Dizer o Direito

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Legalidade de cláusula de raio em contrato de locação de espaço em shopping center



Imagine a seguinte situação hipotética:
A empresa "XX" é administradora do shopping center "Iguateré"
A loja "Moda Infantil" está localizada dentro deste shopping. Isso significa que a referida loja mantém um contrato de locação de espaço com a empresa administradora do shopping.
Uma das cláusulas das normas complementares do shopping prevê o seguinte:
7.26. O LOCATÁRIO, ressalvado estabelecimento já existente na data de assinatura deste contrato, não poderá ter outro (sede, filial etc), dedicado ao mesmo ramo de atividade a ser por ele exercida no ESPAÇO COMERCIAL objeto do contrato de locação e outras avenças, localizado dentro de um raio de 3km (três quilômetros) contados do centro do terreno do SHOPPING CENTER, salvo autorização prévia por escrito do LOCADOR.

Em outras palavras, esta cláusula proíbe que a locatária (em nosso exemplo, a "Moda Infantil") possua outra loja a menos de 3km do shopping.

Como é chamada esta cláusula na prática comercial?
Cláusula de raio. A cláusula de raio surgiu nos EUA e se popularizou com a expansão dos shopping centers. Segundo esta cláusula "o locatário de um espaço comercial se obriga, perante o locador, a não exercer atividade similar à praticada no imóvel objeto da locação em outro estabelecimento situado a um determinado raio de distância daquele imóvel" (Min. Marco Buzzi).

Esta cláusula é válida?
SIM.

Em tese, não é abusiva a previsão, em normas gerais de empreendimento de shopping center ("estatuto"), da denominada "cláusula de raio", segundo a qual o locatário de um espaço comercial se obriga - perante o locador - a não exercer atividade similar à praticada no imóvel objeto da locação em outro estabelecimento situado a um determinado raio de distância contado a partir de certo ponto do terreno do shopping center.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.535.727-RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/5/2016 (Info 585).

Controle judicial sobre cláusulas empresariais é restrito
O shopping center constitui uma estrutura comercial híbrida e peculiar e o contrato firmado com os locatários possui diversas cláusulas extravagantes que têm como objetivo fazer com que o negócio tenha o retorno econômico planejado, além de fazer com que se mantenha como centro comercial atrativo aos consumidores. Assim, para o sucesso e viabilização econômica/administrativa do shopping center, os comerciantes interessados aceitam se vincular a uma modalidade específica de contratação, não podendo alegar que tais cláusulas são abusivas.
Vale lembrar que o controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos de cunho  empresarial deve ser restrito, porque aqui vigora o princípio  da  autonomia privada, da livre iniciativa, do pacta sunt servanda, da função social da empresa e da livre concorrência de mercado.

Não se trata de mero contrato de adesão
Os ajustes locatícios, notadamente aqueles firmados para locação de espaço em shopping center, não  constituem mero contratos de adesão,  pois  são de livre estipulação/comutativo entre os contratantes,  sem a preponderância de um sobre outro. Assim, tanto o locador como o locatário estão livres para pactuarem as cláusulas contratuais que melhor assistam às suas necessidades.

Não há prejuízo aos consumidores
A "cláusula de raio" não prejudica os consumidores. O simples fato de o consumidor não encontrar em todos os shopping centers que frequenta determinadas lojas não implica efetivo prejuízo a ele, pois a instalação dos lojistas em tais ou quais empreendimentos depende, categoricamente, de inúmeros fatores. De fato, a lógica por detrás do empreendimento se sobrepõe à pretensão comum do cidadão de objetivar encontrar, no mesmo espaço, todas as facilidades e variedades pelo menor preço e distância.

Direito de propriedade
Ademais, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, ao proprietário de qualquer bem móvel ou imóvel - e aqui se inclui o(s) dono(s) de shopping center - é assegurado o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e, ainda, de reavê-los do poder de quem injustamente os possua. Denota-se que, para o exercício desses atributos inerentes à propriedade, principalmente a permissão do uso por terceiros, pode o proprietário impor limites e delimitar o modo pelo qual essa utilização deverá ser realizada. Assim, diversas são as restrições que pode o dono impor aos usuários do estabelecimento (vestimentas, ingresso com animais, horário de funcionamento, entre outros) e, como já mencionado antecedentemente, inúmeras são as cláusulas contratuais passíveis de inserção nos contratos de locação atinentes aos centros comerciais híbridos, sem que se possa afirmar, genérica e categoricamente, sejam elas abusivas ou ilegais, uma vez que, em última análise, visam garantir a própria viabilidade do uso, a implementação do empreendimento e, pois, o alcance e incremento real da função social da propriedade.

Conquista de mercado
Além do mais, o fato de shopping center exercer posição relevante no perímetro estabelecido pela "cláusula de raio" não significa que esteja infringindo os princípios da ordem econômica estampados na CF/88, visto que inserções de "cláusulas de raio" em determinados contratos de locação são realizadas com o propósito de servir à logística do empreendimento. Aliás, a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza ilícito, tanto que prevista como excludente de infração da ordem econômica (§ 1º do art. 36 da Lei nº 12.529/2011).

Pode-se dizer que a cláusula de raio é proibida pela Súmula 646 do STF ("Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área")?
NÃO. A Súmula 646 do STF não diz respeito às cláusulas contratuais estabelecidas em pactos firmados entre locador e locatário. Ela se refere apenas a leis municipais, ou seja, a situações em que o próprio poder público impede e inviabiliza a implementação do princípio da livre concorrência. O enunciado não tem relação, portanto, com contratos empresariais.




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