Imagine a seguinte situação
hipotética:
João conheceu Maria e, depois de
algum tempo de namoro, decidiram se casar.
Vale ressaltar que Maria, quando
se casou com João, já era mãe de Pedro, fruto de um relacionamento anterior que
teve.
Mesmo sendo filho biológico e
registral de outro homem, João tratava Pedro como se ele fosse seu filho.
Aliás, perante a sociedade, o trabalho, os amigos, a escola etc., João sempre
apresentava Pedro como seu filho, sem qualquer distinção.
Depois de algum tempo, João e
Maria tiveram um filho em comum: Ricardo.
Mesmo após o nascimento de
Ricardo, João continuava tratando Pedro com o mesmo amor de pai.
Passaram-se 30 anos nesta
situação e, infelizmente, Maria veio a falecer.
Muito triste com a morte de sua esposa,
João também morreu cerca de 3 meses depois.
Aí é que os problemas começaram.
João era muito rico e possuía
vários bens em seu nome. Ricardo, seu filho biológico e registral, afirmou que
Pedro não tinha direito a nada e pretendeu ficar com a herança inteira para si.
O que Pedro poderá fazer neste
caso para resguardar seus direitos?
Pedro poderá ajuizar uma ação
declaratória pedindo que se reconheça que havia entre ele e João uma relação de
paternidade socioafetiva, ou seja, que o falecido era seu pai socioafetivo.
Segundo decidiu o STJ:
É
possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai
socioafetivo.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.500.999-RJ,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12/4/2016 (Info 581).
Essa ação deverá ser proposta
contra Ricardo, o único herdeiro de João e que será afetado juridicamente caso
o pedido seja julgado procedente.
Na
ação, deverão ser juntadas fotos, bilhetes, vídeos de celular, posts do
Facebook e quaisquer outros documentos que provem a relação de afeto como pai e
filho. Poderão também ser arroladas testemunhas.
A paternidade socioafetiva é
protegida pelo ordenamento jurídico?
SIM. A socioafetividade é
contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, que prevê:
Art. 1.593. O parentesco é
natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra
origem.
Ao falar em "outra
origem", o legislador permite que a paternidade seja reconhecida com base
em outras fontes que não apenas a relação de sangue. Logo, permite a
paternidade com fundamento no afeto. Assim, a paternidade socioafetiva é uma
forma de parentesco civil. Nesse sentido, confira o Enunciado nº 256 da III
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
Enunciado 256-CJF: A posse
do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de
parentesco civil.
Quais são os requisitos para que
se reconheça a filiação socioafetiva?
Para que seja reconhecida a filiação
socioafetiva, é necessário que fiquem demonstradas duas circunstâncias bem
definidas:
a) vontade clara e inequívoca do
apontado pai ou mãe socioafetivo de ser reconhecido(a), voluntária e
juridicamente, como tal (demonstração de carinho, afeto, amor); e
b) configuração da denominada “posse de
estado de filho”, compreendida pela doutrina como a presença (não concomitante)
de tractatus (tratamento, de parte à
parte, como pai/mãe e filho); nomen
(a pessoa traz consigo o nome do apontado pai/mãe); e fama (reconhecimento pela
família e pela comunidade de relação de filiação), que naturalmente deve
apresentar-se de forma sólida e duradoura.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.328.380-MS, Rel.
Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/10/2014 (Info 552).
Existe algum dispositivo legal
que pode ser invocado ao caso?
Pode ser aplicado, por analogia,
o raciocínio previsto no art. 42, § 6º do ECA:
Art. 42 (...)
§ 6º A adoção poderá ser
deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a
falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
Vale ressaltar que o STJ adota
uma interpretação ampliativa desse dispositivo e afirma que em situações nas
quais ficar amplamente demonstrada a inequívoca vontade de adotar, é possível o
deferimento da adoção póstuma mesmo que o adotante não tenha dado
início ao processo formal para tanto (STJ. 3ª Turma. REsp 1.326.728/RS,
Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/8/2013).
Dessa forma, ainda que o pai, em
vida, não tenha formalizado o processo de adoção do filho, isso pode ser
reconhecido se ficar provado que havia entre eles uma ligação de paternidade
socioafetiva.
Existe uma relação direta entre a
possibilidade de adoção post mortem
com a filiação socioafetiva, conforme já reconheceu o STJ:
(...) Para as adoções post mortem, vigem, como comprovação da
inequívoca vontade do de cujus em
adotar, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva: o tratamento do
menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. (...) (STJ.
3ª Turma. REsp 1.217.415/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/06/2012).
Tal entendimento consagra a ideia
de que o parentesco civil não advém exclusivamente da origem consanguínea,
podendo florescer da socioafetividade, o que não é vedado pela legislação
pátria, e, portanto, plenamente possível no ordenamento.