Dizer o Direito

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

É válida a cláusula que prevê a prorrogação automática da fiança em caso de prorrogação do contrato principal?



Imagine a seguinte situação hipotética:
A empresa "JJ Ltda." celebrou contrato de mútuo com determinado banco. Por meio desse ajuste, o banco emprestou 100 mil reais à empresa que utilizou tais recursos como capital de giro para seu negócio.
João figurou no contrato como fiador do empréstimo.

O que é fiança?
Fiança é um tipo de contrato por meio do qual uma pessoa (chamada de “fiadora”) assume o compromisso junto ao credor de que ela irá satisfazer a obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra (art. 818 do Código Civil).
Logo, João, ao assinar o contrato na condição de fiador, forneceu ao banco uma garantia pessoal (uma caução fidejussória): “se a empresa JJ não pagar o que deve, pode cobrar a dívida de mim”.

Características do contrato de fiança
a) Acessório: pressupõe a existência de um contrato principal. Em nosso exemplo, o contrato principal é a abertura de crédito e a fiança é um ajuste acessório a esse.
b) Formal: afirma-se que a fiança é um contrato formal porque exige a forma escrita (art. 819 do CC). Logo, não é válida a fiança verbal. Contrato formal é diferente de solene. A fiança é formal (precisa de forma escrita), mas não é solene, já que não exige escritura pública.
c) Gratuito ou benéfico: na grande maioria dos casos, a fiança é gratuita, considerando que o fiador não terá nenhuma prestação em seu favor, nada recebendo em troca da garantia prestada. Vale ressaltar, no entanto, que é possível que o fiador seja remunerado por esse serviço e, então, o contrato passa a ser oneroso (fiança onerosa). É o caso, por exemplo, da fiança bancária na qual o banco aceita ser fiador de determinada pessoa em troca de uma remuneração por conta disso.
d) Subsidiário: em regra, a fiança é subsidiária porque depende de inexecução do contrato principal. Todavia, é possível (e muito comum) que haja a previsão da cláusula de solidariedade na qual o fiador renuncia ao benefício de ordem e assume o compromisso de poder ser diretamente acionado em caso de dívida.
e) Unilateral: em regra, a fiança gera obrigação apenas para o fiador (satisfazer o credor caso o devedor não cumpra a obrigação). Normalmente, nem o credor nem o devedor possuem obrigações para com o fiador. Exceção: na fiança remunerada, o devedor tem a obrigação de pagar uma quantia ao fiador por ele ter oferecido esse serviço.
f) Não admite interpretação extensiva: as cláusulas do contrato de fiança devem ser interpretadas restritivamente. Assim, em caso de dúvida sobre a interpretação das cláusulas, a exegese deverá ser feita em favor do fiador. Isso se justifica porque a fiança, em regra, é um contrato gratuito. Logo, não seria justo que, por meio de interpretações extensivas, o fiador assumisse obrigações que ele não expressamente aceitou no pacto escrito. Desse modo, o fiador responde somente por aquilo que declarou no contrato de fiança. Ex: Ricardo assinou contrato de fiança afirmando que pagaria os alugueis caso Fabiano (locatário) ficasse em atraso. Fabiano pagou todos os alugueis, mas, após a devolução do apartamento, o locador percebeu que ele deixou a bancada de mármore da cozinha quebrada. Se o contrato de fiança não mencionava a responsabilidade do fiador por avarias no imóvel, não será possível que o locador cobre essa despesa de Ricardo.

Contrato de mútuo bancário tinha vigência determinada
O contrato bancário possuía uma cláusula de vigência de 1 ano, ou seja, vigorava até o dia 05/05/2012.
Havia, contudo, uma cláusula prevendo expressamente a possibilidade de prorrogação automática da fiança caso houvesse também a prorrogação do contrato principal.
No dia 05/05/2012, a empresa JJ não conseguiu pagar o empréstimo e, por isso, o contrato de mútuo foi prorrogado por mais 6 meses.
Essa prorrogação foi ajustada e assinada pelo representante legal da empresa e pelo banco. João não  participou dessa prorrogação.
6 meses depois, a empresa novamente não conseguiu quitar a dívida e o banco ajuizou execução contra a pessoa jurídica e também contra João. Este último se defendeu alegando que:
• para a fiança continuar válida, seria necessário que ele tivesse anuído expressamente com a prorrogação;
• a fiança não admite interpretação extensiva;
• a cláusula que prevê a prorrogação automática é abusiva e, portanto, nula de pleno direito.

O banco poderá cobrar a dívida do fiador? O contrato de fiança ainda está em vigor? Essa cláusula de prorrogação automática da fiança é válida?
SIM. É lícita (e, portanto, válida) cláusula em contrato de mútuo bancário que preveja expressamente que a fiança prestada prorroga-se automaticamente com a prorrogação do contrato principal.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.253.411-CE, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 24/6/2015 (Info 565).

Em regra, a fiança não se estende além do período de tempo previsto no contrato. Justamente por isso, para que a fiança seja prorrogada, é preciso a concordância expressa do fiador. Sobre o tema, o STJ editou, inclusive, um enunciado: Súmula 214-STJ: O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.

No entanto, o STJ decidiu que é válido que o contrato preveja uma cláusula dizendo que, em caso de prorrogação do contrato principal, a fiança (pacto acessório) também será prorrogada.
Havendo expressa e clara previsão contratual da manutenção da fiança, em caso de prorrogação do contrato principal, o pacto acessório também é prorrogado automaticamente, seguindo a sorte do principal.

Essa cláusula não viola o art. 819 do CC, que afirma que a fiança não pode ser interpretada extensivamente?
NÃO. Realmente, na fiança não se admite a interpretação extensiva de suas cláusulas. No entanto, no caso acima explicado não houve interpretação extensiva.
"Não admitir interpretação extensiva" significa que o fiador deve responder, exatamente, por aquilo que declarou no instrumento da fiança. Ele não pode responder por nada a mais do que aquilo que ele aceitou no contrato de fiança.
Na situação concreta, o fiador concordou com todos os termos do contrato, inclusive com a cláusula que previa a prorrogação automática da fiança em caso de prorrogação do contrato principal.
Logo, a cláusula era muito clara e o fiador aceitou. Ao aplicar essa cláusula de prorrogação automática não se está fazendo interpretação extensiva. Ao contrário, está sendo interpretada a cláusula literalmente.

Mas o fiador ficará “preso” para sempre a esse contrato?
NÃO. Ele tem o direito de, no período de prorrogação contratual, notificar o credor afirmando que não mais deseja ser fiador. A isso se dá o nome de “notificação resilitória”, estando prevista no art. 835 do CC:
Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.

Observação final:
Ressalte-se que, no caso concreto acima explicado, a avença principal não envolvia relação contratual de consumo, pois cuidava-se de mútuo mediante o qual se obteve capital de giro para o exercício de atividade empresarial. Existe, contudo, um precedente da 4ª Turma aplicando o mesmo entendimento para os casos de contrato de consumo sob o argumento de que não se trata de cláusula abusiva (art. 51 do CDC) (STJ. 4ª Turma. REsp 1.374.836-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 3/10/2013. Info 534).



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