segunda-feira, 23 de novembro de 2015
Nos contratos de cartão de crédito, é abusiva a previsão de cláusula-mandato?
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
Acepções da expressão
cláusula-mandato nos contratos de cartão de crédito:
O Ministro do STJ Marco Buzzi
explica que a palavra "cláusula-mandato", inserida nos contratos de cartão
de crédito, pode ter três acepções (sentidos):
a) Cláusula-mandato significa a
previsão existente em todos os contratos de cartão de crédito segundo o qual a
administradora do cartão se compromete a honrar, mediante eventual anuidade e
até o limite de crédito estipulado para aquele consumidor, as despesas feitas
por este perante comerciantes ou prestadores de serviços.
b) Cláusula-mandato é a
autorização dada pelo consumidor à administradora do cartão de crédito para
que, em seu nome, obtenha recursos no mercado financeiro para saldar eventuais
dívidas e financiamentos advindos do uso do cartão.
c) Cláusula-mandato é a
autorização dada pelo consumidor à administradora do cartão de crédito para que
esta emita títulos de crédito em nome do consumidor.
Poderes conferidos pela
cláusula-mandato
A primeira acepção (letra
"a" acima) está presente em todos os contratos de cartão de crédito e
não desperta nenhuma atenção especial. É uma característica inerente a esse
tipo de pacto. Vamos aqui tratar, portanto, apenas das duas outras acepções.
Em alguns contratos de cartão de
crédito, as duas acepções ("b" e "c") estão presentes na
cláusula-mandato. Neste caso, quando a pessoa assina o contrato com a operadora
do cartão de crédito, a cláusula-mandato prevê que, se o contratante atrasar o
pagamento e ficar em débito, a administradora estará autorizada:
1) a tomar empréstimos em nome do
contratante junto a instituições financeiras para cobrir a dívida (acepção
"b"); e
2) a emitir título cambial (ex:
uma nota promissória) em nome do contratante como forma de materializar e
transformar em título executivo essa dívida do contratante (acepção
"c").
Em outros contratos, contudo, a
cláusula-mandato prevê apenas o poder de emitir título cambial (acepção
"c"). Esse, inclusive, é o caso mais comum. Explico o porquê. Atualmente,
a grande maioria das operadoras de cartão de crédito é também instituição
financeira (banco). Logo, elas entendem que não é necessário prever essa
autorização para tomar empréstimos de outras instituições, considerando que, em
situação de débito, a própria operadora do cartão é quem irá emprestar o
dinheiro para o usuário do cartão (com juros).
Assim, na esmagadora maioria dos
contratos, nos dias de hoje, a cláusula-mandato só prevê a possibilidade de
emissão de título cambial em nome do contratante.
A previsão dos dois poderes acima
listados (acepções "b" e "c") ainda ocorre no caso de
cartões de crédito do tipo private label,
que são aqueles cartões de crédito de uma loja específica e que possibilita a
pessoa comprar apenas naquele estabelecimento (normalmente uma grande loja de
departamentos ou rede de supermercados). Em geral, a operadora de cartão de
crédito private label não é uma
instituição financeira (não é um banco). Por isso, no contrato que celebra com
seus clientes, ela prevê a cláusula-mandato com os dois poderes acima porque se
a pessoa atrasar o pagamento, ela irá tomar um empréstimo com algum banco, em
nome do contratante, para pagar o débito.
Exemplo:
João fez um cartão de crédito em
seu nome. Isso significa que ele assinou um contrato de cartão de crédito com a
administradora/operadora do cartão. Neste contrato havia uma cláusula-mandato
com as duas autorizações acima explicadas ("b" e "c").
No dia do vencimento, João não
conseguiu pagar a fatura do cartão de crédito no valor de R$ 5 mil. Logo, a administradora
do cartão contraiu junto ao banco que ela escolheu um empréstimo em nome de
João (ele é o devedor) neste valor e, além disso, emitiu um título cambial (ex:
nota promissória) na qual João figura como devedor dessa quantia.
Assim, se João não conseguir
pagar a dívida, poderá ser executado, cobrando-se o valor.
Modelo de redação da
cláusula-mandato prevendo os dois poderes:
A redação da cláusula normalmente
é bem extensa e difícil para que o contratante não entenda direito o que está
assinando. Veja um exemplo:
O débito decorrente das
aquisições pelo TITULAR ou seu(s) beneficiário(s), através do uso do CARTÃO DE
CRÉDITO "XXX", poderá ser parcial ou totalmente financiado por
Instituição Financeira de livre escolha da "XXX" ADMINISTRADORA DE
CARTÕES DE CRÉDITO LTDA., mediante a cobrança de encargos praticados pela
Instituição Financeira e/ou Administradora de Cartões de Crédito. Para tal fim,
o TITULAR, neste ato e por este instrumento, nomeia e constitui a "XXX"
ADMINISTRADORA DE CARTÕES DE CRÉDITO LTDA. sua procuradora para o fim especial
de, em nome e por conta do TITULAR, negociar e obter financiamento aqui
mencionado, em qualquer Instituição Financeira e/ou Administradora de Cartões
de Crédito de sua livre escolha, podendo esta, para tal fim, ajustar e fixar
prazos e juros, comissões, encargos, lugar e pagamento e demais cláusulas e
condições por mais especiais que sejam, celebrar contratos, aceitar letras de
câmbio, emitir notas promissórias, assinar cheques, recibos, quitações e outros
documentos necessários ao cabal cumprimento deste mandato, razão pela qual o
TITULAR desde já reconhece como líquida
e certa a dívida que assim vier a ser contraída em seu nome, além de cobrável
por via executiva qualquer que seja o documento que o representar, com renúncia
expressa dele, mandante, de opor qualquer contestação quer ao montante, quer à
qualidade da dívida e quer ainda, ao rito executivo para sua cobrança."
