A quem pertencem as terras
tradicionalmente ocupadas por índios?
Pertencem à União (art. 20, XI,
da CF/88). No entanto, essas terras destinam-se à posse permanente dos índios,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes.
Em suma, são bens da União, mas
para serem usadas pelos índios. Por isso, alguns autores classificam essas
terras como sendo bens públicos de uso especial.
O que são as chamadas “terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios”?
Segundo o § 1º do art. 231 da
CF/88 são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios:
• as que eles habitam em caráter
permanente;
• as utilizadas para suas
atividades produtivas;
• as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
• e as necessárias a sua
reprodução física e cultural (segundo seus usos, costumes e tradições).
Vale ressaltar que se a terra já
foi habitada pelos índios, porém quando foi editada a CF/88 o aldeamento já
estava extinto, ela não será considerada terra indígena. Confira:
Súmula 650-STF: Os incisos
I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos
extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.
Segundo critério construído pelo
STF, somente são consideradas “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”
aquelas que eles habitavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal) e,
complementarmente, se houver a efetiva relação dos índios com a terra (marco da
tradicionalidade da ocupação).
Assim, se, em 05/10/1988, a área
em questão não era ocupada por índios, isso significa que ela não terá a
natureza indígena de que trata o art. 231 da CF/88.
Qual é a proteção conferida às
terras tradicionalmente ocupadas por índios?
A CF/88 garante aos índios os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, exercendo
sobre elas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos.
Essas terras são inalienáveis e
indisponíveis, e os direitos sobre elas são imprescritíveis.
Para que os índios possam exercer
seus direitos compete à União fazer a demarcação dessas terras.
Demarcação das terras indígenas
Os índios possuem direitos sobre
as terras por eles ocupadas tradicionalmente. Tais direitos decorrem da própria
Constituição e existem mesmo que as terras ainda não estejam demarcadas. No
entanto, o legislador determinou que a União fizesse essa demarcação a fim de
facilitar a defesa desses direitos.
A demarcação é um processo administrativo realizado nos termos do Decreto 1.775/96.
Vejamos o resumo das principais
etapas do procedimento.
• As terras tradicionalmente
ocupadas por índios devem ser administrativamente demarcadas por iniciativa e
sob a orientação da FUNAI.
• A demarcação será fundamentada
em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que
elaborará estudo antropológico de identificação.
• Além disso, a FUNAI designará
grupo técnico especializado (composto preferencialmente por servidores da
Fundação) com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza
etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento
fundiário necessários à delimitação.
• O grupo indígena envolvido,
representado segundo suas formas próprias (organização interna), participará do
procedimento em todas as suas fases.
• Se já houver não índios ocupando
a área sob demarcação, a FUNAI deverá dar prioridade para a demarcação dessa
referida terra.
• Os Estados e Municípios em que
se localize a área sob demarcação e demais interessados podem se manifestar,
apresentando à FUNAI todas as provas que tiverem, tais como títulos dominiais,
laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas,
para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou
parciais, no relatório que foi feito pelo grupo técnico.
• Ao final, a FUNAI encaminhará o
procedimento ao Ministro de Estado da Justiça.
• Em até 30 dias após o
recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:
I — declarando, mediante
portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;
II
— determinando novas diligências que julgue necessárias e que deverão ser
cumpridas em até 90 dias;
III — desaprovando a
identificação e retornando os autos à FUNAI, mediante decisão fundamentada.
• Após a portaria do Ministro da
Justiça, o Presidente da República homologará a demarcação das terras indígenas
mediante decreto.
• Em até 30 dias após a
publicação do decreto de homologação, a FUNAI promoverá o respectivo registro
em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio
da União (SPU).
• A FUNAI poderá, no exercício do
poder de polícia, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em
que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências
necessárias à proteção aos índios.
Obs.1: a demarcação se dá por
meio de processo administrativo (não é judicial). Além disso, importante
ressaltar que o Congresso Nacional não participa da demarcação, ocorrendo ela
apenas no âmbito do Poder Executivo.
Obs.2:
mesmo após o processo de demarcação, a propriedade dessas terras continua sendo
da União (art. 20, XI). Os índios detêm apenas o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
O que acontece se já havia
pessoas morando nas terras demarcadas? E se essas pessoas possuíam títulos de
propriedade registrados em cartório?
Os não índios devem ser retirados
do local, salvo se integrarem as comunidades indígenas locais e os próprios
índios permitirem a sua presença (ex.: um não índio que é casado com uma índia
e já more no local, fazendo parte da comunidade).
