No dia de ontem (24/02/2016), o
STF concluiu importantíssimo julgado no qual se discutiu a possibilidade de a Administração
Tributária ter acesso aos dados bancários dos contribuintes mesmo sem
autorização judicial.
Vamos entender abaixo o que foi
decidido.
Imagine a seguinte situação hipotética:
Samuel era sócio administrador de uma empresa.
A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade
empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.
No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial,
requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da pessoa
jurídica. A título de curiosidade, essa determinação é chamada de “requisição
de informações sobre movimentação financeira” (RMF).
A Receita fundamentou sua requisição no art. 6º da LC n.° 105/2001, que preconiza:
Art. 6º As
autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e
registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de
depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo
instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis
pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O
resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este
artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
De posse dos extratos, o Fisco constatou que realmente houve
sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa jurídica e fez a
constituição definitiva do crédito tributário.
O sigilo bancário é protegido
pela CF/88?
SIM. A CF/88 não utiliza a
expressão "sigilo bancário", mas isso está sim protegido em dois
incisos do art. 5º da CF/88. Confira:
Art. 5º (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação;
(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal;
O legislador infraconstitucional
reafirmou a proteção ao sigilo bancário no caput do art. 1º da LC 105/2001:
Art. 1º As instituições
financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços
prestados.
No § 1º do art. 1º da LC
105/2001, o legislador elenca quem são consideradas instituições financeiras. A
lista é extensa e abrange bancos de qualquer espécie, distribuidoras de valores
mobiliários, corretoras de câmbio e até as bolsas de valores.
Para que haja acesso aos dados
bancários (quebra do sigilo bancário), é necessária autorização judicial?
Em regra, sim. Segundo entende o
STF, em regra, para que se tenha acesso aos dados bancários de uma pessoa, é
necessário prévia autorização judicial por se tratar de verdadeira cláusula de
reserva de jurisdição.
E no caso do Fisco? A Receita Federal pode requisitar, sem
autorização judicial, informações bancárias das instituições financeiras?
SIM. Essa possibilidade está prevista no art. 6º da LC 105/2001
acima transcrito e lá não se exige autorização judicial. Logo, a lei autoriza
que a Receita Federal requisite diretamente das instituições financeiras
informações sobre as movimentações bancárias dos contribuintes.
Tudo bem. Entendi que a Lei prevê essa possibilidade. Mas tal
previsão é constitucional? Este art. 6º da LC 105/2001, que autoriza o Fisco a
ter acesso a informações bancárias sem autorização judicial, é compatível com a
CF/88?
SIM. O STF decidiu que o art. 6º da LC 105/2001 é CONSTITUCIONAL.
Mas o art. 6º não representa uma "quebra de sigilo
bancário" sem autorização judicial?
NÃO. O STF entendeu que esse repasse das informações dos bancos
para o Fisco não pode ser chamado de "quebra de sigilo bancário". Isso
porque as informações são passadas para o Fisco (ex: Receita Federal) em
caráter sigiloso e permanecem de forma sigilosa na Administração Tributária. Logo,
é uma tramitação sigilosa entre os bancos e o Fisco e, por não ser acessível a
terceiros, não pode ser considerado violação (quebra) do sigilo.
Assim, repito, na visão do STF, o que o art. 6º da LC 105/2001 faz
não é quebra de sigilo bancário, mas somente a “transferência de sigilo” dos
bancos ao Fisco. Os dados, até então protegidos pelo sigilo bancário,
prosseguem protegidos pelo sigilo fiscal. Pode parecer um eufemismo, no
entanto, é importante ficar atento porque isso pode ser exigido nas provas de
concurso.
Para o STF, o simples fato de o Fisco ter acesso aos dados
bancários do contribuinte não viola a garantia do sigilo bancário. Só haverá
violação se esses dados "vazarem" para pessoas estranhas ao órgão
fazendário. Aí sim haveria quebra do sigilo bancário por ter sido exposta a
intimidade do contribuinte para terceiros. Em casos de vazamento, a LC 105/2001
prevê punições ao responsável, que estará sujeito à pena de reclusão, de 1 a 4
anos, mais multa, além de responsabilização civil, culminando com a perda do
cargo (art. 10).
Outros argumentos levantados pelos Ministros para considerarem o art.
6º constitucional:
• O sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao
princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem
ilicitudes.
• A prática prevista na LC 105/2001 é comum em vários países
desenvolvidos e a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo
questionado seria um retrocesso diante dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil para combater ilícitos como a lavagem de dinheiro e
evasão de divisas e para coibir práticas de organizações criminosas.
• A identificação de patrimônio, rendimentos e atividades
econômicas do contribuinte pela administração tributária dá efetividade ao
princípio da capacidade contributiva, que, por sua vez, sofre riscos quando se
restringem as hipóteses que autorizam seu acesso às transações bancárias dos
contribuintes.
