo tráfico praticado em concurso com a corrupção de menores?
NÃO. Não cabe concurso neste caso porque senão haveria bis in idem.
Quando o agente envolve uma criança ou adolescente na prática de:
·       tráfico de drogas (art. 33);
·       tráfico de maquinários para drogas (art. 34);
·       associação para o tráfico (art. 35);
·       financiamento do tráfico (art. 36); ou
·       informante do tráfico (art. 37).

... o legislador estabeleceu que ele deverá responder pelo crime praticado com a pena aumentada de 1/6 a 2/3 pelo fato de ter se utilizado de um menor de 18 anos para o cometimento do delito. Isso foi previsto expressamente no art. 40, VI, da Lei nº 11.343/2006.

Se o julgador, além de aplicar a causa de aumento do art. 40, VI, da Lei de Drogas, condenar o réu também pela prática do crime de corrupção de menores (art. 244-B do ECA), estará punindo duas vezes o agente pela mesma circunstância (utilizar menor de 18 anos na prática de um crime).

Qual deverá ser a imputação neste caso?
O agente responderá apenas pelo crime previsto na Lei de Drogas com a causa de aumento do art. 40, VI.
Em nosso exemplo, Pedro responderia apenas pelo art. 33 c/c art. 40, VI, da Lei nº 11.343/2006.

Por que o art. 244-B do ECA deverá ser afastado?
Como vimos acima, o juiz não pode aplicar o art. 40, VI, da LD e também o art. 244-B do ECA porque estaria punindo duas vezes o réu pela mesma circunstância. Logo, só uma delas deverá prevalecer. No caso, deverá incidir o art. 40, VI, por ser esta previsão específica para os crimes envolvendo drogas. Assim, prevalece o art. 40, VI, em atenção ao princípio da especialidade.

Resumindo:
• Réu praticou arts. 33, 34, 35, 36 ou 37 da LD envolvendo menor de 18 anos: ele não responderá também pelo art. 244-B do ECA. Isso porque o fato de haver criança ou adolescente é punido pelo art. 40, VI, da LD
• Réu praticou outro crime que não seja dos arts. 33 a 37 da LD envolvendo menor de 18 anos: ele responderá pelo crime praticado e mais por corrupção de menores (art. 244-B do ECA).

Na hipótese de o delito praticado pelo agente e pelo menor de 18 anos não estar previsto nos arts. 33 a 37 da Lei de Drogas, o réu poderá ser condenado pelo crime de corrupção de menores, porém, se a conduta estiver tipificada em um desses artigos (33 a 37), não será possível a condenação por aquele delito, mas apenas a majoração da sua pena com base no art. 40, VI, da Lei nº 11.343/2006.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.622.781-MT, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 22/11/2016 (Info 595).



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Guarda compartilhada



ESPÉCIES DE GUARDA
Existem quatro espécies de guarda que serão vistas abaixo. As duas primeiras estão previstas expressamente no Código Civil e as duas outras são criações da doutrina.
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.

a) Unilateral (exclusiva):
Ocorre quando o pai ou a mãe fica com a guarda e a outra pessoa possuirá apenas o direito de visitas.
Segundo a definição do Código Civil, a guarda unilateral é aquela “atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua” (art. 1.583, § 1º).
Ainda hoje é bastante comum.
Ex: João e Maria se divorciaram; ficou combinado que Maria ficará com a guarda da filha de 5 anos e que o pai tem direito de visitas aos finais de semana.