O que se está querendo dizer aqui
é que os não índios não possuem o direito subjetivo de permanecer no local
mesmo que provem que lá moravam de boa-fé ou mesmo que apresentem documentos de
propriedade dos imóveis localizados na área.
A
CF/88 determinou que são nulos os atos que reconheçam direitos de ocupação,
domínio (propriedade) ou a posse relacionados com imóveis localizados dentro de
terras indígenas. Logo, se um não índio possuir uma escritura pública
registrada no cartório de registro de imóveis afirmando que ele é proprietário
de um lote existente dentro de uma terra indígena, esse registro é nulo e
extinto, não produzindo efeitos jurídicos.
Os não índios que forem retirados
das terras demarcadas deverão ser indenizados?
NÃO. Em regra, os não índios que
forem retirados das terras demarcadas não têm direito à indenização. Isso
porque eles estavam ocupando terras que pertenciam à União. Logo, mesmo que
tivessem supostos títulos de propriedade, estes seriam nulos porque foram
expedidos em contrariedade com o art. 20, XI e art. 231 da CF/88.
Exceção: tais pessoas poderão ser
indenizadas pelas benfeitorias que realizaram no local, desde que fique provado
que a ocupação era de boa-fé.
Se estiverem de má-fé, não terão
direito nem mesmo à indenização pelas benfeitorias.
§ 6º — São nulos e
extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que
dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
Imagine agora a seguinte situação
adaptada:
Em 2000, João comprou uma fazenda
que fica ao lado da reserva indígena Wassú-Cocal.
Essa reserva indígena foi
demarcada em 1987, ou seja, antes da CF/88.
Em 2012, o Ministro da Justiça, a
partir de estudo da FUNAI, editou portaria ampliando os limites da reserva
indígena Wassú-Cocal. Pela nova demarcação proposta, João perderia a sua fazenda,
que passaria a fazer parte da reserva indígena.
Segundo argumentaram a FUNAI e o
Ministério da Justiça, a remarcação agora realizada é um procedimento destinado
a "corrigir falhas" cometidas na demarcação originária, já que esta
não teria observado os parâmetros impostos pela CF/88. Desse modo, seria uma
correção para adequar a demarcação às regras da CF/88.
A jurisprudência concorda com
essa prática? Se uma terra indígena foi demarcada antes da CF/88, é possível
que agora ela seja “remarcada”, ampliando-se a área anteriormente já
reconhecida?
NÃO. Tanto o STF como o STJ
condenam essa prática.
STF:
Segundo já
decidiu o STF, é vedada a remarcação de terras indígenas demarcadas em período
anterior à CF/1988, tendo em conta o princípio da segurança jurídica.
A União poderá
até ampliar a terra indígena, mas isso não deverá ser feito por meio de
demarcação (art. 231 da CF/88), salvo se ficar demonstrado que, no processo
originário de demarcação, houve algum vício de ilegalidade e, ainda assim,
desde que respeitado o prazo decadencial de 5 anos (art. 54 da Lei nº
9.754/99).
No caso
concreto, essa remarcação não seria possível porque, ainda que tivesse havido
alguma ilegalidade, como afirma o Ministério da Justiça, já teria se passado o
prazo decadencial para rever esse ato.
STF. 2ª Turma.
RMS 29542/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 30/9/2014 (Info 761).
STJ:
O STJ decidiu
que a alegação de que a demarcação da terra indígena não observou os parâmetros
estabelecidos pela CF/1988 não justifica a remarcação ampliativa de áreas
originariamente demarcadas em período anterior à sua promulgação.
Desde o julgamento
da Pet 3.388-RR (Caso Raposa Serra do Sol), a jurisprudência passou a entender
que é vedada a ampliação de terra indígena já demarcada, salvo em caso de vício
de ilegalidade do ato de demarcação e, ainda assim, desde que respeitado o
prazo decadencial.
É inegável que
a CF/88 mudou o enfoque atribuído à questão indígena e trouxe novas regras mais
favoráveis a tais povos, permitindo a demarcação das terras com critérios mais
elásticos, a partir da evolução de uma perspectiva integracionista para a de
preservação cultural do grupamento étnico. Isso, contudo, não é motivo
suficiente para se promover a revisão administrativa das demarcações de terras
indígenas já realizadas, especialmente nos casos em que se passou o prazo
decadencial.
STJ. 1ª Seção. MS 21.572-AL, Rel.
Min. Sérgio Kukina, julgado em 10/6/2015 (Info 564).