Dizer o Direito

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Militar do Exército que dispensa indevidamente licitação para contratar empresa de sua mulher comete crime de competência da Justiça Militar?



Imagine a seguinte situação hipotética:
João, sargento do Exército, contratou, sem licitação, empresa ligada à sua mulher para prestar manutenção na ambulância utilizada no Hospital militar.

Qual foi o crime praticado, em tese, por João?
O delito do art. 89 da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações):
Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

De quem é a competência para julgar esta conduta?
Justiça FEDERAL comum (não se trata de competência da Justiça Militar).

Compete à Justiça Comum Federal - e não à Justiça Militar - processar e julgar a suposta prática, por militar da ativa, de crime previsto apenas na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações), ainda que praticado contra a administração militar.
STJ. 3ª Seção. CC 146.388-RJ, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 22/6/2016 (Info 586).

Competências da Justiça Militar
Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares, assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969).
• No art. 9º do CPM são conceituados os crimes militares, em tempo de paz.
• No art. 10 do CPM são definidos os crimes militares em tempo de guerra.

Assim, para verificar se o fato pode ser considerado crime militar, sendo, portanto, de competência da Justiça Militar, é preciso que ele se amolde em uma das hipóteses previstas nos arts. 9º e 10 do CPM.

Crimes militares em tempo de paz (art. 9º)
Não estamos (felizmente) em "tempo de guerra". Portanto, a conduta de João não poderia ser enquadrada no art. 10. Vejamos agora se ela poderia se amoldar ao art. 9º:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Resumindo as hipóteses do art. 9º:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
Inciso I
Inciso II
Inciso III
Para se enquadrar no inciso I:
1) a conduta deve ser prevista como crime no CPM; e
2) não seja punida como crime na legislação penal comum ou, se for, que a redação dada ao delito na legislação penal comum seja diversa daquele conferida no CPM.
Ex: deserção (art. 187 do CPM) é punida apenas no CPM.
Ex2: uniforme privativo (art. 172) é punido com redação diversa na legislação penal comum.
Para se enquadrar no inciso II:
1) a conduta deve ser prevista como crime no CPM; e
2) deve ter sido praticada por um MILITAR em alguma das situações descritas nas letras "a" a "e" do inciso II.
Para se enquadrar no inciso III:
1) a conduta deve ser prevista como crime no CPM;
2) deve ter sido praticada em alguma das situações descritas nas letras "a" a "d" do inciso III;
3) a conduta praticada deve ter ofendido diretamente bens jurídicos tipicamente associados à função castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (este terceiro requisito é construído pelo STF).
O tipo de crime militar descrito no inciso I pode ser praticado:
a) por militar ou
b) por civil.
O tipo de crime militar descrito no inciso II somente pode ser praticado por militar. Por isso, é chamado de crime militar próprio puro (autenticamente militar).
O tipo de crime militar descrito no inciso III pode ser praticado por militar da reserva, reformado ou por civil.



Voltando ao exemplo dado:
João, militar da ativa, praticou uma conduta que não é prevista como crime no CPM
A conduta de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, prevista no art. 89 da Lei n.º 8.666/93, não encontra figura correlata no Código Penal Militar.
Assim, apesar de o crime ter sido praticado por militar (sargento do Exército), o caso não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 9º do CPM.
A competência da Justiça Militar não é firmada pela condição pessoal do infrator, mas decorre da natureza militar da infração. Logo, não se verificando crime militar por ausência de enquadramento nas hipóteses do art. 9º do CPM, não há que se falar em competência da Justiça Militar.

Não é possível enquadrar o caso no art. 9º, II, "e", do CPM?
Não. O crime licitatório não está previsto no Código Penal Militar, e, embora supostamente praticado por militar da ativa contra a administração militar, não encontra respaldo para se atribuir a competência para a Justiça Castrense, uma vez que o art. 9º, inciso II, alínea "e", exige que o crime esteja expressamente previsto no Código Penal Militar.
Também não se poderia aplicar o disposto no inciso III do art. 9º considerando que, no exemplo dado, o agente não é militar da reserva, reformado nem civil.

E por que a competência é da Justiça Federal comum?
Porque o crime foi cometido contra bem e serviço do Exército, que é um órgão da União. Logo, amolda-se na hipótese prevista no art. 109, IV, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV — os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;





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