Imagine a seguinte situação adaptada:
Michael, cidadão irlandês, estava
sendo procurado pela Interpol por conta de crimes que teria praticado na
Irlanda, tendo sido preso no Brasil.
A Irlanda pediu a extradição de
Michael e, enquanto o STF não decide o pleito, ele segue preso.
Ocorre que Michael também está
sendo investigado por crimes que teria cometido em Portugal.
Diante disso, o Ministério
Público português enviou à Procuradoria-Geral da República no Brasil um pedido
de cooperação jurídica internacional solicitando que Michael seja ouvido aqui a
respeito desses fatos e seu depoimento seja enviado a Portugal.
O pedido feito pelo Ministério
Público português ao Ministério Público federal brasileiro foi realizado com
base em um tratado bilateral de cooperação jurídica internacional existente
entre Brasil e Portugal.
Este pedido formulado é o mesmo
que uma carta rogatória? O que Portugal enviou ao Brasil foi uma carta
rogatória?
NÃO. No caso concreto, o que
Portugal fez foi um pedido de auxílio direto, que é uma forma de cooperação
jurídica internacional diferente da carta rogatória.
A
oitiva de estrangeiro, preso por ordem do STF em processo de extradição,
enquadra-se como providência a ser cumprida por meio de auxílio direto.
STF. 1ª Turma. Pet 5946/DF, rel.
orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em
16/8/2016 (Info 835).
O auxílio direto consiste na
obtenção de providências em jurisdição estrangeira, de acordo com a legislação
do Estado requerido, por meio de autoridades centrais indicadas em tratado
internacional. No auxílio direto, ao contrário da carta rogatória, não é necessário
prévio juízo de delibação a ser proferido pelo STJ. Em outras palavras, não é necessário
exequatur.
O
pedido feito pelo Ministério Público português não se destina à execução de
decisão estrangeira no Brasil, ou seja, não haverá produção de efeitos
jurídicos no país. Cuida-se apenas de oitiva destinada a instruir persecução
penal em curso em Portugal, não havendo necessidade de concessão de exequatur ao pleito.
Não há, nesta situação, a obrigatoriedade
de a medida requerida ser cumprida no Brasil por meio de carta rogatória, sendo
suficiente o auxílio direto (arts. 28 a 34 do CPC), medida simplificada de cooperação
internacional.
Cooperação jurídica internacional
Cooperação jurídica internacional
"é o meio pelo qual os entes estatais se articulam para colaborar com a solução
de processos judiciais que correm em outros Estados" (PORTELA, Paulo Henrique
Gonçalves. Direito Internacional Público e
Privado. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 699).
Existem diversos instrumentos de cooperação
jurídica internacional, podendo ser destacados os seguintes:
a) auxílio direto;
b) carta rogatória;
c) cooperação por meio de tratados
específicos (ex: sequestro internacional de crianças);
d) homologação de sentença
estrangeira;
e) extradição.
Dessa forma, cooperação jurídica internacional
é um gênero e o auxílio direto uma de suas espécies.
Veja como o tema foi cobrado em prova:
(PFN 2012 ESAF) No Brasil, os
instrumentos de cooperação jurídica internacional são o auxílio direto, a
homologação de sentença estrangeira, a carta rogatória e a extradição (mesmo
que estes não estejam todos previstos na Constituição da República Federativa
do Brasil). (CERTO)
Para que serve a cooperação
jurídica internacional? Que tipo de cooperação o Brasil pode fornecer a um país
estrangeiro e vice-versa?
A cooperação jurídica
internacional pode ter por objeto:
I - citação, intimação e
notificação judicial e extrajudicial;
II - colheita de provas e
obtenção de informações;
III - homologação e cumprimento
de decisão;
IV - concessão de medida judicial
de urgência;
V - assistência jurídica
internacional;
VI - qualquer outra medida
judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.
Regras
As regras da cooperação jurídica
internacional são previstas no tratado que o Brasil celebra (art. 26, caput, do
CPC). Ex: tratado bilateral Brasil-Portugal.
Se não houver tratado, a
cooperação jurídica internacional deverá ser realizada com base na
reciprocidade, manifestada por via diplomática (art. 26, § 1º, do CPC). Em
outras palavras, as autoridades diplomáticas brasileiras entram em contato com
as autoridades diplomáticas estrangeiras e combinam que, mesmo sem tratado,
será assegurado igual tratamento para o Brasil caso um dia venhamos a
necessitar de auxílio daquele país para a prática de atos processuais.
Obs1: para que uma sentença
estrangeira seja homologada em nosso país não se exige tratado nem
reciprocidade (art. 26, § 2º, do CPC).
