FALSO QUE SE EXAURE NO DESCAMINHO E PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO
Imagine a seguinte situação hipotética:
Roberto efetuou a importação de uma
determinada mercadoria.
No momento do desembaraço aduaneiro,
Roberto, ardilosamente, apresentou declaração de que a mercadoria custava um
valor bem abaixo do seu preço real. Com isso, pagou um imposto de importação
inferior ao que seria devido.
Denúncia do MPF
Descoberta a fraude, o MPF denunciou
Roberto, narrando que este praticou subfaturamento com fins de iludir o
pagamento do imposto de importação, alterando a verdade sobre fato
juridicamente relevante e prejudicando direito do Fisco federal.
Na denúncia, o MPF imputou ao réu os
delitos de descaminho (art. 334 do CP) em concurso formal com a falsidade
ideológica (art. 299 do CP):
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte,
o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo
consumo de mercadoria.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos.
Art. 299. Omitir, em documento público
ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer
inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de
prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato
juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e
multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o
documento é particular.
A defesa argumentou que a falsidade
ideológica foi o meio para a prática do descaminho. Logo, estaria absorvida
pelo crime-fim.
O MPF, por sua vez, argumentou que não
é possível aplicar o princípio da consunção neste caso, considerando que a pena
da falsidade ideológica é de 1 a 5 anos enquanto que a pena do descaminho é de
1 a 4 anos. Logo, por ter uma pena maior, o delito de falsidade ideológica não
poderia ser absorvido pelo descaminho.
Qual das duas teses foi aceita pelo
STJ: a da defesa ou a do MPF? A falsidade ideológica fica absorvida pelo descaminho
mesmo tendo pena maior?
SIM. A tese acolhida foi a da defesa.
Se o agente altera a verdade sobre o
preço do produto com o fim exclusivo de iludir o pagamento de tributo devido
pela entrada de mercadoria no território nacional, deverá responder apenas pelo
crime de descaminho (e não por este em concurso com falsidade ideológica). Isso
porque, na situação em análise, a primeira conduta realizada pelo agente (art.
299 do CP) serve apenas como meio para alcançar o fim pretendido, qual seja, a
realização do fato previsto como crime no art. 334 do CP.
Nesse sentido:
(...) 1. Constatado que a falsidade
ideológica foi o meio pelo qual a ré buscou iludir o pagamento de tributos
incidentes nas importações, mostra-se patente a relação de causalidade com o
crime de descaminho, o que atrai a incidência da consunção.
2. A
jurisprudência desta Corte admite que um crime de maior gravidade, assim
considerado pela pena abstratamente cominada, pode ser absorvido, por força do
princípio da consunção, por um crime menos grave, quando, repita-se, utilizado
como mero instrumento para consecução de um objetivo final único. (...)
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp
100.322/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 25/02/2014.
Princípio da consunção
Trata-se, pois, de uma das hipóteses em
que se aplica o princípio da consunção, quando um crime é meio necessário ou
normal fase de preparação ou de execução de outro crime. Nesse contexto,
evidenciado o nexo entre as condutas e inexistindo dolo diverso que enseje a
punição do falso como crime autônomo, fica este absorvido pelo descaminho.
Aplica-se o mesmo raciocínio que
motivou a edição da súmula 17 do STJ (“Quando o falso se exaure no estelionato,
sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”).
Não importa que o crime-meio tenha pena
maior
Vale ressaltar que o princípio da
consunção pode ser aplicado mesmo que o crime a ser absorvido (crime-meio) seja
mais grave do que o crime-fim. O que importa é que o crime-meio tenha exaurido
a sua potencialidade lesiva, segundo se extrai da Súmula 17-STJ.
Assim, admite-se que uma infração penal
de maior gravidade (maior pena em abstrato), quando utilizado como simples
instrumento para a prática de delito menos grave (menor pena), seja por este
absorvido (STJ AgRg no REsp 1274707/PR).
O STJ decidiu agora o tema sob a
sistemática de recurso repetitivo e firmou a seguinte tese geral:
Quando
o falso se exaure no descaminho, sem mais potencialidade lesiva, é por este
absorvido, como crime-fim, condição que não se altera por ser menor a pena a
este cominada.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.378.053-PR,
Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 10/8/2016 (Info 587).
Pena-base poderá ser majorada
Importante mencionar que o juiz,
ao condenar o réu pelo crime-fim, poderá, na 1ª fase da dosimetria, aumentar a
pena-base, considerando que existe maior reprovabilidade na conduta de quem,
para praticar um delito, comete outro no meio do caminho. Assim, esse fato (ter
cometido um crime-meio) pode ser utilizado como circunstância judicial
negativa.
EXTINÇÃO DO CRIME-FIM E DESTINO DO CRIME-MEIO
Imagine agora a seguinte situação
hipotética:
João foi até o Paraguai de estrada e
ali comprou mercadoria estrangeira.
Ao entrar no Brasil, ele foi parado
pela Polícia Rodoviária Federal e, com o objetivo de enganar os policiais e não
pagar o imposto de importação, apresentou Declaração de Bagagem Acompanhada –
DBA, com selo de autenticação falso da Receita Federal.
Vale ressaltar que a DBA estava
preenchida com o dia exato, com o número de série do produto e em nome de João.
Descoberta a falsificação,
ele foi preso em flagrante, tendo recebido, posteriormente, liberdade
provisória.
Durante a
apuração, calculou-se que o total dos tributos federais e multa devidos por
João foi de R$ 900,00.
Após concluído, o inquérito foi
remetido ao MPF.
O Procurador da República fez o
seguinte:
a) Diante da pequena soma de tributos
iludidos, requereu o arquivamento do feito com relação ao delito de descaminho (art.
334 do CP), por aplicação do princípio da insignificância.
b) Em razão do uso de selo inautêntico,
ofereceu denúncia contra João pela prática do delito previsto no art. 293, §1º,
III, "a", do CP.
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte,
o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo
consumo de mercadoria.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos.
Art. 293 (...)
§ 1º Incorre na mesma pena quem:
(...)
III – importa, exporta, adquire, vende,
expõe à venda, mantém em depósito, guarda, troca, cede, empresta, fornece,
porta ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no
exercício de atividade comercial ou industrial, produto ou mercadoria:
a) em que tenha sido aplicado selo que
se destine a controle tributário, falsificado;
A denúncia deverá ser recebida pelo
Juiz Federal?
NÃO. O uso da Declaração de Bagagem
Acompanhada com selo falsificado tinha por finalidade única a prática do
descaminho. Aquela DBA com selo falsificado não poderia mais ser utilizada para
outra importação, considerando que estava identificada de forma específica para
aquele produto.
Assim, restou demonstrado que o crime
do art. 293, § 1º, III, "a", do CP foi o meio para a prática do
descaminho (art. 334) e que ali se esgotou a sua potencialidade lesiva.
Diante disso, constata-se que a conduta
descrita no art. 293, § 1º, III, "a", do CP foi absorvida pelo
crime-fim (descaminho).
Afastada a tipicidade do delito de
descaminho, não remanesce a persecução penal pelo crime-meio, quando este é
considerado antecedente lógico do crime de descaminho e não apresenta
potencialidade lesiva autônoma.
Como o crime-fim foi considerado
atípico, não há justa causa também para apuração do crime-meio.
Foi o que decidiu o STJ no REsp
1.378.053-PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 10/8/2016 (Info 587).