Vale ressaltar que, mesmo sendo fixada a guarda unilateral, o pai ou a mãe que ficar sem a guarda continuará com o dever de supervisionar os interesses dos filhos. Para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos (§ 5º do art. 1.583).

b) Compartilhada (conjunta):
Ocorre quando o pai e a mãe são responsáveis pela guarda do filho.
A guarda é de responsabilidade de ambos e as decisões a respeito do filho são tomadas em conjunto, baseadas no diálogo e consenso.
O instituto da guarda compartilhada teve origem na Common Law, do Direito Inglês, com a denominação de joint custody. Porém, foi nos Estados Unidos que a denominada “guarda conjunta” ganhou força e se popularizou.
Segundo o Código Civil brasileiro, entende-se por guarda compartilhada “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (art. 1.583, § 1º).
É considerada a melhor espécie de guarda porque o filho tem a possibilidade de conviver com ambos e os pais, por sua vez, sentem-se igualmente responsáveis.
Vale ressaltar que nessa espécie de guarda, apesar de tanto o pai como a mãe possuírem a guarda, o filho mora apenas com um dos dois.
Ex: João e Maria se divorciaram; ficou combinado que a filha do casal ficará morando com a mãe; apesar disso, tanto Maria como João terão a guarda compartilhada (conjunta) da criança, de forma que ela irá conviver constantemente com ambos e as decisões sobre ela serão tomadas em conjunto pelos pais.
E se os pais morarem em cidades diferentes? A Lei estabeleceu que a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos (§ 3º do art. 1.584).

Tempo de convivência
Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos (§ 2º do art. 1.583).

Orientação técnico-profissional
Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe (§ 3º do art. 1.584 do CC).
Assim, com a ajuda de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais, o juiz já deverá estabelecer as atribuições que caberão a cada um dos pais e o tempo de convivência com o filho.
Ex: João irá buscar o filho no colégio todos os dias às 12h; no período da tarde, a criança continuará na companhia do pai e, às 18h, ele deverá deixá-lo na casa da mãe.

c) Alternada:
Ocorre quando o pai e a mãe se revezam em períodos exclusivos de guarda, cabendo ao outro direito de visitas.
Em outras palavras, é aquela na qual durante alguns dias a mãe terá a guarda exclusiva e, em outros períodos, o pai terá a guarda exclusiva.
Ex: João e Maria se divorciaram; ficou combinado que durante uma semana a filha do casal ficará morando com a mãe (e o pai não pode interferir durante esse tempo) e, na semana seguinte, a filha ficará vivendo com o pai (que terá a guarda exclusiva nesse período).
“Essa forma de guarda não é recomendável, eis que pode trazer confusões psicológicas à criança. Com tom didático, pode-se dizer que essa é a guarda pingue-pongue, pois a criança permanece com cada um dos genitores por períodos ininterruptos. Alguns a denominam como a guarda do mochileiro, pois o filho sempre deve arrumar a sua malinha ou mochila para ir à outra casa. É altamente inconveniente, pois a criança perde seu referencial, recebendo tratamentos diferentes quando na casa paterna e na materna.” (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. São Paulo: Método, 2013, p. 1224).

d) Aninhamento (nidação):
Ocorre quando a criança permanece na mesma casa onde morava e os pais, de forma alternada, se revezam na sua companhia.
Assim, é o contrário da guarda alternada, já que são os pais que, durante determinados períodos, se mudam.
Ex: João e Maria se divorciaram; ficou combinado que a filha do casal ficará morando no mesmo apartamento onde residia e no qual já possui seus amiguinhos na vizinhança. Durante uma semana, a mãe ficará morando no apartamento com a criança (e o pai não pode interferir durante esse tempo). Na semana seguinte, a mãe se muda temporariamente para outro lugar e o pai ficará vivendo no apartamento com a filha.
Defendida por alguns como uma forma de a criança não sofrer transtornos psicológicos por ter que abandonar o meio em que já vivia e estava familiarizada. Apesar disso, é bastante rara devido aos inconvenientes práticos de sua implementação.
A palavra “aninhamento” vem de “aninhar”, ou seja, colocar em um ninho. Transmite a ideia de que a criança permanecerá no mesmo ninho (mesmo lar) e os seus pais é quem se revezarão em sua companhia.

Como já dito acima, o Código Civil somente fala em unilateral ou compartilhada (art. 1.583), mas as demais espécies também existem na prática.

