Recentemente o cenário político e jurídico brasileiro foi movimentado pela notícia de que o STF recebeu denúncia e queixa-crime propostas contra o Deputado Federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) pela prática dos crimes previstos nos arts. 286 e 140 do Código Penal.
O presente texto pretende explicar os aspectos jurídicos relacionados com a decisão, sem realizar qualquer análise política sobre o tema. Os argumentos expostos são dos Ministros do STF.
A situação analisada, com
adaptações, foi a seguinte:
O Deputado Federal Jair Bolsonaro
(PSC-RJ), durante uma discussão no plenário da Câmara, afirmou que a também
Deputada Federal, Maria do Rosário (PT-RS), “não merece ser estuprada”.
No dia seguinte, em entrevista concedida
em seu gabinete ao jornal "Zero Hora", Bolsonaro reiterou as
declarações, dizendo que Maria do Rosário “não merece ser estuprada por ser
muito ruim, muito feia, não faz meu gênero”. E acrescentou que, se fosse
estuprador, "não iria estuprá-la porque ela não merece".
Denúncia e queixa-crime
O Procurador-Geral da República
ofereceu denúncia contra o parlamentar afirmando que ele, ao fazer essas
declarações, teria incentivado o crime de estupro, incorrendo, portanto, no
delito do art. 286 do CP:
Incitação ao crime
Art. 286. Incitar, publicamente,
a prática de crime:
Pena - detenção, de três a
seis meses, ou multa.
Além disso, a própria Deputada
ajuizou contra ele queixa-crime sob a alegação de que teria sido vítima de
injúria:
Art. 140. Injuriar alguém,
ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a
seis meses, ou multa.
Defesa do Deputado
A defesa argumentou que o
parlamentar não cometeu qualquer crime com seu comentário, considerando estar
acobertado pela imunidade material prevista no art. 53 da CF/88:
Art. 53. Os Deputados e
Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões,
palavras e votos.
A denúncia e a queixa-crime foram
recebidas pelo STF? Existem elementos indiciários para se prosseguir com a ação
penal?
SIM.
A
imunidade parlamentar material (art. 53 da CF/88) protege os Deputados Federais
e Senadores, qualquer que seja o âmbito espacial (local) em que exerçam a
liberdade de opinião. No entanto, para isso é necessário que as suas
declarações tenham conexão (relação) com o desempenho da função legislativa ou
tenham sido proferidas em razão dela.
Para
que as afirmações feitas pelo parlamentar possam ser consideradas como "relacionadas
ao exercício do mandato", elas devem ter, ainda de forma mínima, um teor
político.
Exemplos
de afirmações relacionadas com o mandato: declarações sobre fatos que estejam sendo
debatidos pela sociedade; discursos sobre fatos que estão sendo investigados
por CPI ou pelos órgãos de persecução penal (Polícia, MP); opiniões sobre temas
que sejam de interesse de setores da sociedade, do eleitorado, de organizações
ou grupos representados no parlamento etc.
Palavras
e opiniões meramente pessoais, sem relação com o debate democrático de fatos ou
ideias não possuem vínculo com o exercício das funções de um parlamentar e,
portanto, não estão protegidos pela imunidade material.
No
caso concreto, as palavras do Deputado Federal dizendo que a parlamentar não
merecia ser estuprada porque seria muito feia não são declarações que possuem relação
com o exercício do mandato e, por essa razão, não estão amparadas pela
imunidade material.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet
5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).
Existe uma posição
jurisprudencial no sentido de que as declarações proferidas pelo parlamentar
dentro do Congresso Nacional seriam sempre protegidas pela imunidade
parlamentar ainda que as palavras não tivessem relação com o exercício do
mandato. Esse entendimento existe mesmo?
SIM. Há diversos julgados do STF
afirmando que a imunidade parlamentar material (art. 53 da CF/88) é absoluta
quando as afirmações do Deputado ou Senador sobre qualquer assunto ocorrem
dentro do Congresso Nacional.
A situação poderia ser assim
resumida:
• Ofensas feitas DENTRO do
Parlamento: a imunidade é absoluta. O parlamentar é imune mesmo que a
manifestação não tenha relação direta com o exercício de seu mandato.
• Ofensas feitas FORA do
Parlamento: a imunidade é relativa. Para que o parlamentar seja imune, é
necessário que a manifestação feita tenha relação com o exercício do seu
mandato.
Veja um precedente do STF neste
sentido:
“A palavra 'inviolabilidade'
significa intocabilidade, intangibilidade do parlamentar quanto ao cometimento
de crime ou contravenção. Tal inviolabilidade é de natureza material e decorre
da função parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo. (...)
Assim,
é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas
dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do
Parlamento é de se perquirir da chamada 'conexão com o exercício do mandato ou
com a condição parlamentar' (Inq 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos
no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das
ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da
inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o
parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. No
caso, o discurso se deu no plenário da Assembleia Legislativa, estando,
portanto, abarcado pela inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas
concedidas à imprensa pelo acusado restringiram-se a resumir e comentar a
citada manifestação da tribuna, consistindo, por isso, em mera extensão da
imunidade material.” (STF. Plenário. Inq 1.958, Rel. p/ o ac. Min. Ayres
Britto, julgado em 29/10/2003).