• A LC 105/2001 não viola a CF/88. Isso porque o legislador estabeleceu requisitos objetivos para requisição de informação pela
administração tributária às instituições financeiras e exigiu que, quando essas
informações chegassem ao Fisco, ali mantivessem o dever de sigilo. Com efeito,
o parágrafo único do art. 6º preconiza que o resultado dos exames, as
informações e os documentos deverão ser conservados em sigilo, observada a
legislação tributária. Assim, não há ofensa a intimidade ou qualquer outro
direito fundamental, pois a LC 105/2001 não permite a "quebra de sigilo
bancário", mas sim a transferência desse sigilo dos bancos ao Fisco.
• O art. 6º da LC 105/2001 é taxativo e razoável ao facultar o
exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras somente se
houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e
tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa
competente.
A decisão acima do STF foi proferida no julgamento das ADIs 2390,
2386, 2397 e 2859 e do RE 601.314 (repercussão geral).
Placar da votação no STF
• Votaram pela constitucionalidade do art. 6º: Ministros Edson
Fachin, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Cármen
Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes, e Ricardo Lewandowski.
• Votaram pela inconstitucionalidade do art. 6º: Ministros Marco
Aurélio e Celso de Mello.
Na imprensa falou-se muito na “Receita Federal”, ou seja, que o
STF autorizou que a “Receita Federal” obtenha os dados bancários sem
autorização judicial. No entanto, indaga-se: as Receitas estadual e municipal
também poderão requisitar dos bancos informações sobre movimentações bancárias?
SIM. Se você ler novamente o art. 6º da LC 105/2001, irá observar
que o dispositivo fala que estão autorizados a requisitar as informações bancárias
as autoridades e agentes fiscais tributários não apenas da União (Receita
Federal), mas também dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Assim, as Receitas estadual e municipal (Secretarias de Fazenda
estadual e municipal) também poderão requisitar dos bancos, sem autorização
judicial, informações sobre movimentações bancárias sem que isso configure
quebra do sigilo bancário.
Vale ressaltar, no entanto, que, para que os Estados, DF e Municípios
possam fazer uso dessa prerrogativa prevista no art. 6º da LC 105/2001, eles
precisarão, antes, editar um ato normativo que regulamente e traga, com
detalhes, todas as regras operacionais para aplicação do dispositivo legal.
Neste regulamento deverão ser previstos sistemas adequados de
segurança e registros de acesso para evitar a manipulação indevida dos dados,
garantindo-se ao contribuinte a transparência do processo.
A Receita Federal, atualmente, já pode requisitar tais informações
bancárias porque possui esse regulamento. Trata-se do Decreto 3.724/2001, que
"regulamenta o art. 6º da Lei
Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, relativamente à requisição,
acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a
operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas
equiparadas."
Portanto, os Estados, DF e Municípios também poderão requisitar
informações de instituições bancárias relativas a seus clientes. Para isso, no
entanto, repito, precisarão editar o mencionado regulamento, além de só poderem
fazer essa requisição se houver processo administrativo instaurado ou
procedimento fiscal em curso e tais dados forem considerados indispensáveis
pela autoridade administrativa competente.
Quanto à possibilidade de Estados, DF e Municípios poderem também
requisitar informações bancárias, o STF resumiu seu entendimento na seguinte
tese:
“Os estados e municípios somente poderão obter as informações
previstas no artigo 6º da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria. De
forma análoga ao Decreto Federal 3.724/2001, tal regulamentação deve conter as
seguintes garantias: pertinência temática entre a obtenção das informações
bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo
instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do
processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior
hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam
certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos
de apuração e correção de desvios.”
Mudança de entendimento do STF
Vale ressaltar que o julgado acima representa mudança de
entendimento do STF. Isso porque no RE 389808, a Corte Suprema havia decidido
que seria necessário prévia autorização judicial, de sorte que o art. 6º da LC
105/2001 seria inconstitucional. Confira:
SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do
artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência,
às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção –
a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário –
e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual
penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da
República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação
jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao
contribuinte.
STF. RE 389808, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15/12/2010.
A diferença, no entanto, é que, de lá para cá, houve uma
substancial mudança na composição dos Ministros. Saíram muitos dos que votaram
pela inconstitucionalidade e entraram outros com posição diferente. Além disso,
o Min. Ricardo Lewandowski alterou seu entendimento sobre a matéria.
Posição do STJ
O novo entendimento do STF já era
adotado, em parte, pelo STJ, que possui, inclusive, um Recurso Especial
repetitivo sobre o tema (REsp 1.134.665/SP). Na ocasião, o STJ firmou a tese de
que a autoridade fiscal pode solicitar diretamente das instituições
financeiras, ou seja, sem autorização judicial, informações sobre operações
realizadas pelo contribuinte, requerendo, até mesmo, os extratos de contas
bancárias.
Assim, para o STJ, no âmbito do
processo administrativo fiscal, para fins de constituição de crédito
tributário, é possível a requisição direta de informações pela autoridade
fiscal às instituições bancárias sem prévia autorização judicial.
