Dizer o Direito

quarta-feira, 2 de março de 2016

É possível a repropositura de ação coletiva envolvendo direitos individuais homogêneos se a primeira foi julgada improcedente por falta de provas?



Imagine a seguinte situação hipotética:
A Associação de Defesa da Saúde ajuizou, na Justiça Estadual de São Paulo, ação civil pública contra a empresa "XXX" pedindo que ela fosse condenada a indenizar os danos morais e materiais causados aos consumidores que adquiriam o medicamento "YY", que faria mal ao coração, efeito colateral que teria sido omitido pela fabricante. Trata-se, portanto, de demanda envolvendo direitos individuais homogêneos.
O pedido foi julgado improcedente em 1ª instância sob o argumento de que a autora não conseguiu provar o alegado (insuficiência de prova). Houve apelação para o TJSP, que manteve a sentença. A associação não recorreu contra o acórdão, que transitou em julgado.
Seis meses depois, a Associação Fluminense de Defesa do Consumidor propôs, na Justiça Estadual do Rio de Janeiro, ação civil pública com o mesmo objeto, ou seja, pedindo a condenação da empresa por danos morais e materiais pela venda do medicamento.
O juiz extinguiu a demanda sem resolução do mérito acolhendo a preliminar de coisa julgada, diante do fato de o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ter julgado ação civil pública idêntica à presente.
A associação recorreu contra a decisão do juiz afirmando que só haveria coisa julgada se a primeira ação coletiva tivesse sido julgada procedente. Como foi julgada improcedente, não haveria coisa julgada. Para tanto, ela fundamentou seu recurso no art. 103, III, do CDC:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada:
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do artigo 81.
Obs: o inciso III do parágrafo único do art. 81 trata sobre os direitos individuais homogêneos.

A tese da associação está correta? É possível a repropositura da demanda ainda que a ação coletiva já tenha sido julgada improcedente em outro Estado por falta de provas?
NÃO.

Após o trânsito em julgado de decisão que julga improcedente ação coletiva proposta em defesa de direitos individuais homogêneos, independentemente do motivo que tenha fundamentado a rejeição do pedido, não é possível a propositura de nova demanda com o mesmo objeto por outro legitimado coletivo, ainda que em outro Estado da federação.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 9/12/2015 (Info 575).

Art. 103, III, do CDC
Realmente, uma leitura precipitada do inciso III do art. 103 do CDC poderia levar à equivocada conclusão de que apenas em caso de procedência da ação coletiva seria proibida a nova propositura de ação coletiva idêntica. Esta, contudo, não é a interpretação dada pelo STJ.
O inciso III deve ser lido em conjunto com o § 2º, que estabelece:
§ 2º Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.

Interpretando o inciso III em conjunto com o § 2º do art. 103, o STJ chegou à seguinte conclusão:
1) Se a ação coletiva envolvendo direitos individuais homogêneos for julgada PROCEDENTE: a sentença fará coisa julgada erga omnes e qualquer consumidor pode se habilitar na liquidação e promover a execução, provando o dano sofrido.

2) Se a ação coletiva envolvendo direitos individuais homogêneos for julgada IMPROCEDENTE (não importa o motivo):
2.a) os interessados individuais que não tiverem intervindo no processo coletivo como litisconsortes (art. 94 do CDC) poderão propor ação de indenização a título individual. Ex: os consumidores do medicamento que não tiverem atendido ao chamado do art. 94 do CDC e não tiverem participado da primeira ação coletiva poderão ajuizar ações individuais de indenização contra a empresa.
2.b) não cabe a repropositura de nova ação coletiva mesmo que por outro legitimado coletivo (não importa se ele participou ou não da primeira ação; não pode nova ação coletiva).

Veja o que a doutrina diz sobre o tema:
"(...) A diferença de redação entre os incisos I e II, do art. 103 e o inciso III, do mesmo art. 103, reside em que, nas duas primeiras hipóteses, admite-se que, se julgada improcedente por insuficiência de provas e em face de nova prova, que ocorra repropositura da ação coletiva pela inocorrência de coisa julgada, o que não se passa com o caso do inciso III, do art. 103.
(...)
No caso de improcedência, independentemente do fundamento respectivo, portanto, é possível que os interessados (que não tenham intervindo no processo) movam a sua ação individual, pois o fim objetivado no art. 103, inciso III e no art. 103, parágrafo segundo, é o de beneficiar tais interessados. Neste caso, a coisa julgada só atinge os legitimados de que trata o art. 82 (e, os que foram litisconsortes) na precedente ação coletiva, mas cujo poder de convicção tenha sido, nesta sede, tido como insuficiente.
(...)
Problema que se coloca é o de que este inciso III aludindo a que no caso de procedência haverá coisa julgada 'erga omnes', suscita a questão consistente em se saber se, no caso de improcedência, não haveria coisa julgada, sequer para ação coletiva idêntica; e, portanto, se seria viável a repropositura da mesma ação coletiva. Ora, o parágrafo segundo, do art. 103 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, prescreve que só os interessados que não intervierem, como litisconsortes, podem mover ação individual. Isto parece conduzir à conclusão de que é inviável a mesma ação coletiva, para a mesma finalidade, com ou sem nova prova.
O texto do art. 103, inciso III, se linguisticamente lido, poderia suscitar dúvida. Isto porque se aí se diz que há coisa julgada 'erga omnes', apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas..., poder-se-ia, 'a contrario sensu', concluir que, no caso de improcedência (já que o objetivo seria 'apenas' o de beneficiar), inocorreria coisa julgada em relação à ação coletiva. Isto conduziria à implicação - se assim fosse - de que a mesma ação coletiva poderia ser novamente movida. Como a conclusão é dogmaticamente inaceitável e, tendo-se presente que, quando o legislador quis (e, o fez nos termos em que o quis) excluir a ocorrência de coisa julgada, o fez claramente (incisos I e II, deste art. 103), deve-se entender que há sempre coisa julgada.
Para se explicar então o 'erga omnes', há de se entender a expressão com o sentido de que, se procedente, o benefício se estende a todos ou seja, todos os que são titulares de interesses ou direitos homogêneos. Mas, se improcedente, há coisa julgada, mas tomada, agora a expressão somente com o sentido de se referir ao(s) legitimado(s) que atuaram no processo, ou que nesse poderiam tê-lo feito também (i.e., os do art. 82)". (ARRUDA ALVIM. Código do consumidor comentado. 2ª ed. São Paulo: RT, 1995, p. 467-471)

Quadro-resumo:

SENTENÇA
DIFUSOS
COLETIVOS
INDIVIDUAIS HOMOG
PROCEDENTE
Fará coisa julgada
erga omnes.
Fará coisa julgada
ultra partes.

Fará coisa julgada
erga omnes.

IMPROCEDENTE COM EXAME DAS PROVAS

Fará coisa julgada
erga omnes.
Impede nova ação coletiva.
O lesado pode propor ação individual.

Fará coisa julgada
ultra partes.
Impede nova ação coletiva.
O lesado pode propor ação individual.
Impede nova ação coletiva.
O lesado pode propor ação individual se não participou da ação coletiva.
IMPROCEDENTE POR
FALTA DE PROVAS

Não fará coisa julgada
erga omnes.
Qualquer legitimado pode propor nova ação coletiva, desde que haja prova nova.

Não fará coisa julgada
erga omnes.
Qualquer legitimado pode propor nova ação coletiva, desde que haja prova nova.

Impede nova ação coletiva.
O lesado pode propor ação individual se não participou da ação coletiva.




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