Vaquejada
A vaquejada é uma prática
cultural comum nos Estados do nordeste do Brasil, em especial no Ceará, no Rio
Grande do Norte, na Paraíba, em Alagoas e na Bahia.
Na vaquejada, dois vaqueiros, cada
um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e, após emparelhá-lo com os
cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão derrubar o
boi puxando-o pelo rabo.
Se o boi, quando foi derrubado,
ficou, ainda que por alguns instantes, com as quatro patas para cima antes de
se levantar, o juiz declara ao público “Valeu boi!” e a dupla recebe os pontos.
Se o boi caiu, mas não ficou com
as patas para cima, o juiz anuncia “Zero!”, e a dupla não pontua.
Algumas regras mudam de acordo
com a organização do evento, mas, em regra, cada dupla enfrenta cinco bois. O
primeiro vale 8 pontos, o segundo 9 pontos, o terceiro 10 pontos, o quarto 11 e
o quinto 12, totalizando 50 pontos.
Críticas e defensores
As associações protetoras dos
animais criticam bastante as vaquejadas, alegando que os bois e cavalos
envolvidos sofrem maus tratos e que, com frequência, ficam com sequelas decorrentes
das agressões e do estresse que passam.
Os defensores da atividade, por
sua vez, alegam que os animais não sofrem maus tratos e que esta prática é
centenária, fazendo parte do patrimônio cultural do povo nordestino. Além
disso, argumentam que se trata de um esporte e que os eventos geram inúmeros
empregos e renda para aquela região do país.
Lei 15.299/2013
O Ceará editou a Lei nº
15.299/2013, regulamentando a atividade de “vaquejada” no Estado. A norma fixou
os critérios para a competição e obrigou os organizadores a adotarem medidas de
segurança para os vaqueiros, público e animais.
O Procurador-Geral da República,
no entanto, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a lei.
Segundo a ação, com a
profissionalização da vaquejada, algumas práticas passaram a ser adotadas, como
o enclausuramento dos animais antes de
serem lançados à pista, momento em que são açoitados e instigados para que
entrem agitados na arena quando da abertura do portão. Tais práticas acarretam
danos e constituem crueldade contra os animais, o que é vedado pelo art. 225, §
1º, VII, da CF/88:
Art. 225. Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras
gerações.
§ 1º Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
O pedido do PGR foi acolhido pelo
STF? A vaquejada foi considerada uma prática contrária à CF?
SIM.
Conflito de normas
constitucionais sobre direitos fundamentais
O caso em tela revela um conflito
de normas constitucionais sobre direitos fundamentais:
• De um lado, a CF/88 proíbe as
práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII);
• De outro, o texto
constitucional garante o pleno exercício dos direitos culturais, das
manifestações culturais e determina que o Estado proteja as manifestações das
culturas populares (art. 215, caput e § 1º).
Direito fundamental de terceira geração
O art. 225 da CF/88 consagra a
proteção da fauna e da flora como modo de assegurar o direito ao meio ambiente
sadio e equilibrado. É, portanto, direito fundamental de terceira geração,
fundado na solidariedade, de caráter coletivo ou difuso, dotado de "altíssimo
teor de humanismo e universalidade" (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2001, p. 523).
A manutenção do ecossistema é um dever
de todos em benefício das gerações do presente e do futuro.
Nas questões ambientais, o
indivíduo é considerado titular do direito e, ao mesmo tempo, destinatário dos
deveres de proteção. Daí porque a
doutrina fala que existe um verdadeiro “direito-dever” fundamental.
Laudos técnicos comprovaram
consequências nocivas aos animais
O PGR juntou aos autos laudos
técnicos que comprovam que as vaquejadas provocam consequências nocivas à saúde
dos bovinos, tais como fraturas nas patas, ruptura dos ligamentos e dos vasos
sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo e até seu
arrancamento, das quais resultam comprometimento da medula espinhal e dos
nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental.
Diante desses dados, o STF
concluiu que é indiscutível que os animais envolvidos sofrem tratamento cruel,
o que contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
Proibição da crueldade prevalece
sobre a proteção cultural
O STF entendeu que a crueldade provocada
pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma atividade cultural, não
possa ser permitida.
A expressão “crueldade”,
constante da parte final do inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, engloba a
tortura e os maus-tratos sofridos pelos bovinos durante a prática da vaquejada,
de modo a tornar intolerável esta conduta que havia sido autorizada pela norma
estadual impugnada.
Assim, mesmo reconhecendo a importância
da vaquejada como manifestação cultural regional, esse fator não torna a
atividade imune aos outros valores constitucionais, em especial à proteção ao
meio ambiente.
Resultado
O placar foi bastante apertado
(6x5):
• Inconstitucionalidade da lei:
Ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski,
Celso de Mello e Cármen Lúcia.
• Constitucionalidade da lei
(vencidos): Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Luiz Fux, Dias Toffoli e
Gilmar Mendes.
Outros casos na jurisprudência do
STF em que houve a tensão meio ambiente x manifestação cultural
Caso "Farra do Boi":
Pretendia-se a proibição, no
Estado de Santa Catarina, da denominada “Festa da Farra do Boi”.
Aqueles que defenderam a
manutenção afirmaram ser uma manifestação popular, de caráter cultural,
entranhada na sociedade daquela região.
Os que a impugnaram anotaram a
crueldade intrínseca exercida contra os animais bovinos, que eram tratados “sob
vara” durante o “espetáculo”.
O STF declarou a prática inconstitucional:
A obrigação de o Estado
garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a
valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da
norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática
que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da
norma constitucional denominado "farra do boi".
STF. 2ª Turma. RE 153531, Relator(a)
p/ Acórdão Min. Marco Aurélio, julgado em 03/06/1997.
"Briga de galo":
O STF já declarou inconstitucionais
algumas leis estaduais que buscavam regulamentar o costume popular denominado
“briga de galos”.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO
NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E
A REALIZAÇÃO DE "BRIGAS DE GALO".
A sujeição da vida animal
a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil.
Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado
procedente.
STF. Plenário. ADI 2514, Rel.
Min. Eros Grau, julgado em 29/06/2005.
A promoção de briga de
galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação
ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda
a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à
semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles
qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente
folclórico. Precedentes.
- A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os
animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos
os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em
cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. (...)
STF. ADI 1856, Rel. Min. Celso
de Mello, julgado em 26/05/2011.
Projeto de lei federal
Vale ressaltar que tramita no
Congresso Nacional um projeto de lei federal (Projeto de Lei 377/2016) com o
objetivo de regulamentar, em nível nacional, a atividade da vaquejada.
Depois da decisão do STF, a
tramitação desta proposta ganhou novamente força porque se entende que seria
uma forma de liberar a prática em todo o Brasil.
Parece, contudo, que a tentativa
será inócua. Isso porque o STF declarou a lei do Estado do Ceará
inconstitucional não pelo fato de ela ser uma lei estadual, mas sim porque o
Tribunal entendeu que a prática da vaquejada viola o art. 225, § 1º, VII, da
CF/88. Assim, salvo se algum Ministro mudar de opinião, tenho a impressão de
que uma lei federal regulamentando esta prática também será declarada
inconstitucional.
Vamos acompanhar e qualquer
novidade você será avisado.