Fosfoetanolamina sintética
("pílula do câncer")
Um professor da USP, Gilberto
Chierice, atualmente aposentado, desenvolveu, na década de 1970, uma substância
chamada de fosfoetanolamina sintética, que serviria para auxiliar na cura
contra o câncer.
Durante muitos anos, a fosfoetanolamina
sintética foi distribuída gratuitamente para inúmeros portadores de câncer que
aceitavam participar das pesquisas. A substância ficou conhecida como
"pílula do câncer".
Ocorre que a fosfoetanolamina era
ministrada aos doentes sem que tivesse havido ainda aprovação desta substância pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Diante disso, em junho de 2014, uma
portaria da USP proibiu a distribuição da fosfoetanolamina até que houvesse a
aprovação da Anvisa. A vedação imposta fez com que diversos pacientes buscassem
o Poder Judiciário pedindo o afastamento da proibição e o fornecimento da
substância.
Além disso, os doentes e
familiares de pacientes fizeram inúmeras campanhas na internet pedindo para que
as autoridades liberassem a distribuição e o uso da fosfoetanolamina.
Lei nº 13.269/2016.
Diante da grande repercussão
causada, o Congresso Nacional decidiu aprovar a Lei nº 13.269/2016 autorizando
o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes portadores de câncer, mesmo
sem a aprovação da Anvisa. Veja o que diz a Lei:
Art. 1º Esta Lei autoriza
o uso da substância fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com
neoplasia maligna.
Art. 2º Poderão fazer uso da fosfoetanolamina
sintética, por livre escolha, pacientes diagnosticados com neoplasia maligna,
desde que observados os seguintes condicionantes:
I - laudo médico que
comprove o diagnóstico;
II - assinatura de termo
de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal.
Parágrafo único. A opção
pelo uso voluntário da fosfoetanolamina sintética não exclui o direito de
acesso a outras modalidades terapêuticas.
Art. 3º Fica definido como de relevância pública o
uso da fosfoetanolamina sintética nos termos desta Lei.
Art. 4º Ficam permitidos a produção,
manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da
fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei,
independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto
estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância.
Parágrafo único. A
produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação da
fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes regularmente
autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação.
ADI 5501
A Associação Médica Brasileira
(AMB) ajuizou ADI contra a Lei n.º 13.269/2016.
A entidade alegou que, diante do
“desconhecimento amplo acerca da eficácia e dos efeitos colaterais” da substância
em seres humanos, sua liberação é incompatível com direitos constitucionais
fundamentais, como o direito à saúde (arts. 6º e 196), o direito à segurança e
à vida (art. 5º), e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).
Na ADI, a autora argumentou que a
fosfoetanolamina sintética foi testada unicamente em camundongos, tendo sido
eficaz apenas no combate do melanoma (câncer de pele).
A AMB explicou que a “pílula do
câncer” não passou pelos testes clínicos em seres humanos exigidos pela legislação
e que a permissão do seu uso causa risco grave à vida e à integridade física
dos pacientes.
O STF, ao apreciar a medida
cautelar, concordou com a tese defendida na ADI? A Lei nº 13.269/2016, que
autorizou o uso da fosfoetanolamina, contraria a Constituição Federal?
SIM. O STF ainda não julgou em
definitivo a causa, mas, por decisão majoritária, deferiu medida liminar para
suspender a eficácia da Lei nº 13.269/2016.
É
inconstitucional a Lei nº 13.269/2016, que autorizou o uso da fosfoetanolamina
sintética ("pílula do câncer) por pacientes diagnosticados com neoplasia
maligna, mesmo sem que existam estudos conclusivos sobre os efeitos colaterais
em seres humanos e mesmo sem que haja registro sanitário da substância perante
a ANVISA.
STF. Plenário. ADI 5501 MC/DF, Rel.
Min. Marco Aurélio, julgado em 19/5/2016 (Info 826).
Violação ao direito à saúde (art.
196 da CF/88)
A Lei nº 13.269/2016, ao permitir
o uso da fosfoetanolamina suspendendo a exigência do registro sanitário, violou
o direito à saúde previsto no art. 196 da CF/88, considerando que é dever do
Estado reduzir o risco de doença e outros agravos à saúde dos cidadãos.
O Poder Público tem o dever de fornecer
medicamentos e tratamentos médicos à população. No entanto, isso deve ser feito
com responsabilidade, devendo-se zelar pela qualidade e segurança dos produtos
em circulação no território nacional.
A busca pela cura de enfermidades
não pode ser feita sem se preocupar com a qualidade das drogas distribuídas aos
indivíduos, sendo necessária uma rigorosa análise científica.
A Lei nº 13.269/2016 permitiu a
distribuição do remédio sem o controle prévio de viabilidade sanitária.
Entretanto, a aprovação do produto no órgão do Ministério da Saúde é condição indispensável
para a sua industrialização, comercialização e importação com fins comerciais,
conforme exige o art. 12 da Lei nº 6.360/76.
O registro é condição para o
monitoramento da segurança, eficácia e qualidade terapêutica do produto. Sem o
registro, há uma presunção de que o produto é inadequado à saúde humana.
A lei impugnada é casuística ao
dispensar o registro do medicamento como requisito para sua comercialização, e
esvazia, por via transversa, o conteúdo do direito fundamental à saúde.
Ofensa ao princípio da separação
dos Poderes
O STF entendeu, ainda, que a Lei
nº 13.269/2016 ofendeu o princípio da separação de Poderes. Isso porque incumbe
ao Estado o dever de zelar pela saúde da população. Para isso, foi criada a
Anvisa, uma autarquia técnica vinculada ao Ministério da Saúde, que tem o dever
de autorizar e controlar a distribuição de substâncias químicas segundo
protocolos cientificamente validados.
A atividade fiscalizatória é
realizada mediante atos administrativos concretos devidamente precedidos de
estudos técnicos. Não cabe ao Congresso, portanto, viabilizar, por ato abstrato
e genérico, a distribuição de qualquer medicamento.
Assim, é temerária a liberação da
substância em discussão sem os estudos clínicos correspondentes, em razão da
ausência, até o momento, de elementos técnicos assertivos da viabilidade do
medicamento para o bem-estar do organismo humano.