Dizer o Direito

sábado, 1 de outubro de 2016

Remissão prevista no ECA. Saiba mais



Imagine a seguinte situação hipotética:
Ricardo, adolescente de 17 anos, agrediu outro adolescente com socos e pontapés.
O Ministério Público ofereceu remissão pré-processual cumulada com medida socioeducativa de semiliberdade, como forma de exclusão do processo.

O que é remissão?
Remissão, no ECA, é o ato de perdoar o ato infracional praticado pelo adolescente e que irá gerar:
1) a exclusão;
2) a extinção; ou
3) a suspensão do processo, a depender da fase em que esteja.

A remissão não significa necessariamente que esteja se reconhecendo que o adolescente praticou aquela conduta nem serve para efeito de antecedentes.

Fundamento convencional
A remissão é um instituto recomendado pelas Nações Unidas em um documento internacional chamado de "Regras mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça da Infância e da Juventude" (Regras de Beijing).
Essa recomendação existe porque se entende que, sempre que possível, deve-se evitar que o adolescente seja submetido a uma ação socioeducativa na qual ele passaria pelo estigma de ter sido submetido a um processo judicial infracional.
Na versão original das Regras de Beijing, escrita em inglês, a expressão utilizada para o instituto foi "diversion" que acabou sendo traduzido como "remissão". A doutrina especializada, no entanto, critica esta tradução e afirma que remissão é chamada no inglês de "remission" (perdão). Logo, a tradução mais correta de "diversion" seria algo como "encaminhamento diferente do original". (ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente. Comentado artigo por artigo. 6. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 385).

A remissão está prevista na legislação brasileira?
SIM. A remissão está prevista nos arts. 126 a 128 e também no art. 188 do ECA. 

Características da remissão
a) A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade. em outras palavras, caso o adolescente aceite, isso não significa que ele estará reconhecendo que praticou ou que é "culpado" pelo ato infracional que lhe é imputado. A remissão é para evitar que o processo inicie ou continue;

b) A remissão não prevalece para efeito de antecedentes, ou seja, se o adolescente tiver sido beneficiado com uma, duas ou várias remissões, isso não significa "maus antecedentes" não podendo prejudicá-lo se vier a ser julgado em uma ação socioeducativa ou uma ação penal no futuro;

c) O adolescente que receber a remissão pode ser obrigado a cumprir qualquer medida socioeducativa, com exceção de duas: colocação em regime de semiliberdade e internação.

Espécies de remissão:

Remissão como forma de
EXCLUSÃO do processo
Remissão como forma de
SUSPENSÃO ou EXTINÇÃO do processo
É pré-processual (antes do processo iniciar).
É processual, ou seja, depois que a ação socioeducativa foi proposta.
Concedida pelo MP.
Concedida a remissão pelo representante do MP os autos serão conclusos ao juiz para homologar ou não (art. 181 do ECA).
Concedida pelo juiz.
O Ministério Público deverá ser ouvido, mas sua opinião não é vinculante. Quem decide se concede ou não a remissão é o magistrado.
Também chamada de remissão ministerial.
Também chamada de remissão judicial.
Prevista no art. 126, caput, do ECA:
Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.
Prevista no art. 126, parágrafo único, do ECA:
Art. 126 (...)
Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Remissão como própria e imprópria
A remissão pode ser classificada em:

PRÓPRIA
IMPRÓPRIA
Ocorre quando é concedido perdão puro e simples ao adolescente, sem qualquer imposição.
Ocorre quando é concedido o perdão ao adolescente, mas com a imposição de que ele cumpra alguma medida socioeducativa, desde que esta não seja restritiva de liberdade.
A doutrina afirma que, neste caso, não é necessário o consentimento do adolescente nem a presença de advogado.
É indispensável o consentimento do adolescente e de seu responsável, além da assistência jurídica de um advogado ou Defensor Público.

Vale ressaltar mais uma vez que não é possível a aplicação de remissão imprópria pelo MP sem que haja homologação judicial. Isso restou consignado em uma súmula editada pelo STJ:
Súmula 108-STJ: A aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz.

