Imagine a seguinte situação
adaptada:
Dois policiais prenderam um homem
em flagrante e passaram a torturá-lo para que confessasse.
O Ministério Público ajuizou ação
de improbidade contra os policiais.
A defesa alegou que não ficou
caracterizado ato de improbidade, uma vez que este pressupõe, obrigatoriamente,
uma lesão direta à própria Administração e não a terceiros, haja vista que o
bem jurídico que se deseja proteger é a probidade na Administração Pública. No
caso concreto, não teria havido lesão à Administração, mas apenas ao particular
(preso).
Ainda segundo a tese invocada, a
improbidade administrativa caracteriza-se como um ato imoral com feição de
corrupção de natureza econômica, conduta inexistente no tipo penal de tortura,
cujo bem jurídico protegido é completamente diverso da Lei de Improbidade.
O caso chegou até o STJ. Houve
prática de ato de improbidade administrativa?
SIM.
A tortura de preso custodiado em delegacia
praticada por policial constitui ato de improbidade administrativa que atenta
contra os princípios da administração pública.
STJ. 1ª Seção.
REsp 1.177.910-SE, Rel. Ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/2015 (Info
577).
Tortura: improbidade
administrativa
Para o STJ é injustificável que a
tortura praticada por servidor público, um dos atos mais gravosos à dignidade
da pessoa humana e aos direitos humanos, seja punido apenas no âmbito
disciplinar, civil e penal, afastando-se a aplicação da Lei da Improbidade
Administrativa.
Eventual punição administrativa
do servidor não impede a aplicação das penas da Lei de Improbidade
Administrativa, porque os objetivos de ambas as esferas são diversos e as
penalidades previstas na Lei nº 8.429/92, mais amplas.
Universo das vítimas protegidas
pela Lei 8.429/92
A Lei nº 8.429/92 não prevê expressamente
quais seriam as vítimas mediatas ou imediatas da atividade ímproba para fins de
configuração do ato ilícito.
Essa ausência de menção explícita
certamente decorre do fato de que o ato de improbidade, muitas vezes, é um fenômeno
pluriofensivo, ou seja, atinge, de maneira concomitante, diferentes bens
jurídicos e diversas pessoas.
Para saber se a conduta pode ser
caracterizada como ato de improbidade é primordial verificar se, dentre os bens
jurídicos atingidos pela postura do agente público, algum deles está
relacionado com o interesse público. Se houver, pode-se concluir que a própria Administração
Pública estará igualmente vulnerada e, dessa forma, ficará caracterizado o ato
de improbidade para os fins do art. 1º da Lei nº 8.429/92.
Dever convencional,
constitucional e legal de o Estado reprimir tais condutas
No caso concreto, a conduta dos
policiais afrontou não só a Constituição da República (arts. 1º, III, e 4º, II)
e a legislação infraconstitucional, mas também tratados e convenções
internacionais, a exemplo da Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto nº
678/92).
Em tais situações, se o Brasil
não toma as devidas medidas para punir os infratores, pode, inclusive, ser
responsabilizado nas ordens interna e externa.
A tortura perpetrada por
policiais contra presos mantidos sob a sua custódia tem reflexo jurídico
imediato, que é o de gerar obrigação indenizatória ao Estado, nos termos do
art. 37, § 6º, da CF/88. Há aí, como consequência, interesse direto da
Administração Pública.
Tortura praticada por policiais
atenta contra toda a coletividade
Nos termos do art. 144 da CF/88,
as forças de segurança são destinadas à preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas. Assim, o agente público incumbido da missão de
garantir o respeito à ordem pública, como é o caso do policial, ao descumprir
com suas obrigações legais e constitucionais de forma frontal, mais que atentar
apenas contra um indivíduo, atinge toda a coletividade e a corporação a que
pertence de forma imediata.
Situação se enquadra no art. 11
da Lei nº 8.429/92
O legislador, ao prever, no art.
11 da Lei nº 8.429/92, que constitui ato de improbidade administrativa que
atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão
que viole os deveres de lealdade às instituições, findou por tornar de
interesse público, e da própria Administração, a proteção da legitimidade
social, da imagem e das atribuições dos entes/entidades estatais. Daí resulta
que atividade que atente gravemente contra esses bens imateriais tem a
potencialidade de ser considerada improbidade administrativa.
Na hipótese dos autos, o ato
ímprobo se caracteriza também pelo fato de que as vítimas foram torturadas, em
instalações públicas, ou melhor, na Delegacia de Polícia.
Em síntese
A situação de tortura praticada
por policiais, além das repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, configura
também ato de improbidade administrativa, porque, além de atingir a
pessoa-vítima, alcança simultaneamente interesses caros à Administração em
geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado
Democrático de Direito.
Anote em seus livros
Nos Livros "Principais
Julgados 2015" (p. 325) e "Julgados Resumidos" (p. 177), é
explicado um julgado do STJ proferido em 2015 e no qual a Corte decidiu que
"Não ensejam o reconhecimento de ato de improbidade administrativa
eventuais abusos perpetrados por agentes públicos durante abordagem policial,
caso o ofendido pela conduta seja particular que não estava no exercício de
função pública" (STJ. 1ª Turma. REsp 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, julgado em 27/10/2015).
O julgado acima explicado supera
este entendimento, razão pela qual penso que é importante você fazer esta
observação nos livros.