DEFINIÇÃO DA GUARDA
Como é definida a espécie de guarda que será aplicada?
O ideal é que a guarda seja definida por consenso entre o pai e a mãe. Por isso, o Código Civil determina que seja feita uma audiência de conciliação. A Lei também afirma que o juiz deverá incentivar que os pais façam um acordo adotando a guarda compartilhada:
Art. 1.584 (...) § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.

Se mesmo assim não houver acordo, o juiz irá fixar a guarda de forma compulsória.

Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.

Em regra, o juiz não deve conceder a guarda sem ouvir a outra parte
A decisão sobre guarda de filhos, mesmo que provisória, será proferida preferencialmente após a oitiva de ambas as partes perante o juiz, salvo se a proteção aos interesses dos filhos exigir a concessão de liminar sem a oitiva da outra parte (art. 1.585 do CC).

GUARDA COMPARTILHADA COMO REGRA
Vimos acima que, se não houver acordo, o juiz é quem irá fixar a guarda. Neste caso, qual é a espécie de guarda que o magistrado deverá determinar?
REGRA: guarda compartilhada.
O Código determina que, quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, o juiz deverá aplicar a guarda compartilhada (art. 1.584, § 2º).

EXCEÇÕES:
Não será aplicada a guarda compartilhada se:
a) um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor;
b) um dos genitores não estiver apto a exercer o poder familiar.

A doutrina em geral aplaude essa solução legal?
Não. Isso porque a lei impõe aos pais algo que, na prática, não funciona se não for consensual.
A guarda compartilhada exige como pressuposto que haja um mínimo de convivência harmônica entre os pais, já que as decisões a respeito do filho deverão ser tomadas em conjunto, com base no diálogo e consenso.
Ora, se os pais da criança não gozam de uma relação harmoniosa, é extremamente improvável que consigam dialogar e decidir, de forma amistosa, pontos conflituosos em relação ao filho, como, por exemplo, a escola em que ele irá estudar, o tempo que cada um passará com a criança, as obrigações de cada genitor etc.
Na guarda compartilhada muito pouco adianta que tais cláusulas sejam impostas pelo juiz porque o Poder Judiciário não terá condições de acompanhar, no dia-a-dia, o cumprimento de tais medidas e a sua efetividade será mínima se não houver disposição e compromisso dos pais em respeitá-las.
Enfim, apesar de a guarda compartilhada ser a espécie ideal, ela tem que ser conquistada com a conscientização e nunca pela imposição, o que gerará um efeito inverso e talvez acirre o relacionamento já desgastado dos pais da criança.

A guarda compartilhada depende da concordância dos genitores? Ex: o pai deseja a guarda unilateral e a mãe também; nenhum dos dois quer a guarda compartilhada; mesmo assim, o juiz pode determinar esta espécie de guarda?
SIM. A implementação da  guarda  compartilhada não se sujeita à transigência dos genitores. Em outras palavras, a guarda compartilhada é a regra, independentemente de concordância entre os genitores acerca de sua necessidade ou oportunidade (STJ. 3ª Turma. REsp 1605477/RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/06/2016.

O § 2º do art. 1.584 afirma que “encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar”, será aplicada a guarda compartilhada. O que significa essa expressão: “genitores aptos a exercer o poder familiar”? Quando o genitor não estará apto a exercer o poder familiar?
Ainda não há uma posição tranquila sobre o tema. No entanto, segundo a Min. Nancy Andrighi, o genitor somente pode ser considerado inapto para exercer o poder familiar se, antes da ação onde se discute a guarda, tiver havido uma decisão judicial determinando a suspensão ou a perda do poder familiar. Veja:
A guarda compartilhada somente deixará de ser aplicada quando houver inaptidão de um dos ascendentes para o exercício do poder familiar, fato que deverá ser declarado, prévia ou incidentalmente à ação de guarda, por meio de decisão judicial.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.629.994-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/12/2016 (Info 595).

Assim, para a Ministra, a guarda compartilhada somente não será aplicada em dois casos:
1) se o genitor declarar que não deseja a guarda do menor;
2) se houver uma decisão judicial suspendendo ou determinando a perda do poder familiar do genitor (inaptidão para o exercício do poder familiar).