Ao oferecer proposta de remissão, o MP pode incluir a obrigação de que o adolescente cumpra alguma medida socioeducativa?
SIM. Na proposta, o MP poderá exigir que o adolescente cumpra uma medida socioeducativa, desde que não seja semiliberdade ou internação. Dessa forma, é plenamente possível a remissão ministerial imprópria. Essa possibilidade encontra-se disciplinada no art. 127 do ECA:
Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

A remissão ministerial (pré-processual) imprópria é compatível com a CF/88?
SIM. Existe precedente do STF neste sentido:
(...) 3. A remissão pré-processual concedida pelo Ministério Público, antes mesmo de se iniciar o procedimento no qual seria apurada a responsabilidade, não é incompatível com a imposição de medida sócio-educativa de advertência, porquanto não possui esta caráter de penalidade. Ademais, a imposição de tal medida não prevalece para fins de antecedentes e não pressupõe a apuração de responsabilidade. (...)
STF. 2ª Turma. RE 248018, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 06/05/2008.

Voltando ao caso concreto:
A proposta, oferecida pelo Ministério Público, foi aceita pelo adolescente, por sua genitora e pelo advogado que os acompanhava, os quais assinaram o termo do acordo e solicitaram, juntamente com o Parquet, a homologação judicial.
O juiz, no momento da homologação, discordou da cumulação pretendida e a decotou.
Em outras palavras, o magistrado excluiu a obrigação do adolescente de cumprir a medida socioeducativa alegando que esta violava a parte final do art. 127 do ECA  e homologou a remissão pura e simples.

Em nosso exemplo hipotético, a remissão concedida pelo MP foi correta?
NÃO. Isso porque, conforme vimos acima, na remissão, o Promotor de Justiça não poderá exigir que o adolescente cumpra medida socioeducativa em regime de semiliberdade ou internação (art. 127 do ECA).

Então o magistrado agiu corretamente?
Também NÃO.

Se o representante do Ministério Público ofereceu a adolescente remissão pré-processual (art. 126, caput, do ECA) cumulada com medida socioeducativa e o juiz discordou dessa cumulação, ele não pode excluir do acordo a aplicação da medida socioeducativa e homologar apenas a remissão.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.392.888-MS, Rel. Min. Rogerio Schietti, julgado em 30/6/2016 (Info 587).

Remissão pré-processual é atribuição do MP
A remissão pré-processual é atribuição legítima do Ministério Público, como titular da representação por ato infracional e diverge daquela prevista no art. 126, parágrafo único, do ECA, dispositivo legal que prevê a concessão da remissão pelo juiz, depois de iniciado o procedimento, como forma de suspensão ou de extinção do processo.
O juiz não era parte do acordo e não poderia oferecer ou alterar a remissão, como forma de exclusão do processo, pois a titularidade da representação por ato infracional pertence, com exclusividade, ao Ministério Público, a quem é facultado formular o perdão administrativo, por razões de conveniência e política de proteção às crianças e aos adolescentes.

O que o juiz deveria ter feito por discordar da proposta?
Se o juiz discordou da proposta, deveria ter remetido os autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante despacho fundamentado, e este teria as seguintes opções:
a) poderia oferecer a representação;
b) designar outro membro do Ministério Público para apresentá-la; ou
c) ratificar o arquivamento ou a remissão, hipótese na qual o juiz estaria obrigado a homologar.

Esse é o texto do § 2º do art. 181 do ECA:
§ 2º Discordando, a autoridade judiciária fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante despacho fundamentado, e este oferecerá representação, designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la, ou ratificará o arquivamento ou a remissão, que só então estará a autoridade judiciária obrigada a homologar.

Apenas a eficácia da remissão depende da homologação judicial. Se a autoridade judiciária discorda, ainda que parcialmente, dos termos do perdão, por entender que a cumulação é inconstitucional ou desnecessária, não pode adequar o acordo de vontades, já assinado pelo adolescente e por sua genitora, em supressão à competência do Ministério Público, pois nem sequer houve a instauração de procedimento judicial.
Assim, havendo discordância, total ou parcial, da remissão, deve ser observado o rito do art. 181, § 2º do ECA, sob pena de suprimir do órgão ministerial, titular da representação por ato infracional, a atribuição de conceder o perdão administrativo como forma de exclusão do processo, faculdade a ele conferida legitimamente pelo art. 126 do ECA.




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