Obs2:
na cooperação jurídica internacional não será admitida a prática de atos que
contrariem ou que produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais
que regem o Estado brasileiro (art. 26, § 3º).
Obs3: o CPC trata sobre
cooperação jurídica internacional em seus arts. 26 a 41. Vale ressaltar que
tais disposições, apesar de estarem no CPC, podem ser utilizadas também no
processo penal (art. 3º do CPP).
Auxílio direto
O auxílio direto é uma forma de
cooperação jurídica internacional mais simplificada.
No auxílio direto, a providência
solicitada é cumprida no Brasil mesmo sem exequatur,
ou seja, de modo muito mais rápido.
O auxílio direto foi disciplinado
pelo art. 28 do CPC:
Art. 28. Cabe auxílio
direto quando a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade
jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil.
Normalmente, a possibilidade de o
Brasil conceder auxílio direto a determinado país está previsto em tratado internacional
com ele firmado. No entanto, mesmo que não haja, é possível esta forma de cooperação
com base no princípio da reciprocidade.
Veja como o tema já foi cobrado em
prova:
(Juiz Federal TRF2 2014) O
auxílio direto é espécie do gênero cooperação jurídica internacional e consiste
na assistência que a autoridade nacional presta à autoridade estrangeira
requerente por meio de um procedimento nacional. Como regra, deve estar
previsto em tratado internacional e prescinde da concessão de exequatur pelo
Superior Tribunal de Justiça. (CERTO)
Autoridade central
No auxílio direto, a autoridade
do país estrangeiro encaminha o pedido de cooperação para uma autoridade no
Brasil responsável por receber tais solicitações. Esta autoridade é chamada de
"autoridade central". Confira o que diz o CPC:
Art. 29. A solicitação de
auxílio direto será encaminhada pelo órgão estrangeiro interessado à autoridade
central, cabendo ao Estado requerente assegurar a autenticidade e a clareza do
pedido.
A autoridade central é, portanto,
o órgão responsável por receber e enviar os pedidos de cooperação jurídica internacional,
fazendo antes um juízo de admissibilidade quanto às formalidades. Tem também a função
de acompanhar os pedidos, zelando para que a cooperação seja realizada com êxito.
Normalmente, o tratado
internacional que é firmado pelo Brasil com o Estado estrangeiro já prevê quem
exercerá o papel de "autoridade central" em cada país. Algumas vezes,
a lei interna do país é quem define. Na ausência de designação específica, o Ministério
da Justiça é quem exercerá as funções de autoridade central em nosso país (art.
26, § 4º). No Ministério da Justiça existe um departamento apenas para cuidar da
cooperação jurídica internacional (DRCI), nos termos do Decreto nº 8.668/2016.
Além do Ministério da Justiça, alguns
outros tratados internacionais preveem como autoridades centrais no Brasil para
determinados casos: a Procuradoria-Geral da República e a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República.
Art. 31. A autoridade
central brasileira comunicar-se-á diretamente com suas congêneres e, se
necessário, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e pela
execução de pedidos de cooperação enviados e recebidos pelo Estado brasileiro,
respeitadas disposições específicas constantes de tratado.
Auxílio direto sem necessidade do
Poder Judiciário
Na maioria dos casos, a
providência requerida no auxílio direto pode ser cumprida no Brasil sem a
necessidade de provocação do Poder Judiciário. Nesta hipótese, a própria
autoridade central já toma as providências necessárias e remete o resultado
para a autoridade estrangeira. Nesse sentido:
Art. 32. No caso de auxílio direto para a prática de
atos que, segundo a lei brasileira, não necessitem de prestação jurisdicional,
a autoridade central adotará as providências necessárias para seu cumprimento.
Ex: a autoridade de um Estado
estrangeiro poderá requerer, por auxílio direto, informações a respeito dos
bens imóveis que estejam em nome de determinada pessoa no Brasil. Neste
exemplo, a autoridade central brasileira poderá obter tais informações no
cartório de Registro de Imóveis e remeter tais dados sem necessidade de
autorização ou qualquer outra medida do Poder Judiciário.
Auxílio direto e necessidade de prestação
jurisdicional
Pode acontecer, no entanto, que a
medida requerida no auxílio direto somente possa ser cumprida no Brasil se houver
intervenção judicial. Ex: ouvir um investigado que se encontra preso preventivamente.
Neste caso, recebido o pedido de
auxílio direto passivo do Estado estrangeiro, o Ministério da Justiça
encaminhará à Advocacia-Geral da União, que requererá em juízo a medida
solicitada (art. 30).
Se a autoridade central for o
Ministério Público, não há necessidade de assistência da AGU e o próprio
Parquet poderá requerer em juízo a medida solicitada pela autoridade
estrangeira.