STJ. 1ª Seção. REsp 1134665/SP, Rel. Min.
Luiz Fux, julgado em 25/11/2009 (recurso repetitivo).
TEMA POLÊMICO. É possível que as
informações bancárias obtidas pelo Fisco sem autorização judicial sejam
utilizadas em processos criminais?
Vamos entender melhor este tema voltando ao nosso exemplo.
Samuel era sócio administrador de uma empresa.
A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade
empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.
No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial,
requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da
empresa (art. 6º da LC n.° 105/2001).
De posse dos extratos, o Fisco constatou que realmente houve
sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa jurídica e fez a
constituição definitiva do crédito tributário. Até aqui temos apenas um
processo administrativo-tributário (cobrança de tributos e multas).
Imagine, no entanto, que a Receita Federal encaminhou ao MPF cópia
integral do processo administrativo-fiscal, inclusive dos extratos bancários, e
o Procurador da República, com base nesses elementos informativos (“provas”),
denunciou Samuel como incurso no art. 1º, I, da Lei n.° 8.137/90.
Ao se defender, Samuel sustentou a ilicitude da prova colhida
(extratos bancários) alegando que teria havido uma quebra de sigilo bancário
sem autorização judicial. Desse modo, essa prova não poderia ser utilizada no
processo penal.
Não há mais dúvidas de que o Fisco poderá requisitar diretamente
as informações bancárias. Isso está previsto no art. 6º da LC 105/2001, é
constitucional e não configura quebra de sigilo. Tudo bem. Mas esses dados
poderão ser utilizados em processos criminais ou somente em processos
administrativo-tributários?
STJ
O STJ, antes da decisão do Supremo, entendia que os dados obtidos
pela Receita Federal com fundamento no art. 6º da LC 105/2001, mediante
requisição direta às instituições bancárias no âmbito de processo
administrativo fiscal sem prévia autorização judicial, não poderiam ser utilizados no processo penal. Nesse sentido: STJ.
5ª Turma. REsp 1.361.174-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
3/6/2014 (Info 543).
Assim, para o STJ, o Fisco pode requisitar, sem autorização
judicial, informações bancárias das instituições financeiras para fins de
constituição de créditos tributários. Contudo, tais informações obtidas pelo
Fisco não poderiam ser enviadas ao MP para servirem de base para a propositura
de uma ação penal, salvo quando houver autorização judicial, sob pena de
configurar quebra de sigilo bancário.
Resumindo a posição do STJ:
Os dados bancários requisitados diretamente pelo Fisco poderão ser
utilizados?
• Em processo administrativo fiscal: SIM.
• Em processo penal: NÃO.
STF
No julgamento acima comentado do STF, os Ministros não deixaram explícito
se as informações bancárias obtidas diretamente pela Receita poderão ser
utilizadas em processos penais. No entanto, penso que, pelos votos proferidos,
a tendência seja que o STF afirme que é válido o aproveitamento de tais
elementos também na esfera criminal.
Assim, entendo que o STF permitirá que os dados bancários obtidos
pela Receita sejam utilizados tanto em processos administrativo-tributários
(constituição definitiva do crédito tributário) como também nos processos
penais por crimes contra a ordem tributária.
Dessa forma, a previsão é de que o entendimento dicotômico do STJ
acima mencionado seja superado.
Devemos, no entanto, aguardar para ter uma certeza.
Quadro-resumo dos órgãos que
podem requisitar informações bancárias diretamente (sem autorização judicial):
SIGILO
BANCÁRIO
Os órgãos
poderão requerer informações bancárias diretamente das instituições
financeiras?
|
POLÍCIA
|
NÃO.
É necessária autorização judicial.
|
MP
|
NÃO.
É necessária autorização judicial (STJ HC 160.646/SP, Dje 19/09/2011).
Exceção:
É lícita a requisição pelo Ministério Público de informações bancárias de
contas de titularidade de órgãos e entidades públicas, com o fim de proteger
o patrimônio público, não se podendo falar em quebra ilegal de sigilo
bancário (STJ. 5ª Turma. HC 308.493-CE, j. em 20/10/2015).
|
TCU
|
NÃO.
É necessária autorização judicial (STF MS 22934/DF, DJe de 9/5/2012).
Exceção:
O envio de informações ao TCU relativas a operações de crédito originárias de
recursos públicos não é coberto pelo sigilo bancário (STF. MS 33340/DF, j. em
26/5/2015).
|
Receita
Federal
|
SIM,
com base no art. 6º da LC 105/2001. O repasse das informações dos bancos para
o Fisco não pode ser definido como sendo "quebra de sigilo
bancário".
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Fisco
estadual, distrital, municipal
|
SIM,
desde que regulamentem, no âmbito de suas esferas de competência, o art. 6º
da LC 105/2001, de forma análoga ao Decreto Federal 3.724/2001.
|
CPI
|
SIM
(seja ela federal ou estadual/distrital) (art. 4º, § 1º da LC 105/2001).
Prevalece
que CPI municipal não pode.
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