No mesmo sentido: STF. 1ª Turma.
RE 463671 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 19/06/2007.
Este entendimento não poderia ser
aplicado ao caso concreto, considerando que as palavras e a entrevista foram
dadas dentro das dependências da Câmara dos Deputados?
O STF afirmou que as declarações
prestadas pelo Deputado dentro do plenário até poderiam estar abarcadas por
este entendimento. No entanto, no dia seguinte ele deu uma entrevista na qual
reafirmou as palavras. Portanto, neste momento, a imunidade não é absoluta.
Mas a entrevista foi dada dentro
do gabinete no Deputado...
Mesmo assim. Para o STF, o fato
de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista
é um fato meramente acidental, de menor importância. Isso porque não foi ali
(no gabinete) que as ofensas se tornaram públicas. Elas se tornaram públicas por
meio da imprensa e da internet, quando a entrevista foi veiculada.
Dessa forma, tratando-se de declarações
prestadas em entrevista concedida a veículo de grande circulação não incide o
entendimento de que a imunidade material seria absoluta. É necessário avaliar,
portanto, se as palavras proferidas estavam ou não relacionadas com a função
parlamentar. E, como, no caso concreto não estavam, ele não estará protegido
pela imunidade material do art. 53 da CF/88.
A defesa do Deputado alegou,
ainda, que a conduta por ele praticada não configurou o crime do art. 286 do CP
porque as afirmações feitas foram genéricas e não incentivaram que pessoas
praticassem estupro. Afirmou, ainda, que não teve a intenção de incentivar o
crime de estupro. O STF acolheu estes argumentos?
NÃO.
A
manifestação do Deputado tem o potencial de incitar outros homens a expor as
mulheres à fragilidade e à violência física, sexual, psicológica e moral, considerando
que foi proferida por um parlamentar, que não pode desconhecer os tipos penais.
O
crime de estupro tem consequências graves, e sua ameaça constante mantém todas
as mulheres em situação de subordinação. Portanto, discursos que relativizam
essa gravidade e a abjeção do delito contribuem para agravar a vitimização
secundária produzida pelo estupro.
O
parlamentar, ao utilizar o vocábulo “merece” transformou o estupro em algo como
se fosse um prêmio, um favor, uma benesse à mulher. Além disso, transmitiu a
ideia de que as vítimas podem merecer os sofrimentos a elas infligidos pelo
estupro. Essa fala reflete os valores de uma sociedade desigual, que ainda
tolera e até incentiva a prática de atitudes machistas e defende a naturalidade
de uma posição superior do homem, nas mais diversas atividades.
Para
que se consuma o tipo penal do art. 286 do CP não é necessário que o agente
incentive, verbal e literalmente, a prática de determinado crime. Este delito
pode ser praticado por meio de qualquer conduta que seja apta a provocar ou a
reforçar em terceiros a intenção da prática criminosa.
Ademais,
o delito do art. 286 do CP é crime formal, de perigo abstrato, e independe da
produção de resultado. Além disso, não exige o fim especial de agir, mas apenas
o "dolo genérico", consistente na consciência de que o comportamento
do agente instigará outros a praticar crimes.
No
caso, a frase do parlamentar tem potencial para estimular a perspectiva da
superioridade masculina e a intimidação da mulher pela ameaça de uso da violência.
Assim, a afirmação pública do Deputado tem, em tese, o potencial de reforçar a
ideia eventualmente existente em outros homens de praticarem violência contra a
mulher.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet
5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).
Não se pode subestimar os efeitos
de discursos que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher, que
podem gerar perigosas consequências sobre a forma como muitos irão considerar o
crime de estupro, podendo, efetivamente, encorajar sua prática.
O desprezo demonstrado pela
dignidade sexual reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura
que ainda subjuga a mulher, com o potencial de instigar variados grupos a
lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais.
Depois das declarações do
Deputado, surgiu uma campanha na internet no qual várias pessoas postaram a
seguinte frase: "eu não mereço ser estuprada". A defesa do
parlamentar afirmou que, se as palavras dele incentivaram o estupro, então as
mulheres que aderiram a esse movimento também o teriam praticado porque o
contexto seria o mesmo. O STF acolheu este argumento?
NÃO. Esta campanha se trata de
uma crítica e repúdio às declarações do parlamentar. O sentido conferido, na
referida campanha, ao verbo “merecer” revela-se oposto ao empregado pelo
acusado nas manifestações que externara publicamente. Essas mensagens buscaram
restabelecer o sentimento social de que o estupro é uma crueldade intolerável.
Injúria
Por
fim, o STF afirmou que as declarações do Deputado atingiram a honra subjetiva
da Deputada, porque rebaixaram sua dignidade moral, expondo sua imagem à
humilhação pública, além de associar as características da mulher à
possibilidade de ser vítima de estupro.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet
5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).