Nas palavras da Ministra, “um ascendente só poderá perder ou ter suspenso o seu poder/dever consubstanciado no poder familiar por meio de uma decisão judicial e, só a partir dessa decisão, perderá a condição essencial para lutar pela guarda compartilhada da prole, pois deixará de ter aptidão para exercer o poder familiar." (REsp 1629994).

O § 2º do art. 1.584 somente admite duas exceções em que não será aplicada a guarda compartilhada. A interpretação desse dispositivo pode ser relativizada? É possível afastar a guarda compartilhada com base em peculiaridades do caso concreto mesmo que não previstas no § 2º do art. 1.584 do CC?
O STJ está dividido, havendo decisões em ambos os sentidos:
1ª) NÃO. Pela redação do art. 1.584 do CC, a guarda compartilhada apresenta força vinculante, devendo ser obrigatoriamente adotada, salvo se um dos genitores não estiver apto a exercer o poder familiar ou se um deles declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor. Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1626495/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/09/2016.

2ª) SIM. As peculiaridades do caso concreto podem servir como argumento para que não seja implementada a guarda  compartilhada. Ex: se houver dificuldades geográficas (pai mora em uma cidade e mãe em outra, distante). Isso porque deve-se atentar para o princípio do  melhor interesse  dos  menores. Assim, as partes poderão demonstrar a existência de impedimento insuperável ao exercício da guarda compartilhada, podendo o juiz aceitar mesmo que não expressamente previsto no art. 1.584, § 2º. A aplicação obrigatória da guarda compartilhada pode ser mitigada se ficar constatado que ela será prejudicial ao melhor interesse do menor. Nesse talante: STJ. 3ª Turma. REsp 1605477/RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/06/2016. Veja outro precedente sustentando essa interpretação relativizada:
(...) 1.  A  guarda  compartilhada  deve ser buscada no exercício do poder familiar   entre   pais   separados,   mesmo   que   demande   deles reestruturações, concessões e adequações diversas para que os filhos possam  usufruir,  durante a formação, do ideal psicológico de duplo referencial (precedente).
2.  Em  atenção  ao  melhor interesse do menor, mesmo na ausência de consenso dos pais, a guarda compartilhada deve ser aplicada, cabendo ao Judiciário a imposição das atribuições de cada um.
Contudo,  essa  regra  cede  quando  os  desentendimentos  dos  pais ultrapassarem  o  mero  dissenso,  podendo  resvalar,  em  razão  da imaturidade  de ambos e da atenção aos próprios interesses antes dos do  menor,  em  prejuízo  de sua formação e saudável desenvolvimento (art. 1.586 do CC/2002). (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1417868/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/05/2016.

Simples animosidade
Vale ressaltar, ainda, e isso pode ser cobrado em sua prova, que o STJ já decidiu que
A simples animosidade entre os genitores e suas diferenças de ponto de vista sobre a criação dos filhos não são impedimento para a fixação da guarda compartilhada.
STJ. 3ª Turma. REsp 1626495/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/09/2016.


OUTROS TEMAS
A guarda pode ser deferida para outra pessoa que não seja o pai ou a mãe?
SIM. Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade (§ 5º do art. 1.584).
O exemplo mais comum dessa situação é a guarda atribuída aos avós.

Dever de os estabelecimentos públicos e privados prestarem informações aos pais
Seja na guarda compartilhada, seja na guarda unilateral, tanto o pai como a mãe possuem o direito de acompanhar e fiscalizar a educação e saúde de seus filhos.
Pensando nisso, e a fim de evitar qualquer embaraço, o § 6º ao art. 1.584 do CC determinou que os estabelecimentos públicos e privados são obrigados a fornecer informações ao pai ou a mãe sobre a situação dos seus filhos. Veja:
§ 6º Qualquer estabelecimento público ou privado é obrigado a prestar informações a qualquer dos genitores sobre os filhos destes, sob pena de multa de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia pelo não atendimento da solicitação.

