Imagine a seguinte situação adaptada:
Segundo o Ministério Público, "EC",
Deputado Federal, teria recebido vantagem indevida para, valendo-se de sua condição de parlamentar,
conseguir influenciar na indicação de determinada pessoa para o cargo de
Diretor Internacional da Petrobrás.
A suposta "propina" (equivalente
a milhões de dólares) teria sido remetida ao exterior, onde foi identificada conta
bancária oculta ligada ao parlamentar na qual estaria depositada a quantia.
Vale ressaltar que o Deputado
Federal não comunicou a existência dessa conta bancária ao Banco Central e que,
na declaração que os candidatos a cargos eletivos devem prestar à Justiça
Eleitoral sobre seus bens, ele também não mencionou a existência desse dinheiro
no exterior.
Quais crimes, em tese, praticou
EC?
• corrupção passiva (art. 317 do
CP);
• lavagem de dinheiro (art. 1º da
Lei nº 9.613/98);
• evasão de divisas (art. 22,
parágrafo único, da Lei nº 7.492/86); e
• falsidade ideológica para fins
eleitorais (art. 350 do Código Eleitoral).
Art. 317. Solicitar ou
receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar
promessa de tal vantagem:
Pena – reclusão, de 2
(dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Art. 1º Ocultar ou
dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou
propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente,
de infração penal.
Pena: reclusão, de 3
(três) a 10 (dez) anos, e multa.
Art. 22. Efetuar operação
de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena - Reclusão, de 2
(dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre
na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída
de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à
repartição federal competente.
Art. 350. Omitir, em
documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele
inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita,
para fins eleitorais:
Pena. reclusão até cinco
anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até
três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.
Obs: o STF, em uma hipótese parecida
com esta, recebeu a denúncia contra o parlamentar reconhecendo que, em uma
primeira análise, estariam previstos tais crimes, embora o mérito da ação penal
ainda irá ser apreciado.
O que a legislação exige para a
MANUTENÇÃO de valores no exterior depositados em conta bancária?
REGRA:
Se a pessoa física ou jurídica
domiciliada no Brasil possuir recursos, bens ou valores em outro país, ela
ficará obrigada a informar essa situação ao Banco Central. Isso está previsto
no Decreto-Lei nº 1.060/69:
Art. 1º Sem prejuízo das
obrigações previstas na legislação do imposto de renda, as pessoas físicas ou
jurídicas ficam obrigadas, na forma, limites e condições estabelecidas pelo
Conselho Monetário Nacional, a declarar ao Banco Central do Brasil, os bens e valores
que possuírem no exterior, podendo ser exigida a justificação dos recursos
empregados na sua aquisição.
Parágrafo único. A
declaração deverá ser atualizada sempre que houver aumento ou diminuição dos
bens, dinheiros ou valores, com a justificação do acréscimo ou da redução.
COMO É ESTA DECLARAÇÃO:
1) se a pessoa possui no exterior
menos que 100 mil dólares no dia 31 de dezembro de cada ano: não precisa
declarar ao Banco Central.
2) se a pessoa possui entre 100 mil
e 100 milhões de dólares no dia 31 de dezembro de cada ano: precisará preencher
declaração, destinada ao Banco Central, uma vez por ano, chamada "CBE
Anual"
3) se a pessoa possui 100 milhões
de dólares ou mais: precisará apresentar declaração trimestral ao Banco Central. É a chamada "CBE Trimestral".
Os prazos para entrega da
declaração e outras informações estão previstas na Circular nº 3.624/2013 do
Banco Central.
A Medida Provisória 2.224/2001
prevê o pagamento de uma multa para quem mantém dinheiro no exterior sem ter
declarado ao Banco Central.
A pessoa que remete ou mantém
valores no exterior sem observar as exigências legais, comete crime?
SIM. Essa pessoa, em tese,
pratica o crime do art. 22 da Lei nº 7.492/86, em especial nas figuras do
parágrafo único:
Art. 22. Efetuar operação
de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena - Reclusão, de 2
(dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre
na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída
de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à
repartição federal competente.
Além disso, a depender do caso
concreto, essa pessoa também poderá ser acusada de cometer outros
delitos em concurso formal ou material com o referido art. 22. Exemplos:
• Falsificação de documento
público (art. 297 do CP), particular (art. 298) ou falsidade ideológica (art.
299).
• Uso de documento falso (art.
304 do CP).
