Imagine a seguinte situação
hipotética:
A empresa "XX" é
administradora do shopping center
"Iguateré"
A loja "Moda Infantil"
está localizada dentro deste shopping.
Isso significa que a referida loja mantém um contrato de locação de espaço com
a empresa administradora do shopping.
Uma das cláusulas das normas
complementares do shopping prevê o
seguinte:
7.26. O LOCATÁRIO, ressalvado
estabelecimento já existente na data de assinatura deste contrato, não poderá
ter outro (sede, filial etc), dedicado ao mesmo ramo de atividade a ser por ele
exercida no ESPAÇO COMERCIAL objeto do contrato de locação e outras avenças,
localizado dentro de um raio de 3km (três quilômetros) contados do centro do
terreno do SHOPPING CENTER, salvo autorização prévia por escrito do LOCADOR.
Em outras palavras, esta cláusula
proíbe que a locatária (em nosso exemplo, a "Moda Infantil") possua
outra loja a menos de 3km do shopping.
Como é chamada esta cláusula na
prática comercial?
Cláusula de raio. A cláusula de
raio surgiu nos EUA e se popularizou com a expansão dos shopping centers. Segundo esta cláusula "o locatário de um
espaço comercial se obriga, perante o locador, a não exercer atividade similar
à praticada no imóvel objeto da locação em outro estabelecimento situado a um
determinado raio de distância daquele imóvel" (Min. Marco Buzzi).
Esta cláusula é válida?
SIM.
Em
tese, não é abusiva a previsão, em normas gerais de empreendimento de shopping center ("estatuto"),
da denominada "cláusula de raio", segundo a qual o locatário de um
espaço comercial se obriga - perante o locador - a não exercer atividade
similar à praticada no imóvel objeto da locação em outro estabelecimento
situado a um determinado raio de distância contado a partir de certo ponto do
terreno do shopping center.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.535.727-RS,
Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/5/2016 (Info 585).
Controle judicial sobre cláusulas
empresariais é restrito
O shopping center constitui uma estrutura comercial híbrida e
peculiar e o contrato firmado com os locatários possui diversas cláusulas
extravagantes que têm como objetivo fazer com que o negócio tenha o retorno
econômico planejado, além de fazer com que se mantenha como centro comercial
atrativo aos consumidores. Assim, para o sucesso e viabilização
econômica/administrativa do shopping
center, os comerciantes interessados aceitam se vincular a uma modalidade
específica de contratação, não podendo alegar que tais cláusulas são abusivas.
Vale lembrar que o controle
judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos de cunho empresarial deve ser restrito, porque aqui
vigora o princípio da autonomia privada, da livre iniciativa, do pacta sunt servanda, da função social da
empresa e da livre concorrência de mercado.
Não se trata de mero contrato de
adesão
Os ajustes locatícios,
notadamente aqueles firmados para locação de espaço em shopping center, não
constituem mero contratos de adesão,
pois são de livre
estipulação/comutativo entre os contratantes,
sem a preponderância de um sobre outro. Assim, tanto o locador como o
locatário estão livres para pactuarem as cláusulas contratuais que melhor
assistam às suas necessidades.
Não há prejuízo aos consumidores
A "cláusula de raio"
não prejudica os consumidores. O simples fato de o consumidor não encontrar em
todos os shopping centers que
frequenta determinadas lojas não implica efetivo prejuízo a ele, pois a
instalação dos lojistas em tais ou quais empreendimentos depende,
categoricamente, de inúmeros fatores. De fato, a lógica por detrás do
empreendimento se sobrepõe à pretensão comum do cidadão de objetivar encontrar,
no mesmo espaço, todas as facilidades e variedades pelo menor preço e
distância.
Direito de propriedade
Ademais, nos termos do
ordenamento jurídico pátrio, ao proprietário de qualquer bem móvel ou imóvel -
e aqui se inclui o(s) dono(s) de shopping center - é assegurado o direito de
usar, gozar e dispor de seus bens e, ainda, de reavê-los do poder de quem
injustamente os possua. Denota-se que, para o exercício desses atributos
inerentes à propriedade, principalmente a permissão do uso por terceiros, pode
o proprietário impor limites e delimitar o modo pelo qual essa utilização
deverá ser realizada. Assim, diversas são as restrições que pode o dono impor
aos usuários do estabelecimento (vestimentas, ingresso com animais, horário de
funcionamento, entre outros) e, como já mencionado antecedentemente, inúmeras
são as cláusulas contratuais passíveis de inserção nos contratos de locação
atinentes aos centros comerciais híbridos, sem que se possa afirmar, genérica e
categoricamente, sejam elas abusivas ou ilegais, uma vez que, em última análise,
visam garantir a própria viabilidade do uso, a implementação do empreendimento
e, pois, o alcance e incremento real da função social da propriedade.
Conquista de mercado
Além
do mais, o fato de shopping center
exercer posição relevante no perímetro estabelecido pela "cláusula de
raio" não significa que esteja infringindo os princípios da ordem
econômica estampados na CF/88, visto que inserções de "cláusulas de
raio" em determinados contratos de locação são realizadas com o propósito
de servir à logística do empreendimento. Aliás, a conquista de mercado
resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico
em relação a seus competidores não caracteriza ilícito, tanto que prevista como
excludente de infração da ordem econômica (§ 1º do art. 36 da Lei nº 12.529/2011).
Pode-se dizer que a cláusula de
raio é proibida pela Súmula 646 do STF ("Ofende o princípio da livre
concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos
comerciais do mesmo ramo em determinada área")?
NÃO. A Súmula 646 do STF não diz
respeito às cláusulas contratuais estabelecidas em pactos firmados entre
locador e locatário. Ela se refere apenas a leis municipais, ou seja, a
situações em que o próprio poder público impede e inviabiliza a implementação
do princípio da livre concorrência. O enunciado não tem relação, portanto, com contratos
empresariais.