Essa regra vale mesmo que o pai (ou a mãe) que esteja requerendo a informação não detenha a guarda do filho. Ex: João e Maria divorciaram-se e a mãe ficou com a guarda exclusiva da criança; determinado dia, João foi até o colégio de sua filha para ter acesso às notas do boletim escolar, tendo a escola negado, afirmando que somente a mãe poderia obtê-lo. Esse estabelecimento de ensino poderá ser multado, na forma do § 6º do art. 1.584 do CC. O mesmo vale para um hospital, por exemplo.
A multa deve ser cobrada na via judicial, devendo o pai (ou a mãe) comprovar que fez a solicitação não atendida.

Descumprimento das regras

A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor (§ 4º do art. 1.584). Ex: ficou acertado que João tem o direito de ficar com sua filha todos os sábados, devendo entregá-la à mãe no domingo às 8h; ocorre que ele sempre leva a criança atrasado, chegando por volta das 12h; neste caso, a lei prevê a possibilidade de ele ter reduzido este direito.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Não cabe recurso especial contra decisão proferida em procedimento de dúvida registral



Imagine a seguinte situação hipotética:
João decidiu alienar seu imóvel para Pedro.
Para tanto, foram até um tabelionato de notas e ali foi lavrada uma escritura pública na qual João aliena o bem a Pedro. Isso, contudo, não é suficiente. Será necessário, ainda, fazer o registro desta escritura pública no Registro de Imóveis. Essa exigência está prevista no Código Civil:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
(...)

Em razão dessa necessidade de registro do título translativo, a doutrina afirma que o Brasil adotou o modelo romano de sistema registral. Segundo este sistema romano, o contrato de compra e venda, por si só, não transfere a propriedade da coisa. Ele apenas gera uma obrigação de que o vendedor faça a transferência.
Além de assinar o contrato, a efetiva transferência da propriedade ainda dependerá:
• No caso de bem móvel: da tradição (entrega).
• No caso de bem imóvel: do registro do título aquisitivo (contrato) no RI.

Voltando ao nosso exemplo:
De posse da escritura pública, Pedro (comprador) foi até o Registro de Imóveis solicitar o registro do título translativo.
Para que seja feito o registro de uma escritura pública de compra e venda são necessários diversos documentos.
O Oficial do Registro atendeu Pedro, examinou todos os papéis que ele levou, mas não fez o registro porque alegou que faltava mais um documento que seria necessário.
Pedro, que é advogado, não concordou com o documento exigido afirmando que ele não está previsto na legislação.

O que fazer diante desta situação de impasse?
O apresentante do título (no caso, Pedro) deverá requerer ao Oficial do Registro que ele suscite "dúvida" e encaminhe a questão para que o Juiz da Vara de Registros Públicos decida se a exigência é devida ou não.
Inicia-se, aqui, o chamado procedimento de dúvida.

O que é o procedimento de dúvida?
A dúvida é um procedimento administrativo iniciado pelo titular da serventia extrajudicial, a requerimento do apresentante, nas situações em que houver divergência sobre alguma exigência que seja feita pelo Oficial e com a qual o apresentante não concorde. Neste caso, esta discordância deverá ser encaminhada ao juiz competente (em regra, o Juiz da Vara de Registros Públicos) para que este decida sobre a legalidade da exigência que foi feita pelo titular como condição para o registro.
Vale ressaltar que as exigências do Oficial devem ser feitas por escrito. A isso chamamos de “nota de devolução”.

Quem suscita a dúvida?
O Oficial (Registrador). É ele quem suscita a dúvida (a requerimento do interessado).

Denominação
O termo "dúvida" é utilizado pela legislação. No entanto, vale ressaltar que dúvida, aqui, não está empregada no sentido de ignorância. Em outras palavras, o Oficial não suscita a dúvida porque ele não sabe o que fazer, ou seja, por estar em dúvida. Não é isso. Ele sabe o que fazer, exige determinado documento do apresentante, mas este não concorda. Daí se inicia o procedimento. Assim, a palavra "dúvida" é utilizada no sentido de "objeção, discordância, impugnação".