• Crimes contra a ordem
tributária (Lei nº 8.137/90).
• Lavagem de Dinheiro (Lei nº
9.613/98).
Tese da defesa
O denunciado alegou que não
recebeu dinheiro indevido e que não influenciou na nomeação do Diretor. O que
quero chamar a atenção, no entanto, é para outra tese levantada.
Segundo a defesa, a conta
bancária encontrada não está em nome de "EC". A sua titularidade
pertence a um trust e, portanto, o denunciado
não teria obrigação de declará-la ao BACEN nem à Justiça Eleitoral.
O que é um trust?
É um negócio jurídico por meio do
qual um indivíduo (chamado de settlor
ou instituidor) transfere um bem (ex: uma casa) ou um valor (ex: dinheiro) para
que seja gerido por um administrador (trustee
ou fiduciário) em favor de um beneficiário (que pode ser o próprio
instituidor ou um terceiro).
A partir do momento em que o bem
ou valor é transferido e é instituído o trust,
formalmente, este bem ou valor não mais pertence ao indivíduo que fez a
transferência e passa a ser um patrimônio do trustee (administrador). Segundo o artigo 2º da Convenção de Haia
sobre reconhecimento de trusts, os títulos
relativos aos bens do trust ficam em
nome do curador (administrador).
O administrador, apesar de ter a
propriedade formal desses bens, o faz apenas com o objetivo de administrá-los e/ou
de conseguir rendimentos em favor de um (uns) beneficiário(s) que é(são)
definido(s) pelo instituidor.
Assim, este valor será
administrado em favor de uma pessoa (chamada de beneficiário ou beneficial ownership), que pode ser o
próprio instituidor ou um terceiro (ex: um filho, uma mãe, um amigo etc.).
A forma de administração, o
beneficiário e demais aspectos do trust
são definidos no contrato firmado entre o instituidor e o administrador.
Personagens
• Instituidor (settlor): quem transfere a propriedade
dos bens e valores;
• Administrador (trustee ou fiduciário): é quem ficará
com a propriedade dos bens e valores com o objetivo de administrá-los em favor
de uma outra pessoa. Em geral, o trustee é uma empresa, quase sempre uma
instituição financeira;
• Beneficiário (beneficial ownership): é a pessoa que
será beneficiada com os bens e valores que estão sendo administrados pelo
trustee. O tipo de benefício que ela irá receber irá depender das regras
fixadas pelo instituidor e podem ser, por exemplo: receber os valores quando
atingir certa idade, receber os rendimentos decorrentes da aplicação dessas
quantias, utilizar os valores para pagar seus estudos ou despesas médicas etc.
Origem
O trust surgiu na Inglaterra e a expressão poderia ser traduzida como
"custódia e administração" de bens ou valores.
Atualmente, existe a Convenção
Internacional de Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento
(1985), no entanto, o Brasil não é signatário.
O artigo 2º da Convenção prevê:
Para os propósitos desta
Convenção, o termo trust se refere a relações jurídicas criadas – inter vivos
ou após a morte – por alguém, o outorgante, quando os bens forem colocados sob
controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou para alguma
finalidade específica.
Natureza jurídica
O trust não é uma pessoa jurídica (uma sociedade). Trata-se de um
negócio jurídico (contrato).
Bens que compõem o trust
Em tese, os bens que compõem o trust são autônomos e não se confundem
com os bens que integram o patrimônio do administrador, do instituidor e do beneficiário.
Em outras palavras, apesar de
estar no nome do administrador e de estar sendo gerido em favor de uma pessoa
(beneficiário), os bens que integram o trust
não poderiam responder por dívidas de nenhuma dessas pessoas, mas apenas por
débitos do próprio trust.
Digo que isso ocorre, em tese,
porque no país estrangeiro onde o trust foi
instituído esta realidade é respeitada. No entanto, perante o direito
brasileiro, o tema gera polêmica e não existe uma segurança jurídica de que
esta autonomia será aceita. A depender do caso concreto, é possível que as
instituições brasileiras, Receita Federal, Banco Central, Poder Judiciário
considerem que os valores que compõe o trust
sejam de propriedade do seu beneficiário. A dificuldade, nesta hipótese, será
trazer de volta para o Brasil estes valores, considerando que os países onde
normalmente são instituídos os trusts
possuem requisitos muito rígidos para aceitaram a "desconsideração" da
relação contratual do trust.
O direito brasileiro prevê a
figura do trust?
