Imagine a seguinte situação adaptada:
Em 2006, a Sadia decidiu fazer
uma grande proposta para comprar a Perdigão.
As reuniões internas na Sadia
para decidir o assunto eram confidenciais e somente participavam alguns poucos
diretores. A fim de manter o sigilo, a Sadia era chamada pelo codinome blue e a Perdigão era a red.
Depois de acertarem os detalhes,
ficou decidido que a proposta seria formalizada no dia 7 de abril.
João era Diretor de Finanças da Sadia
e, em razão de seu cargo, sabia que a proposta seria concretizada naquele dia,
quando, então, a ideia deixaria de ser sigilosa e se tornaria de conhecimento
público.
Diante disso, João, um dia antes
que a informação da compra fosse divulgada, comprou, na Bolsa de Valores de Nova
Iorque (NYSE), milhares de ações da Perdigão, ao valor de 10 dólares.
No dia seguinte, com o anúncio da
proposta, o valor das ações da sociedade empresária Perdigão na NYSE passou
para 30 dólares.
João, que era rico, ficou
milionário em um dia.
Vale ressaltar que, em razão do
cargo que exercia, ele tinha que manter sigilo sobre esta informação.
João praticou algum crime? Em
caso positivo, qual a tipificação?
João praticou o crime previsto no
art. 27-D da Lei nº 6.385/76:
Uso Indevido de Informação
Privilegiada
Art. 27-D. Utilizar
informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento
e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem,
vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com
valores mobiliários:
Pena – reclusão, de 1 (um)
a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita
obtida em decorrência do crime.
Insider Trading
O crime do art. 27-D da Lei nº
6.385/76 é chamado de "uso indevido de informação privilegiada", mais
conhecido como Insider Trading, considerando que é inspirado no direito
norte-americano.
Segundo os ensinamentos de Nelson
Eizirik, "insider trading é, simplificadamente, a utilização de
informações relevantes sobre uma companhia, por parte das pessoas que, por
força do exercício profissional, estão 'por dentro' de seus negócios, para
transacionar com suas ações antes que tais informações sejam de conhecimento do
público".
Acrescenta o autor, ainda, que
"o insider compra ou vende no mercado a preços que ainda não estão
refletindo o impacto de determinadas informações sobre a companhia, que são de
seu conhecimento exclusivo" (Revista
de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: RT,
1983, p. 43).
Este art. 27-D foi introduzido
pela Lei nº 10.303/2001 com o objetivo de que todos os investidores tenham o
direito à igualdade de informação, fazendo com que possam confiar no mercado de
capitais, já que se não houver esta confiança não se conseguirá atrair investidores
para as grandes companhias.
Como se trata de um crime recente
e de pouca ocorrência na prática, não existe, ainda, no Brasil, um
posicionamento jurisprudencial pacífico acerca da conduta descrita no aludido
dispositivo, tampouco consenso doutrinário a respeito do tema.
A sociedade empresária e as
pessoas que detêm informação privilegiada devem informá-la ao público
As companhias que possuem ações
na Bolsa têm o dever de comunicar os fatos relevantes que possam ter influência
sobre as decisões dos investidores de comprar ou não as ações (arts. 3º e 6º,
parágrafo único, da IN 358/2002 da CVM, bem como o art. 157, § 4º, da Lei nº
6.404/76.
De igual modo, o insider que detiver informações
relevantes sobre sua companhia, deverá informá-las ao mercado tão logo seja
possível (arts. 3º da Instrução Normativa n. 358/2002 da CVM e 157, § 4º, da
Lei n. 6.404/1976), ou, no caso em que não puder fazê-lo, por entender que sua
revelação colocará em risco interesse da empresa (art. 6º da Instrução
Normativa), deverá abster-se de negociar com os valores mobiliários referentes
às informações privilegiadas, enquanto não forem divulgadas.
Informação relevante
A
legislação penal brasileira não definiu o que vem a ser informação relevante,
fazendo com que o intérprete tenha que recorrer a outras leis ou atos
normativos para saber o alcance da norma incriminadora.
Segundo a doutrina, informação
relevante é toda aquela capaz de "influir, de modo ponderável, na decisão
dos investidores do mercado", gerando "apetência pela compra ou venda
de ativos", de modo a "influenciar a evolução da cotação"
(CASTELLAR, João Carlos. Insider Trading
e os novos crimes corporativos Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 112-113).
Existem três requisitos para que
a informação possa ser considerada relevante, para os fins do tipo penal em
questão. Informação relevante é aquela que:
a) não foi tornada pública;
b) é capaz de influir de modo
ponderável na cotação de títulos ou valores mobiliários (price sensitive);
c) seja precisa ou concreta.
(BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 10ª ed., São Paulo: Saraiva,
2015, p. 572).
Em suma, no caso concreto, o STJ
manteve a condenação do referido Diretor, afirmando que:
Subsume-se
à figura típica prevista no art. 27-D da Lei nº 6.385/76 a conduta de quem, em
função do cargo de alta relevância que exercia em sociedade empresária, obteve
informação sigilosa acerca da futura aquisição do controle acionário de uma
companhia por outra (operação cujo estudo de viabilidade já se encontrava em
estágio avançado) - dado capaz de influir de modo ponderável nas decisões dos
investidores do mercado, gerando apetência pela compra dos ativos da sociedade
que seria adquirida - e, em razão dessa notícia, adquiriu, no mesmo dia, antes
da divulgação do referido dado no mercado de capitais, ações desta sociedade,
ainda que antes da conclusão da operação de aquisição do controle acionário.
STJ. 5ª Turma. REsp 1.569.171-SP,
Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 16/2/2016 (Info 577).
ressaltar destaque-se que esta
foi a primeira condenação ocorrida no Brasil pela prática do crime do art. 27-D
da Lei nº 6.385/76.
Competência
Vale ressaltar, ainda, que a
competência para julgar o crime do art. 27-D da Lei nº 6.385/76 é da Justiça
Federal, nos termos do art. 109, IV, da CF/88, conforme já decidiu o STJ:
(...) A princípio, o crime
em questão - insider trading -, tipificado no art. 27-D da Lei n. 6.385/76, não
atrairia a competência da Justiça Federal, levando-se em conta o art. 109, VI,
da CF, cujo texto reza que compete à Justiça Federal processar e julgar os
crimes praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira
nas hipóteses determinadas por lei; a Lei n. 6.385/76 assim não dispõe.
Ocorre que, a despeito da
Lei n. 6.385/76 não prever a competência da Justiça Federal, mostra-se claro
que a conduta delituosa prevista no seu art. 27-D afeta diretamente o interesse
da União, porquanto a utilização de informação privilegiada pode gerar lesão ao
Sistema Financeiro Nacional, ao pôr em risco a confiabilidade dos investidores
no mercado de capitais, aniquilando a confiança e a lisura de suas atividades.
Nesse caso, aplica-se o
inciso IV do art. 109 da Carta Magna, que fixa a competência da Justiça Federal
quando o delito ofender bens, serviços ou interesses da União ou de suas
entidades autárquicas ou empresas públicas. (...)
(STJ. 3ª Seção. CC
135.749/SP, Rel. Min. Ericson Maranho (Desembargador convocado do TJ/SP),
julgado em 25/03/2015).