(In)validade da cláusula-mandato
A validade da cláusula-mandato há
muitos anos é questionada. Os seus críticos afirmam que ela é abusiva, devendo
ser considerada ilícita, nos termos do art. 51, VIII, do CDC e Súmula 60 do
STJ:
Art. 51.
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que:
VIII -
imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo
consumidor;
Súmula
60-STJ: É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário
vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste.
O que o STJ entende? A
cláusula-mandato, nos contratos de cartão de crédito, é válida ou não?
Depende:
1) Cláusula-mandato
que autoriza a administradora a contrair empréstimos para saldar a dívida do
contratante: é válida.
A
cláusula-mandato que, no bojo do contrato de cartão de crédito, permite que a
administradora do cartão de crédito tome recursos perante instituições
financeiras em nome do contratante para saldar sua dívida é válida.
Para o STJ, a tomada de
empréstimo pela administradora do cartão em nome do cliente, para financiá-lo,
é procedimento que atende ao interesse do usuário do cartão de crédito, haja
vista que busca como intermediária, perante o mercado, os recursos necessários
ao financiamento do consumidor/mandante que não teve condições de pagar as
despesas efetuadas.
Nesse tipo de disposição
contratual não se evidencia qualquer abuso de direito, pois a atuação da
administradora de cartão se dá em favor e no interesse do cliente, que avaliará
a conveniência de saldar desde logo o valor total cobrado ou efetuar o
pagamento mínimo da fatura, parcelando o restante para os meses seguintes (Min.
Marco Buzzi).
Assim, pelo fato de esse
empréstimo ser tomado no interesse do consumidor, não se aplica a súmula 60 do
STJ nem o art. 51, VIII, do CDC.
Veja precedente neste sentido:
(...) 1. As empresas
administradoras de cartões de crédito que são, elas próprias, instituições
financeiras utilizam recursos próprios para financiar os débitos decorrentes do
não pagamento integral das faturas, não havendo necessidade de cláusula-mandato
para tanto.
2. Mesmo as operadoras de
cartões não constituídas formalmente para operar como instituições financeiras
(cartões private label), na mesma
situação, captam numerário no mercado, valendo-se da cláusula-mandato, de forma
global e periódica, o que inviabiliza a prestação de contas individualizada.
3. Nessa espécie de
contrato não há abusividade na estipulação da cláusula-mandato, porque inerente
ao funcionamento do sistema, não incidindo a restrição do enunciado 60 da
Súmula do STJ (...)
(STJ. 4ª Turma. AgRg no
REsp 1256866/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Maria Isabel
Gallotti, julgado em 10/02/2015)
2) Cláusula-mandato que autoriza a administradora
a emitir título cambial contra o contratante: é abusiva.
Nos contratos
de cartão de crédito, é abusiva a previsão de cláusula-mandato que permita à
operadora emitir título cambial contra o usuário do cartão.
STJ. 1ª Seção.
REsp 1.084.640-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 23/9/2015 (Info 570).
Essa previsão não traz qualquer
benefício ao contratante. Ao contrário, faz com que fique em uma situação de
extrema vulnerabilidade, já que autoriza que seja constituído unilateralmente
um título executivo contra ele, o que reduz, inegavelmente, a sua capacidade de
defesa.
A operadora de cartão de crédito,
em vez de ter que ingressar com uma ação de cobrança (ação de conhecimento)
contra o contratante, já poderá ajuizar, desde logo, uma execução, facilitando
a sua posição, mas dificultando bastante a do consumidor.
No mandato, o representante deve
atuar em nome do representado, respeitando e agindo dentro dos interesses do
mandante. Neste caso, isso não ocorre, havendo nítido conflito de interesses.
Desse modo, a cláusula-mandato
que possibilita ao mandatário a emissão de cambial contra o mandante, mesmo
quando inserida nos contratos de cartão de crédito, é inegavelmente abusiva,
pois, além de contrariar a própria natureza do mandato ao posicionar de forma
antagônica os interesses do mandante e do mandatário, insere o consumidor/mandante
em notória e exagerada desvantagem, o que atenta contra a boa-fé e a equidade,
razão pela qual incide, neste caso, a súmula 60 do STJ e o art. 51, VIII, do
CDC.