NÃO. Não existe na legislação brasileira
a figura do trust, tal qual ocorre em
outros países.
Brasileiros instituem trust?
Alguns brasileiros que possuem
maior patrimônio fazem a instituição de trust
no exterior, sendo isso realizado em outros países, em geral lugares
considerados "paraísos fiscais" (países com tributação favorecida).
Lugares onde comumente são
instituídos trusts: Bermudas,
Bahamas, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Caymans, Barbados, entre outros.
O instituidor remete os recursos
para o país e, nestes locais, existem profissionais ou empresas especializados
neste tipo de negócio e eles ficam responsáveis pela administração dos valores.
Quais são os motivos que levam a
sua instituição?
O trust, ao contrário do que muitas pessoas pensam, não é,
necessariamente, um negócio realizado com objetivos ilícitos ou escusos.
Trata-se de uma forma de planejamento e de proteção patrimonial.
Algumas razões que levam a pessoa
a instituir um trust:
• Proteger parte de seu
patrimônio para o exterior com medo de incertezas que existam no país de origem
(exs: risco de confisco, instabilidade política e econômica, perigo de que
ocorra um golpe etc.);
• Realizar, em vida, a partilha
dos bens entre os herdeiros (ex: a pessoa transfere 30 milhões de dólares ao
exterior para serem divididos em três trusts, tendo cada uma como beneficiário
cada um dos seus três filhos);
• Servir como forma de
investimento ou planejamento tributário para pessoas que vivam boa parte do
tempo no exterior (ex: a tributação em caso de transferência causa mortis de
bens nos EUA é muito alta para pessoas físicas estrangeiras. Por causa disso,
alguns brasileiros que compram imóvel naquele país, colocam-no em nome de um
trust a fim de pagar menos impostos);
• Investir em caridade (ex: um
milionário resolve instituir um trust com 20 milhões de dólares determinando
que o administrador utilize os recursos para amparar crianças na África).
Obviamente que algumas pessoas
também utilizam o trust com fins
ilícitos. É o caso, por exemplo, do indivíduo que remeteu ou possui recursos não
declarados no exterior e que, para esconder que é o real titular desses
valores, institui um trust e
transfere a ele a administração de tais quantias, prevendo que ele ou alguma
pessoa interposta ("laranja") será o beneficiário.
O trust, como regra, é irrevogável. No entanto, na maioria das vezes
em que ele é utilizado para fins ilícitos, é prevista uma cláusula de
revogabilidade do trust. Trata-se da
figura do trust revogável, que não é
muito bem visto por transmitir a ideia de que o instituto está sendo utilizado
apenas para esconder o real proprietário dos bens e não para a real atividade
nele declarada.
Voltando ao nosso exemplo. O
denunciado alegou que a conta bancária encontrada não está em nome de
"EC". A sua titularidade pertence a um trust e, portanto, ele não
teria obrigação de declará-la ao BACEN nem à Justiça Eleitoral. Esta tese foi
aceita pelo STF?
Em princípio, NÃO. O STF, ao
decidir se recebia ou não a denúncia contra o parlamentar, entendeu, em um
primeiro momento, que esta tese não poderia ser acolhida.
O
Deputado Federal foi o instituidor do trust
e figura como beneficiário. Além disso, o trust
era revogável, de forma que a relação contratual poderia ser a qualquer
momento desfeita e o patrimônio voltaria à sua titularidade. Logo, para o STF,
ele detém a plena disponibilidade jurídica e econômica dos valores que integram
o trust.
Assim,
se ele não declarou a existência de tais valores ao Banco Central e à Justiça
Eleitoral, praticou, em tese, os crimes de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei
nº 9.613/98), evasão de divisas (art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86)
e falsidade ideológica para fins eleitorais (art. 350 do Código Eleitoral).
O
fato de as quantias não estarem formalmente em seu nome é absolutamente
irrelevante para a tipicidade da conduta.
A
manutenção de valores em contas no exterior, mediante utilização de interposta
pessoa ou forma de investimento (trust),
além de não desobrigar o beneficiário de apresentar a correspondente declaração
ao BACEN, revela veementes indícios do ilícito de lavagem de dinheiro.
STF. Plenário. Inq 4146/DF, Rel.
Min. Teori Zavascki, julgado em 22/6/2016 (Info 831).
Obs: vale ressaltar que o STF
ainda não terminou o julgamento e pode ser que, em tese, mude seu entendimento
ao final. No momento, contudo, a tese foi rechaçada sem grande polêmica.