Se houver necessidade de prestação
jurisdicional para cumprimento do auxílio direto, a competência para analisar e
executar esta medida será, em regra, da Justiça Federal de 1ª instância:
Art. 34. Compete ao juízo
federal do lugar em que deva ser executada a medida apreciar pedido de auxílio
direto passivo que demande prestação de atividade jurisdicional.
A competência é da Justiça Federal
com base em três incisos do art. 109, da CF/88:
Inciso I: considerando que a União
é interessada na condição de autora;
Inciso III: tendo em vista que o auxílio
direto é, normalmente, fundado em um tratado internacional;
Inciso X: uma vez que, quando este
inciso fala em "execução de carta rogatória", tal expressão deve abranger
também o cumprimento de auxílio direto, providência incomum na época da edição da
CF/88.
Finalidades do auxílio direto
Segundo o art. 30 do CPC, o
auxílio direto poderá ser utilizado para as seguintes finalidades:
I - obtenção e prestação de
informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais
findos ou em curso;
II - colheita de provas, salvo se
a medida for adotada em processo, em curso no estrangeiro, de competência
exclusiva de autoridade judiciária brasileira;
III - qualquer outra medida
judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.
Quadro-resumo com as diferenças entre
a carta rogatória e o auxílio direto:
Carta rogatória
|
Auxílio direto
|
Pedido
de cooperação judiciária formulado pela autoridade judiciária de um país para
a autoridade judiciária de outro.
|
Também
consiste em um pedido de cooperação judiciária, mas não necessariamente precisará
da participação do Poder Judiciário.
|
Para
que seja cumprida no Brasil, é necessário um prévio juízo de delibação feito pelo
STJ.
|
Não
existe esta necessidade.
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Será
executada pelo juiz federal após a concessão do exequatur pelo STJ.
|
Pode ser executada pelas autoridades administrativas de
nosso país, salvo se for necessária alguma medida judicial. Neste caso, a competência
para executar também será do juiz federal.
|
Voltando ao caso concreto, se a
medida solicitada fosse caso de carta rogatória:
Quando o Ministério Público
português formulou o pedido para ouvir Michael, surgiu a dúvida se isso seria
uma providência a ser cumprida no Brasil por meio de carta rogatória ou auxílio
direto.
Se fosse carta rogatória, seria
necessário encaminhar o pedido ao STJ para que ele concedesse o exequatur, ou
seja, o "cumpra-se", depois de analisar que os requisitos formais
foram preenchidos. Assim, somente poderia ser ouvido o investigado depois de o
STJ autorizar o cumprimento da carta. Esta competência está prevista no art.
105, I, "i", da CF/88:
Art. 105. Compete ao
Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar,
originariamente:
(...)
i) a homologação de
sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;
Depois de o STJ conceder o
exequatur, quem iria cumprir a carta rogatória, ou seja, quem iria ouvir o
investigado seria um juiz federal de 1ª instância, conforme determina o art. 109,
X, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes
federais compete processar e julgar:
(...)
X - os crimes de ingresso
ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de
carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença
estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade,
inclusive a respectiva opção, e à naturalização;
Veja como o tema já foi cobrado em
prova:
(Juiz Federal TRF2 2014) Concedido
o exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça, a Carta Rogatória será cumprida
por juiz federal de primeiro grau, independentemente da matéria de que cuide. (CERTO)
No entanto, não era hipótese de
carta rogatória, mas sim de auxílio direto...
No caso de carta rogatória, é
indispensável a intervenção judicial por meio da concessão do exequatur (STJ) e
da execução da carta (juiz federal).
No caso de auxílio direto, conforme
já vimos, nem sempre será necessária a intervenção judicial.
No exemplo dado, era necessária a
intervenção judicial porque Michael encontrava-se preso para fins de extradição,
ou seja, ele se encontrava preso por força de decisão judicial, não se podendo interrogá-lo
sem autorização da autoridade judicial responsável pela prisão.
O pedido do Ministério Público português
foi recebido pelo Ministério Público federal brasileiro (autoridade central).
O MPF quer cumprir o auxílio direto,
mas necessita de autorização judicial para a oitiva do preso.
De quem é a competência, no caso concreto,
para autorizar este auxílio direto?
STF.
Compete
ao STF apreciar o pedido de cooperação jurídica internacional na hipótese em
que solicitada, via auxílio direto, a oitiva de estrangeiro custodiado no
Brasil por força de decisão exarada em processo de extradição.
STF. 1ª Turma. Pet 5946/DF, rel.
orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em
16/8/2016 (Info 835).