Imagine a seguinte situação
hipotética:
João prestou concurso para
soldado da Polícia Militar.
O edital do certame previa
restrições para candidatos que possuem tatuagens.
Segundo
o edital, seriam excluídos do concurso candidatos que possuíssem tatuagens
localizadas em regiões do corpo que ficassem visíveis quando o indivíduo
estivesse usando short e camisa (ex: antebraço).
João
foi aprovado em todas as fases, mas eliminado do concurso porque possui uma tatuagem
tribal, medindo 14 por 13 cm na panturrilha.
É possível que o edital do
concurso preveja a eliminação do candidato pelo simples fato de ter uma
tatuagem? Essa previsão é válida?
• Regra: NÃO. Em regra, os
editais de concurso não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem.
• Exceção: é possível que o
edital imponha restrições a candidatos que possuam tatuagens cujo conteúdo
viole valores constitucionais.
O STF, ao analisar o tema em sede
de repercussão geral, fixou a seguinte tese:
Editais
de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem,
salvo situações excepcionais em razão de conteúdo que viole valores
constitucionais.
STF. Plenário. RE 898450/SP, Rel.
Min. Luiz Fux, julgado em 17/8/2016 (repercussão geral) (Info 835).
Restrições a cargos públicos
somente podem estar relacionadas com o exercício das funções
Qualquer obstáculo a acesso a
cargo público deve estar relacionado unicamente ao exercício das funções como,
por exemplo, idade ou altura que impossibilitem o exercício de funções
específicas.
A criação de barreiras
arbitrárias para impedir o acesso de candidatos a cargos públicos fere os
princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade.
No passado a tatuagem foi
associada a setores marginais da sociedade
A tatuagem, no passado,
especialmente durante o século XIX, era uma prática associada a determinados
grupos sociais que viviam à margem da sociedade, sendo conhecida como
"flor do presídio".
Desse modo, durante muitos anos,
no imaginário social, a tatuagem foi vista como marca da marginalidade e da
delinquência.
Segundo os sociólogos, no
entanto, o sentido estigmatizador do uso da tatuagem começou a mudar a partir
da década de 80.
Tatuagem é forma de liberdade de
manifestação
O certo é que, atualmente, a
tatuagem, por si só, não pode ser confundida como uma transgressão ou conduta
atentatória aos bons costumes.
Não há qualquer ligação objetiva
e direta entre o fato de um cidadão possuir tatuagens em seu corpo e uma
suposta conduta atentatória à moral, aos bons costumes ou ao ordenamento
jurídico.
A decisão do indivíduo fazer uma
tatuagem está diretamente relacionada com a sua liberdade de pensamento e de
expressão (art. 5º, IV e IX, da CF/88).
Restringir o acesso de candidato
tatuado é forma de discriminação arbitrária
Não é razoável restringir o
acesso do candidato a uma função pública pelo simples fato de possuir tatuagem.
Esta restrição é flagrantemente discriminatória e carente de qualquer
justificativa racional que a ampare.
O fato de uma pessoa possuir
tatuagens, visíveis ou não, não pode ser tratado pelo Estado como parâmetro
discriminatório quando do deferimento de participação em concursos de provas e
títulos para ingresso em carreira pública. Isso porque o fato de o candidato
possuir tatuagem não macula, por si, sua honra pessoal, o profissionalismo, o
respeito às Instituições e, muito menos, lhe diminui a competência.
O respeito à democracia não se dá
apenas na realização de eleições livres, mas também quando se permite aos
cidadãos se manifestarem da forma que quiserem, desde que isso não represente
ofensa direta a grupos ou princípios e valores éticos.
O desejo de se expressar por meio
de pigmentação definitiva não pode ser obstáculo a que um cidadão exerça cargo
público. Um policial não se torna melhor ou pior em suas funções apenas por ter
tatuagem.
O Estado não pode querer
representar o papel de adversário da liberdade de expressão, impedindo que
candidatos em concurso ostentem tatuagens ou marcas corporais que demonstrem
simpatia por ideais que não sejam ofensivos aos preceitos e valores protegidos
pela Constituição Federal.
Exceções
Vale ressaltar, entretanto, que é
possível que a Administração Pública impeça o acesso do candidato se a tatuagem
que ele possui tiver um conteúdo que viole os valores previstos na Constituição
Federal. É o caso, por exemplo, de tatuagens que contenham obscenidades,
ideologias terroristas, que sejam discriminatórias, que preguem a violência e a
criminalidade, a discriminação de raça, credo, sexo ou origem. Isso porque tais
temas são inegavelmente contrários às instituições democráticas. Se a
Administração proibir tatuagens como essa, não seria uma prática desarrazoada
ou desproporcional.
Previsão legal
Reputo importante mencionar que,
no âmbito das Forças Armadas, existem leis que tratam sobre o tema e que estão
em harmonia com o que decidiu o STF. Veja:
Lei nº 11.279/2006 (Marinha):
Art. 11-A. A matrícula nos
cursos que permitem o ingresso nas Carreiras da Marinha depende de aprovação
prévia em concurso público, atendidos os seguintes requisitos, dentre outros
estabelecidos, decorrentes da estrutura e dos princípios próprios dos
militares:
(...)
XII - não apresentar
tatuagem que, nos termos de detalhamento constante de normas do Comando da
Marinha, faça alusão a ideologia terrorista ou extremista contrária às
instituições democráticas, a violência, a criminalidade, a ideia ou ato
libidinoso, a discriminação ou preconceito de raça, credo, sexo ou origem ou,
ainda, a ideia ou ato ofensivo às Forças Armadas;
Lei nº 12.464/2011 (Aeronáutica):
Art. 20. Para o ingresso
na Aeronáutica e habilitação à matrícula em um dos cursos ou estágios da
Aeronáutica destinados à formação ou adaptação de oficiais e de praças, da
ativa e da reserva, o candidato deverá atender aos seguintes requisitos:
(...)
XVII - não apresentar
tatuagem no corpo com símbolo ou inscrição que afete a honra pessoal, o
pundonor militar ou o decoro exigido aos integrantes das Forças Armadas que
faça alusão a:
a) ideologia terrorista ou
extremista contrária às instituições democráticas ou que pregue a violência ou
a criminalidade;
b) discriminação ou
preconceito de raça, credo, sexo ou origem;
c) ideia ou ato
libidinoso; e
d) ideia ou ato ofensivo
às Forças Armadas ou à sociedade;
Lei nº 12.705/2012 (Exército):
Art. 2º A matrícula para o
ingresso nos cursos de formação de oficiais e sargentos de carreira do Exército
depende de aprovação prévia em concurso público, atendidos os seguintes
requisitos, dentre outros estabelecidos na legislação vigente:
(...)
VIII - não apresentar
tatuagens que, nos termos de detalhamento constante de normas do Comando do
Exército:
a) faça alusão a ideologia
terrorista ou extremista contrária às instituições democráticas, a violência, a
criminalidade, a ideia ou ato libidinoso, a discriminação ou preconceito de
raça, credo, sexo ou origem ou, ainda, a ideia ou ato ofensivo às Forças
Armadas;
Voltando ao exemplo dado:
No caso concreto, o STF
considerou que a conduta da Administração Pública de eliminar João não foi
correta porque a tatuagem tribal não se mostra contrária aos valores previstos
na Constituição Federal, sendo legítima manifestação de expressão do indivíduo.