Procedimento:
Encontra-se previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73.
Se o Oficial entender que existe exigência a ser satisfeita, ele deverá indicá-la por escrito para que o apresentante atenda.
Caso o apresentante não se conforme com a exigência feita, ou se não puder atendê-la, ele poderá requerer que o título e a declaração de dúvida sejam remetidos ao juízo competente para dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte:
I - o Oficial anotará no Protocolo, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida;
Il - após certificar, no título, a prenotação e a suscitação da dúvida, o Oficial deverá rubricar todas as suas folhas;
III - em seguida, o Oficial:
• dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, ou seja, fornecerá a ele, por escrito, as razões pelas quais não aceitou fazer o registro; e
• notificará o apresentante para, no prazo de 15 dias, impugnar essas razões, ou seja, para apresentar os argumentos pelos quais não concorda com a exigência feita.

IV - certificado o cumprimento do disposto no item III, as razões da dúvida e o título deverão ser remetidos ao juízo competente, mediante carga.

Documentos que devem ser apresentados pelo Oficial ao juízo competente:
• Requerimento escrito da dúvida;
• Comprovante do protocolo (com prenotação vigente);
• Título original;
• Documentos que acompanham;
• Razões do Oficial;
• Nota devolutiva;
• Prova da intimação do interessado.

Caso o interessado não impugne a dúvida no prazo de 15 dias: não há problema
Art. 199. Se o interessado não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será ela, ainda assim, julgada por sentença.

Oitiva do MP (prazo: 10 dias)
Art. 200. Impugnada a dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério Público, no prazo de dez dias.

Diligências
Art. 201. Se não forem requeridas diligências, o juiz proferirá decisão no prazo de quinze dias, com base nos elementos constantes dos autos.

Produção de provas:
Não é possível a dilação probatória, pois se trata de procedimento especial e sumário (posição da maioria da doutrina).
Assim, o exame de questões mais complexas, que envolvam produção de provas deverá ser resolvida pela jurisdicional adequada.

É possível a intervenção de terceiros no procedimento de dúvida?
NÃO.

Não é cabível a intervenção de terceiros em procedimento de dúvida registral suscitada por Oficial de Registro de Imóveis (arts. 198 a 207 da Lei nº 6.015/73).
STJ. 4ª Turma. RMS 39.236-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 26/4/2016 (Info 582).

Não existe previsão legal para a intervenção de terceiros na dúvida, que possui, na verdade, natureza de procedimento administrativo (não jurisdicional), agindo o juiz singular ou o colegiado em atividade de controle da Administração Pública.
Poder-se-ia argumentar, entretanto, que casos existem em que a dúvida registral se reveste de caráter contencioso, em razão do nascimento de uma pretensão resistida e, portanto, de uma lide, o que conferiria, em tese, a possibilidade de intervenção de terceiros. Contudo, referida possibilidade só poderá ocorrer entre sujeitos que defendam interesses próprios, nunca podendo ser reconhecida entre o registrador e o apresentante do título a registro, pois o Oficial não é titular de interesse próprio, não sustentando pretensão alguma.

Sentença:
A dúvida é decidida por sentença, que deverá ser prolatada no prazo de 15 dias.
Apesar de o art. 202 da LRP utilizar o nome "sentença", a doutrina e a jurisprudência entendem que não se trata de uma sentença igual àquela prevista no art. 203, § 1º, do CPC/2015:
Art. 203 (...)
§ 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.

A sentença do procedimento de dúvida (art. 202 da LRP) é um ato decisório administrativo, que não se reveste das mesmas características da sentença judicial, não resultando de quaisquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487 do CPC/2015.

