Em que consiste o chamado "Estado
de Coisas Inconstitucional"?
O Estado de Coisas
Inconstitucional ocorre quando....
- verifica-se a existência de um quadro
de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais,
- causado pela inércia ou
incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a
conjuntura,
- de modo que apenas
transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma
pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional.
Obs: conceito baseado nas lições
de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (O
Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural),
artigo cuja leitura se recomenda.
Exemplo: no sistema prisional
brasileiro existe um verdadeiro "Estado de Coisas Inconstitucional".
Origem
A ideia de que pode existir um
Estado de Coisas Inconstitucional e que a Suprema Corte do país pode atuar para
corrigir essa situação surgiu na Corte Constitucional da Colômbia, em 1997, com
a chamada "Sentencia de Unificación (SU)". Foi aí que primeiro se
utilizou essa expressão.
Depois disso, a técnica já teria sido
empregada em mais nove oportunidades naquela Corte.
Existe também notícia de utilização
da expressão pela Corte Constitucional do Peru.
Pressupostos:
Segundo aponta Carlos Alexandre
de Azevedo Campos, citado na petição da ADPF 347, para reconhecer o estado de
coisas inconstitucional, exige-se que estejam presentes as seguintes condições:
a) vulneração massiva e generalizada
de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas;
b) prolongada omissão das
autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos
direitos;
b) a superação das violações de
direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos,
envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da alocação de recursos
públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas
políticas, dentre outras medidas; e
d) potencialidade de
congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados
acorrerem individualmente ao Poder Judiciário.
O que a Corte Constitucional do
país faz após constatar a existência de um ECI?
O ECI gera um “litígio
estrutural”, ou seja, existe um número amplo de pessoas que são atingidas pelas
violações de direitos. Diante disso, para enfrentar litígio dessa espécie, a
Corte terá que fixar “remédios estruturais” voltados à formulação e execução de
políticas públicas, o que não seria possível por meio de decisões mais tradicionais.
A Corte adota, portanto, uma
postura de ativismo judicial estrutural diante da omissão dos Poderes Executivo
e Legislativo, que não tomam medidas concretas para resolver o problema,
normalmente por falta de vontade política.
Situações excepcionais
O reconhecimento do Estado de Coisas
Inconstitucional é uma técnica que não está expressamente prevista na
Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo e, considerando que "confere
ao Tribunal uma ampla latitude de poderes, tem-se entendido que a técnica só
deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e
generalizada afronta aos direitos humanos, haja também a constatação de que a
intervenção da Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro
enfrentado. São casos em que se identifica um “bloqueio institucional” para a
garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a
perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção
mais ampla sobre o campo das políticas públicas." (trecho da petição inicial
da ADPF 347).
ADPF e sistema penitenciário
brasileiro
Em
maio de 2015, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou ADPF pedindo que o
STF declare que a situação atual do sistema penitenciário brasileiro viola
preceitos fundamentais da Constituição Federal e, em especial, direitos
fundamentais dos presos. Em razão disso, requer que a Corte determine à União e
aos Estados que tomem uma série de providências com o objetivo de sanar as
lesões aos direitos dos presos.
Na petição inicial, que foi
subscrita pelo grande constitucionalista Daniel Sarmento, defende-se que o
sistema penitenciário brasileiro vive um "Estado de Coisas
Inconstitucional".
São apontados os pressupostos que
caracterizam esse ECI:
a) violação generalizada e sistêmica
de direitos fundamentais;
b) inércia ou incapacidade
reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura;
c) situação que exige a atuação
não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades para resolver
o problema.
A ação foi proposta contra a
União e todos os Estados-membros.
Medidas requeridas na ação
Na ação, pede-se que o STF reconheça
a existência do "Estado de Coisas Inconstitucional" e que ele expeça
as seguintes ordens para tentar resolver a situação:
O STF deveria obrigar que os juízes
e tribunais do país:
a) quando forem decretar ou
manter prisões provisórias, fundamentem essa decisão dizendo expressamente o
motivo pelo qual estão aplicando a prisão e não uma das medidas cautelares
alternativas previstas no art. 319 do CPP;
b) implementem, no prazo máximo
de 90 dias, as audiências de custódia (sobre as audiências de custódia, leia o
Info 795 STF);
c) quando forem impor cautelares
penais, aplicar pena ou decidir algo na execução penal, levem em consideração,
de forma expressa e fundamentada, o quadro dramático do sistema penitenciário
brasileiro;
d) estabeleçam, quando possível,
penas alternativas à prisão;
e) abrandar os requisitos
temporais necessários para que o preso goze de benefícios e direitos, como a
progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da
pena, quando ficar demonstrado que as condições de cumprimento da pena estão,
na prática, mais severas do que as previstas na lei em virtude do quadro do
sistema carcerário; e
f) abatam o tempo de prisão, se
constatado que as condições de efetivo cumprimento são, na prática, mais
severas do que as previstas na lei. Isso seria uma forma de "compensar"
o fato de o Poder Público estar cometendo um ilícito estatal.
O STF deveria obrigar que o
CNJ:
g) coordene um mutirão carcerário
a fim de revisar todos os processos de execução penal em curso no País que
envolvamm a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às
medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f” acima expostas.
O STF deveria obrigar que a
União:
h) libere, sem qualquer tipo de
limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para
utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de
novos contingenciamentos.
O STF ainda não julgou
definitivamente o mérito da ADPF, mas já apreciou o pedido de liminar. O que a
Corte decidiu?
O STF decidiu conceder,
parcialmente, a medida liminar e deferiu apenas os pedidos "b" (audiência
de custódia) e "h" (liberação das verbas do FUNPEN).
O Plenário reconheceu que no
sistema prisional brasileiro realmente há uma violação generalizada de direitos
fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos
presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas.
Diante disso, o STF declarou que diversos
dispositivos constitucionais, documentos internacionais (o Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros
Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de
Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais estão sendo desrespeitadas.
Os cárceres brasileiros, além de
não servirem à ressocialização dos presos, fomentam o aumento da criminalidade,
pois transformam pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da
ineficiência do sistema como política de segurança pública está nas altas taxas
de reincidência. E o reincidente passa a cometer crimes ainda mais graves.
Vale ressaltar que a
responsabilidade por essa situação deve ser atribuída aos três Poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário), tanto da União como dos Estados-Membros e do Distrito
Federal.
A ausência de medidas
legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira
"falha estrutural" que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação
e do agravamento da situação.
Assim, cabe ao STF o papel de
retirar os demais poderes da inércia, coordenar ações visando a resolver o
problema e monitorar os resultados alcançados.
A intervenção judicial é
necessária diante da incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e
administrativas.
No entanto, o Plenário entendeu
que o STF não pode substituir o papel do Legislativo e do Executivo na
consecução de suas tarefas próprias. Em outras palavras, o Judiciário deverá
superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar, porém, esses poderes
dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias. Nesse
sentido, não lhe incumbe definir o conteúdo próprio dessas políticas, os
detalhes dos meios a serem empregados. Com base nessas considerações, foram
indeferidos os pedidos "e" e "f".
Quanto aos pedidos “a”, “c” e “d”,
o STF entendeu que seria desnecessário ordenar aos juízes e Tribunais que
fizessem isso porque já são deveres impostos a todos os magistrados pela CF/88
e pelas leis. Logo, não havia sentido em o STF declará-los obrigatórios, o que
seria apenas um reforço.
STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF,
Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798).