Juízo competente:
O juízo competente é previsto na Lei de Organização Judiciária.
Em geral, é o Juiz da Vara de Registros Públicos.
A doutrina aponta uma situação excepcional em que o procedimento de dúvida será decidido por um Juiz Federal. Trata-se da hipótese prevista na Lei nº 5.972/73, que regula o procedimento para o registro da propriedade de bens imóveis discriminados administrativamente ou possuídos pela União.

Resultado da sentença (art. 203):
Transitada em julgado a decisão da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo:
I - se for julgada PROCEDENTE (o Oficial tinha razão): não é efetuado o registro.
Os documentos são devolvidos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao Oficial, para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação.

II - se for julgada IMPROCEDENTE (o Oficial não tinha razão): é efetuado o registro.
O interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo.

Recurso cabível contra a sentença: APELAÇÃO.
Aqui também é importante esclarecer que esta "apelação" prevista no procedimento de dúvida não é igual à apelação do art. 1.009 do CPC/2015.
A apelação do procedimento de dúvida (art. 202 da LRP) tem natureza administrativa e a apelação do CPC é recurso judicial.

Quem julga apelação no procedimento de dúvida:
Depende da Lei de Organização Judiciária. Em regra é a Corregedoria Geral de Justiça.

Inexistência de coisa julgada
Qualquer que seja a decisão proferida no procedimento de dúvida, sobre ela não pesarão os efeitos da coisa julgada judicial. Isso significa dizer que a discussão pode ser reaberta no campo jurisdicional, por meio de um processo judicial.

É cabível RE ou Resp contra a decisão proferida na apelação do procedimento de dúvida?
NÃO, uma vez que o procedimento de dúvida reveste-se de caráter administrativo, conforme previsto no art. 204 da LRP:
Art. 204. A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.

O procedimento de dúvida consiste em atividade atípica desempenhada pelo Poder Judiciário, exercida em caráter correcional a fim de fazer o controle de legalidade dos atos praticados pelo delegatário da atividade estatal. Desse modo, não se pode dizer que no procedimento de dúvida ocorra a prestação jurisdicional stricto sensu.
O procedimento de dúvida ocorre porque a Constituição Federal determinou que o Poder Judiciário deve fazer a fiscalização dos serviços notariais e de registro (art. 236, § 1º, parte final). Ocorre que, no exercício dessa atividade, o julgador não desempenha sua função típica (a jurisdição), mas sim uma atividade meramente correcional. Na "dúvida", o magistrado não atua com a finalidade de solucionar litígios, tampouco de garantir a pacificação social. Seu objetivo ali é simplesmente o de verificar se estão sendo cumpridas as normas que disciplinam o sistema de registros públicos, visando a assegurar a "autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos" (LRP, art. 1º).
Vale ressaltar que não importa que o interessado não concorde com a posição do Oficial de Registro ou com a sentença proferida pelo magistrado. Mesmo assim o procedimento de dúvida continuará tendo natureza administrativa.
Assim, tratando-se de procedimento de inequívoca natureza administrativa, circunscrito à análise de questões formais do pedido de registro ou averbação a decisão que julga a dúvida não pode ser qualificada como "causa decidida em única ou última instância", que autoriza a interposição de recurso especial (art. 105, III, da CF/88). Quando o constituinte falou em "causa" no art. 105, III, ele quis restringir às decisões proferidas no exercício de atividade jurisdicional stricto sensu (processo judicial), não se admitindo a possibilidade de recurso especial (ou extraordinário) para se discutir um julgamento de conflito administrativo, ainda que tenha sido realizado por órgão colegiado formado por membros do Poder Judiciário.

Em suma:
Não cabe recurso especial contra decisão proferida em procedimento de dúvida registral, sendo irrelevantes a existência de litigiosidade ou o fato de o julgamento emanar de órgão do Poder Judiciário, em função atípica.
O procedimento de dúvida registral tem, por força de expressa previsão  legal, natureza administrativa (art.  204 da LRP), não se qualificando como prestação jurisdicional.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.570.655-GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 23/11/2016 (Info 595).



Dizer o Direito!